Cláudio Aguiar
Ivan
Junqueira - "A Poesia Brasileira de Hoje é
Muito Superior à que se Escreve Noutras Línguas"
Entrevista exclusiva a Cláudio
Aguiar para O Pão n. 41,
Fortaleza, Ce, maio de 1997.
O carioca Ivan Junqueira, 62 anos,
deixou incompletos os cursos de Medicina e Filosofia mas abraçou
definitivamente a literatura. Hoje é dono de uma invejável obra
marcada por livros que lhe dão o direito de ostentar os títulos de
poeta, tradutor, ensaísta, crítico e jornalista com merecido
reconhecimento nacional.
Como poeta publicou o primeiro
livro Os Mortos em 1964. A partir de então, apareceram Três
Meditações na Corda Lírica (1977), A Rainha Arcaica (1980), O Grifo
(1987) e A Sagração dos Ossos (1994).
Iniciando-se na tradução em 1967
com Quatro Quartetos, de T. S. Eliot, seguiram-se algumas obras de
Marguerite Yourcenar, Jorge Luís Borges, Charles Baudelaire, Marcel
Proust, Dylan Thomas, G. K. Chesterton e Leopardi.
Na crítica e no ensaio publicou
Testamento de Pasárgada (1981),À Sombra de Orfeu (1984), O
Encantador de Serpentes (1987), Prosa Dispersa (1991), etc.
Com poesia traduzida para seis
línguas e detentor dos mais importantes prêmios literários do país,
destacando-se o Jabuti de 1995, no momento Ivan Junqueira é
editor-executivo de Poesia Sempre, a mais conceituada revista da
atualidade, publicada pela Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.
Cláudio Aguiar (CA) - A natureza e o
significado do ato criador é um tema recorrente desde os primórdios
da história humana. A criação poética deve levar em conta a imitação
da realidade ou perder-se numa espécie de insondável mistério?
Ivan Junqueira (I J) -A criação poética, como
qualquer outro ato criador, envolve sempre uma certa imitação da
realidade. Sobre o assunto escreveram lapidarmente, entre muitos
outros, dois autores que me parecem fundamentais: Aristóteles, na
Poética e Rich Auerbach, em sua célebre Mimésis, realidade
representada na literatura ocidental, que define o realismo
literário a partir de suas particularidades estilísticas
interpretadas como expressão de situações sociais. Vinte e quatro
séculos separam, portanto, as contribuições desses dois notáveis
pensadores e, ao longo de todo esse tempo, o problema da imitação da
realidade não deixou de instigar diversos outros escritores e
filósofos. Não há como escapar de alguma forma de imitação da
realidade seja na poesia, seja em qualquer outra manifestação
artística. Mas há que levar em conta que a arte, para configurar-se
como tal, sempre deforma essa realidade para criar o que entendemos
por objeto estético. Por outro lado, não creio que ninguém se perca
em nenhuma espécie de insondável mistério: apenas dele se alimenta,
mesmo porque, como sublinha Gilbert Keith Chesterton em sua
Ortodoxia, o "mistério é a saúde do espírito". Lembre-se, a
propósito, o que diz Baudelaire em seu Mon Coeur Mis a Nu quando
acusa Voltaire de "preguiçoso" devido ao desdém que sempre revelou
quanto às próprias possibilidades de existência do mistério enquanto
matriz da criação artística. Bastaria que pensássemos no legado da
arte medieval para que entendêssemos a importância do mistério no
ato criador. Apesar de todas as conquistas científicas e
tecnológicas que se fizeram no mundo até o fim deste milênio, o
mistério, assim como a poesia, permanece irredutível a todos os
assaltos da razão. E insisto aqui: ninguém se perde no mistério; às
vezes até mesmo nele se encontra ou se redime.
CA - Na relação entre semelhança e adequação
com uma dada realidade o homem artista assume responsabilidades como
se fora um criador de situações. Qual a posição do poeta diante do
transcorrer do tempo como se fora uma testemunha dos atos e fatos
que fluem? Deve ser a de um Prometeu - aquele rebelde mítico - que
usa o fogo para clarear o seu próprio mundo ou modelar outros seres?
I J - O homem que cria situações diante do fluxo do tempo lembra-me
um pouco aquele fragmento enigmático em que o filósofo pré-socrático
Heráclito de Éfeso, no século VII a. C., nos ensina que o tempo é
uma criança que joga dados. A atitude do poeta diante do transcurso
do tempo tem um pouco a ver não apenas com esse esfíngico ludismo da
criança, mas também com o substrato do mito prometêico. Mas cumpre
deixar claro que o tempo a que me refiro não se restringe a nenhuma
experiência dentro do contexto lógico-racional daquele transcurso
das horas que registram os relógios. Na verdade, o tempo de que falo
se confunde com a noção de durée bergsoniana em que se misturam o
passado, o presente e o futuro, ou mesmo com aquele abissal
pensamento agostiniano segundo o qual o tempo não tem princípio.
Refiro-me aqui, portanto, a um pantempo, ou seja, aquele que Eliot
tão bem definiu nos três versos iniciais do primeiro de seus Quatro
Quartetos: "O tempo presente e o tempo passado / Estão ambos talvez
no tempo futuro / E o tempo futuro contido no tempo passado."
Somente como parte integrante dessa circularidade que se distende
para além da razão lógica é que o poeta poderá tornar-se testemunha
dos atos e fatos que fluem nessa correnteza compósita ao sabor da
qual ora avançamos, ora recuamos, em busca de significados que
transcendem o tempo cronológico medido pelos ponteiros de um
relógio, pois esse relógio jamais poderá registrar o que de fato
flui naquele devir heraclitiano em que tudo não é porque está sempre
vindo a ser. Como poderia Proust, por exemplo, resgatar e
redescobrir o tempo no plano estético não fosse o abandono a que se
submeteu com relação àquele pantempo que lhe servia de matéria e
memória?
CA - Há quem exagere a posição
do poeta, tomando-o como um ente divino, dando-lhe poderes de
construtor de um mundo onde o Eu torna-se uma realidade absoluta.
Qual o lugar do lirismo ou do sentimento romântico na obra desses
poetas? Que fazer dessa matéria poética que, de qualquer forma,
sempre estará presente na alma dos homens?
I J - Não creio que o poeta tenha nada de divino. Só Hölderlin, em
sua loucura, concebeu como tal, operando assim aquele retorno aos
deuses da antiga Grécia. Mas Hölderlin viveu numa época em que esse
regresso espiritual ainda era possível, sobretudo se pensarmos aqui
em sua formação romântica e, talvez mais do que esta, filológica, o
que lhe permitiu mergulhar em estratos de um mundo a que
dificilmente qualquer um de nós teria acesso nos tempos que correm.
Não creio também em quaisquer poderes que confiram ao poeta o
privilégio de construir um mundo em que o eu se torne uma realidade
absoluta. Isso corresponderia a compactuar com aquele absurdo
solipsístico em que se perdeu o radicalismo subjetivista sobre o
qual se funda o pensamento de Fichte, ou seja, a filosofia do eu
absoluto que tanto influenciou, aliás, não apenas certas vertentes
do idealismo transcendental alemão, mas o próprio romantismo do
Sturm und Drang à sombra do qual se formou o atormentado espírito de
Hölderlin. O lugar do lirismo ou do sentimento romântico na obra dos
poetas aos quais se refere sua pergunta me parece um lugar que só
poderia ser hoje compreendido do ponto de vista histórico, embora
seja óbvio que sua herança literária ainda esteja presente entre nós
e, mais do que isso, atuante. Não me cabe arriscar aqui nenhuma
conjectura sobre o que fazer dessa matéria poética, mas uma coisa é
certa: ela continua a nos habitar e perturbar porque, em certo
sentido, continuamos a ser românticos, particularmente naquela
acepção em que o foi, em plena modernidade e apesar de sua crueza
expressiva, um poeta como Manuel Bandeira. E você está coberto de
razão quando diz que essa matéria poética da qual não sabemos
exatamente o que fazer, mas que nos concerne e alimenta, estará
sempre presente na alma dos homens. Caso contrário, não seríamos
homens e, muito menos, teríamos alma ou sequer espírito.
CA - O poeta, já foi dito, é um fingidor.
Então tudo o que ele pensa (ou finge que pensa) é poesia? Qual a
atenção que deve o poeta dar à arte e à técnica ou, noutras
palavras, ao ofício e ao artifício?
I J - O que um poeta pensa ou finge que pensa pode
ser ou não ser poesia. Em seus conhecidos versos, Fernando Pessoa
não alude propriamente à poesia, mas sim à dor que o poeta deveras
sente. Ou como se lê na esplêndida estrofe do autor: Finge tão
completamente / que chega a fingir que é dor / a dor que deveras
sente. Pois bem: se de fato a sente, essa dor, fingida ou não, é
algo real, pelo menos enquanto dor, mas pode não ser poesia. Essa
dor é, portanto, multitudinária, ou seja, de toda a humanidade. E se
o poeta estiver autenticamente antenado na dor dessa humanidade,
ainda que a finja sentir, sentindo-a, ela se torna concreta,
transformando-se então na dor que o poeta "deveras sente". Cumpre
aqui entender que o mesmo fingimento dói no poeta, pois tudo nele
sempre dói. E é através dessa dor, como já nos advertia Schopenhauer,
que se distende e aprofunda o conhecimento do mundo, desse mundo que
é vontade e representação. Quanto à outra parte de sua pergunta,
esclareço de pronto que, sem arte e técnica ou sem ofício e
artifício, não há poesia que se sustente, pois, neste caso,
estaríamos divorciando a forma do conteúdo quando se sabe que tanto
um quanto o outro são uma coisa só e, mais do que isso, inconsútil.
Sobre essa questão da indissociabilidade de forma e fundo, aliás,
recorro sempre a uma engenhosa proposição do poeta francês Pierre
Reverdy: se considerarmos um animal qualquer, por exemplo, a forma
seria o que nos mostra por fora a pele desse animal, enquanto o
conteúdo seria o que ela nos oculta, fenomenicamente, por dentro. O
conteúdo sem forma nada mais é, por conseguinte, do que uma
contradição em termos, uma falácia. E é no equilíbrio alcançado por
uma coisa e outra que se revela o grande poeta. Um dos equívocos da
poesia de participação social é justamente este: em nome de uma
utopia humanitária desdenha-se da forma e, a partir daí,
compromete-se toda a possibilidade de transmissão artística ou de
fruição do objeto estético. Enfim, se somos artistas, não podemos
jamais renunciar à beleza em que consiste o matrimônio indissolúvel
entre forma e fundo.
CA - Você tem, entre nós, lugar certo e
respeitável como um escritor que cultua a poesia e a tradução,
sobretudo a dos poetas franceses e italianos (e aqui estou pensando
em Baudelaire e Leopardi, por exemplo). Deve ou pode a poesia ser
traduzida?
I J - Cultuo não apenas a poesia e a tradução de
poetas, mas também - e de forma contumaz - o ensaísmo e a crítica de
poesia, tanto assim que já publiquei seis coletâneas de ensaios e de
crítica literária. Aos poetas que traduzi e aos quais alude sua
pergunta, mais do que Leopardi, de quem verti apenas cinco poemas
para o português, gostaria aqui de referir-me, com maior razão, a
outros dois, T. S. Eliot e Dylan Thomas, cujas obras completas
também traduzi. Tanto esse ensaísmo quanto essas traduções respondem
às exigências de uma estratégia que desde sempre me impus, ou seja,
não restringir-me apenas a minha producão poética, mas, através do
que escreveram outros poetas em outras línguas, instrumentar-me cada
vez mais no que toca ao meu ofício. E não é pouco o que tenho
aprendido quer traduzindo, quer escrevendo ensaios sobre a poesia
alheia. A poesia pode e deve ser traduzida, sobretudo num país como
o nosso, constituído de uma população por assim dizer monoglota.
Quanto ao êxito dessa operação tradutória, quase sempre escasso por
ser a poesia amiúde intraduzível, diria eu que ele reside, acima de
tudo, numa sábia compreensão daquele princípio coleridgiano da "supension
of disbelief". Em outras palavras: cumpre generosamente acreditar,
graças a essa "suspensão da descrença", que um poema possa ser
traduzido, ainda que, em certos casos, não o devesse. E entenda-se
que qualquer tradutor deve ser definido como o homo ludens que nos
serve a poesia alheia do homo faber. No que respeita ao resgate de
um original poético, valeria ainda a pena recordar aqui uma
lucidíssima observação de Dante Milano no prefácio que escreveu à
sua lapidar tradução de três dos cantos do Inferno dantesco. Diz
ele: "Pode-se traduzir o que um poeta quis dizer, mas nunca o que
ele disse". Enfim - e se me faço entender pelos leitores de O Pão -
toda poesia é traduzível justamente por não sê-lo, o que levou Otto
Maria Carpeaux, quando escreveu sobre a minha tradução da poesia de
Eliot, a sublinhar que dela muitíssimo gostava exatamente por
tratar-se de uma tradução, e não do original.
CA - Há quem veja na tradução do poema uma
experiência que redunda, quase sempre, num pecado do tradutor ou num
ato de perdão do leitor menos exigente. Como vê a questão da
fidelidade formal versus a busca da imagem essencial diante do logro
original do poeta?
I J - Tudo o que disse na resposta anterior caberia
como luva à sua nova pergunta. Não há nem o pecado do tradutor -
pelo menos quando é digno desse nome - por envolver-se num processo
legítimo de aproximação de um autor que escreve em outra língua,
como tampouco o perdão do leitor menos exigente e que, por sê-lo,
não está apto seja a perdoar, seja a repelir o que tem diante dos
olhos. Ocorre que somente poetas - e, de preferência, bons poetas -
devem arriscar-se a traduzir poetas. Caso contrário, a fidelidade
formal e a busca daquela imagem essencial a que você se refere
estariam desde logo irremediavelmente comprometidas. Veja-se , por
exemplo, o caso de Manuel Bandeira, que, no meu entender, é o maior
tradutor de poetas à língua portuguesa. E por que o foi? Porque era
o mais culto e bem instrumentado dentre todos os nossos poetas.
Quando traduzi Les Fleurs du Mal, de Baudelaire - aventura que se
estendeu por quase cinco anos -, mantive não apenas a métrica, mas
todos os esquemas rítmicos de que se valeu o poeta. O poema
baudelairiano é talvez o mais exato, orgânico e coeso exemplo de um
mecanismo de precisão, e o que mais nos surpreende é que, sob a
aparente frieza desse engenho, esplende a cada verso, a cada imagem,
a cada metáfora. Não foram poucas as vezes em que pensei em desistir
de traduzi-lo, no que fui impedido com veemência por Dante Milano,
ele próprio também tradutor de alguns poemas de Baudelaire e que me
julgava o único neste país a ser capaz de dar conta do recado. E da
mesma forma me senti quando enfrentei os textos de Eliot, Dylan
Thomas e Leopardi. Se cheguei, no caso específico de Les Fleurs du
Mal, a atingir aquela fidelidade formal a que se refere sua
pergunta, que o digam os críticos e leitores. De qualquer modo, a
repercussão foi extraordinária, e agora acaba de esgotar-se a sexta
edição da obra, já estando no prelo a sétima. E não deixa de ser
curioso que algumas pessoas, inclusive intelectuais de estirpe, vez
por outra me perguntam: O que levou a perder cinco anos de sua vida
com Baudelaire? Respondo sempre: Não perdi, ganhei.
CA - Nos últimos anos verificamos um crescente
interesse do público pela poesia, o que vem provocando um maior
respeito de nossos editores pelos poetas brasileiros. A que atribui
essa salutar mudança?
I J - Essa mudança me parece estar relacionada não
apenas a um interesse maior do leitor pela boa poesia - e aqui cabe
salientar o papel decisivo que vêm representando, desde o início da
década de 1980, as traduções competentes de grandes poetas de outras
línguas -, mas igualmente a boa vontade e à consciência profissional
de certos editores que começaram a perceber que poesia também vende.
Lembro aqui - não em causa própria, mas como prova de um episódio
que acompanhei muito de perto -, o caso da edição brasileira de
minha tradução dos poemas de Eliot sob o título de T. S. Eliot.
Poesia (Nova Fronteira, 1981) e que, em apenas dois meses, vendeu
três edições, chegando mesmo na época a figurar na lista dos mais
vendidos de Veja e IstoÉ. Considerando-se que Eliot é um poeta
difícil, um indiscutível poeta de elite, essa vendagem foi, no
mínimo, assombrosa. E a obra está hoje na sexta edição, acompanhando
de perto a trajetória editorial de As Flores do Mal. Outro exemplo:
Poemas Reunidos: 1934-1953, de Dylan Thomas - poesia ainda mais
difícil do que a de Eliot do ponto de vista da língua e que também
traduzi integralmente para o nosso idioma -, foram lançados no final
de 1991 e, dois anos depois, a tiragem esgotou-se. E o mesmo, ou
quase o mesmo, vem ocorrendo com as traduções de outros grandes
poetas estrangeiros por Ivo Barroso, Jorge Wanderley, José Paulo
Paes, José LIno Grünewald, Augusto e Haroldo de Campos, Paulo
Vizioli, Abgar Renault, Leonardo Fróes, Idealma Ribeiro de Farias,
Aíla de Oliveira Gomes e outros intelectuais de indiscutível
calibre. Dá-se hoje, na literatura brasileira, um fenômeno
semelhante àquele que se verificou nas literaturas alemã e russa,
cujo amadurecimento e esplendor devem muito às traduções que ali se
fizeram dos clássicos durante o século XIX. Por outro lado, alguns
poetas brasileiros - Manuel de Barros, Ferreira Gullar, João Cabral
de Melo Neto, Adélia Prado e Affonso Romano de Sant'Anna, para
ficarmos apenas com os vivos -, continuam a vender bem. Cito aqui
até mesmo o meu próprio caso: publicado em novembro de 1994, A
Sagração dos Ossos, que no ano seguinte recebeu o Prêmio Nacional de
Poesia do Pen Club do Brasil e o Prêmio Jabuti, havia vendido até o
fim de 1996 cerca de 1 mil 300 exemplares, o que considero um
espanto. E há outra coisa: o nível geral da poesia que hoje se
escreve no Brasil é muito bom, como atestam as últimas obras de
poetas jovens ou não. É o caso, por exemplo, de Alexei Bueno, Bruno
Toletino, Adriano Espínola, Floriano Martins, Luciano Maia, Leonardo
Fróes, Waly Salomão, Alberto da Cunha Melo, César Leal, Weydson
Barros Leal, Donizete Galvão, Carlito Azevedo, José Alcides Pinto,
Francisco Carvalho, Ruy Espinheira Filho, Dora Ferreira da Silva e
tantos outros que aqui involuntariamente omito, pelo que de imediato
me escuso. E é claro que os editores estão atentos ao fenômeno,
resultando daí o respeito que passaram a ter por nossos poetas.
Agora é torcer para que essa onda não se desmanche na praia.
CA - O homem percorreu entre o grafismo sobre
a pedra e a utilização do papiro e do pergaminho um longo caminho
até chegar ao papel. No entanto, parece que outras formas
incorporaram-se à vida do homem moderno. Quais os efeitos produzidos
pelas novas técnicas de comunicação visual em relação à literatura
produzida através do livro tradicional?
I J - Se desconsiderarmos o ludismo do grafismo de
experiências lingüísticamente suicidas e idiotas, como o foram - e,
infelizmente, ainda o são - as do concretismo e da poesia práxis,
arrisco-me aqui a dizer que foram poucos e mesmo insignificantes os
efeitos produzidos por essas novas técnicas. Muito a propósito,
advirto para o fato de que existe hoje, na poesia brasileira, uma
tendência de retorno àquela herança literária que o mundo ocidental
recebeu desde Homero e Virgílio, àquilo que Eliot, em seu conhecido
ensaio Tradição e Talento Individual, sabiamente definiu como o
continuum de um fenômeno de cultura que não pode e não deve ser
esquecido. Apesar de ter sido crucial para todos nós, que nos
formamos à sua sombra, o Modernismo de 1922 incorreu na tolice de
desprezar o que o passado e a tradição nos ensinam. O passado só
morre quando é passadista. Mas em que medida Virgílio, Horácio,
Dante, Petrarca, Leopardi, Novalis, Hölderlin, Goethe, Donne,
Shakespeare ou Camões podem ser identificados com o passado, se
constituem a mais grandiosa e orgânica lição de permanência? O que
morre são as fôrmas - que, aliás, já nascem mortas - e não as
formas. O que há de velho, por exemplo, no cultivo de formas como o
soneto, a balada, o rondó ou a sextina, se impregnadas das
exigências de nosso tempo e de nossa visão moderna do mundo? Poetas
como Manuel Bandeira, Jorge de Lima, Carlos Drummond de Andrade,
Américo Facó, Joaquim Cardozo, Dante Milano, entre outros,
fartaram-se de fazê-lo. E por isso não foram modernos? Foram-no. E
digo mais: talvez até moderníssimo ou, pelo menos, muito mais
modernos do que poetas que, por incompetência e ignorância,
dedicaram-se a escrever versos que certa vez Paulo Mendes Campos,
entre irônico e perspicaz, definiu como modernérrimos, corroborando
o que pouco antes, aliás, dissera Mário de Andrade com relação ao
relaxamento formal de Vinicius de Morais em seus dois primeiros
volumes de poemas. Essas novas técnicas de que fala sua pergunta
romperam, na grande maioria dos casos, os limites extremos do
sistema da língua e nada mais fizeram do que engendrar signos
cadavericamente lingüísticos.
CA - Qual o futuro ou perspectiva da poesia
brasileira na passagem desse milênio?
I J - Penso que são grandes e até venturosas as
perspectivas da poesia brasileira nessa virada de milênio. Temos
bons poetas, alguns muito jovens, ainda em fase de formação e
amadurecimento, mas que, pelo que já nos mostraram, se fizeram
dignos de nossa confiança e do nosso aplauso. Vamos apostar neles e
dar-lhes o crédito que merecem. O grande desafio da poesia
brasileira não reside tanto no que ela própria produz, mas na
barreira da língua, nesse medonho e absurdo gueto em que sempre se
confinou o português, o que não deixa de causar certo estupor
porque, além de ser uma língua de cultura, é a sexta mais falada no
mundo, somando hoje um contingente de cerca de 200 milhões de
pessoas, das quais quase 160 milhões vivem no Brasil, um país jovem
e de pouca tradição. É preciso resgatar o nosso idioma desse gueto.
Que se traduzam mais nossos poetas para outras línguas. Eu mesmo
estou hoje traduzido para o espanhol, o francês, o inglês, o alemão,
o italiano, o dinamarquês e até o chinês. Mas não basta: é preciso
que essas traduções se multipliquem e passem a circular mais,
intensamente na Europa e nos Estados Unidos. A poesia brasileira de
hoje é muito superior à que se escreve em língua inglesa, francesa,
espanhola, italiana e alemã, e isso sem considerarmos aqui o que se
produz em Portugal. Nesse sentido, não podemos deixar sem registro o
lúcido trabalho que vem realizando entre nós e no exterior a revista
Poesia Sempre, criada por Affonso Romano de Sant'Anna quando
presidente da Biblioteca Nacional e que chega agora ao seu oitavo
número, dedicado à moderna poesia israelense. Affonso foi em má hora
exonerado do cargo pelo atual governo, mas a revista com a qual ele
sonhou, agora sob minha responsabilidade, como editor-executivo, e a
de Antônio Carlos Secchin, o atual editor geral e um dos mais
notáveis nomes de nossa crítica literária, não haverá de morrer na
praia, apesar das muitas e terríveis dificuldades que se nos
deparam. A divulgação da poesia brasileira no exterior depende muito
desse ousado e ambicioso projeto que Secchin e eu nos comprometemos
a levar até onde nos for possível. É através dele que talvez se
possa sair do gueto a que me referi, e a boa poesia que hoje se
escreve neste país o merece. Que Deus e o diabo nos permitam honrar
a palavra que empenhamos.
Leia obra poética de Ivan Junqueira
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