César Leal
O
poeta Francisco Carvalho
A poesia de Francisco Carvalho
parece-me que ainda não foi submetida a uma análise dos valores que
colocasse em evidência as forças atuantes no interior de sua língua
poética. Ainda que a crise do historicismo já não possa mais ser
negada, e isso comprova-se em trabalhos altamente técnicos e
banhados por um reflexo filosófico de importância estratégica nos
estudos literários e históricos, tais como os mais recentes de
Hayden White e, noutro nível, os do jovem filósofo francês Luc Ferry,
acredito que estamos necessitando urgentemente de uma nova história
da literatura brasileira. Nossas histórias da literatura estão
envelhecidas. Mesmo as melhores nunca foram completas. Apresentam
defeitos e omissões, como se pode observar a cada página da
Literatura Brasileiro de Silvio Romero, ou da de José Veríssimo, de
Afrânio Coutinho e até mesmo a de Antônio Cândido. Tais obras não
refletem, como mostram pesquisas recentes, a própria realidade de
nossa literatura colonial. Esses grandes panoramas históricos —
parodiando Ernst Robert Curtius — comparados aos sistemas de
comunicação, seriam como o telégrafo na década de 20 posto em
contraste com o telefone celular na transição do século XX par o
século XXI. Nossas histórias da literatura não podem sequer ser
atualizadas. Nem mesmo reescritas. Estão obsoletas. Precisamos de
uma História da Literatura que opere uma integração mais ampla entre
crítica e teoria e tenha como princípio apresentar uma visão
transnacional da literatura, afastando os resíduos dos
nacionalismos, com justa razão combatidos pelos romanistas,
criadores, em grande parte, de uma nova ciência: a ciência da
literatura. São observações sumárias que me chegam à mente ao ler
Barca dos Sentidos, de Francisco Carvalho. Seu universo poético
é um universo literário por excelência, pelo menos para quem não
aceita a separação entre expressão literária e expressão poética.
Deixo o tema aos cuidados do sistematismo de Benedetto Croce. Mas
concordo com a tese de Coleridge ao afirmar que a "poesia é a
identidade do conhecimento". Os poemas de Francisco Carvalho possuem
aquela unidade descontínua própria da lírica. Seu ritmo oracular é
perfeito como nesse belo Estudo da Alma: Te carrego nas entranhas
/ como um cão uivando./ Um cão dilacerando / a memória.// Te carrego
nas entranhas / como se levasse uma / labareda de relâmpagos / se
esvaindo. // Te carrego nas entranhas / como se agasalhasse / um
pássaro banido / do céu. // Te carrego nas entranhas / como se
tivesse medo / aos olhos de areia / da eternidade.
O que vemos neste poema é uma
série sucessiva de imagens. Imagens quase metáforas. Metáforas
típicas de um poeta da modernidade. Não são metáforas tradicionais,
em que as velhas funções comparativas eram o fim buscado pelo poeta
e a pedra de toque capaz de faze-las íntimas do leitor. Baudelaire
intentou algo parecido, mas o verdadeiro criador desse sistema de
imagens é Rimbaud. Depois dele, não há poeta moderno que as
despreze, em especial quando somos guiados pela noção de "identidade
do conhecimento", tal como proposta por Coleridge. A poesia moderna
não teria o interesse que desperta neste século entre as melhores
mentes se não contasse com essa técnica metafórica de transformação
do mundo. Hugo Friedrich lembra, entre outras, as metáforas de
Apollinaire e Lorca: "A língua é um peixe vermelho no vaso de tua
voz", "A lua ceifa lentamente o antigo tremor do rio". As
metáforas de aposição: "Igreja, mulher de pedra" (Jouve);
"outubro, ilha de perfil preciso" (Guillén). Em Francisco
Carvalho as metáforas do genitivo são freqüentes e o situam como um
dos melhores criadores de imagens da poesia brasileira, ao lado de
Murilo Mendes e mais uns poucos: "dourado coração da ursa";
"um vento de andorinhas"; "a solidão branca da asa deita";
"o relâmpago acende a candeia dos mortos"; "a coruja
ponteia mortalhas de seda"; "o céu flutua nas águas do
pântano". A poética de tensão do Dr. I. A. Richards dava
importância fundamental aos poemas onde tais metáforas fizessem sua
aparição. Outras metáforas de Francisco Carvalho: "... meus olhos
foram desterrados nas praias da insônia", "ceifo o trigo da cólera",
"os pardais brincam de ciranda enquanto a tarde sangra". São
apenas alguns exemplos de metáforas que já nada têm de semelhantes
às velhas metáforas quando se buscava aproximar o conceito de
imagem. Agora o que se busca é justamente o contrário: lançar trevas
sobre o real para assegurar uma luminosidade mais forte no campo
poético. Esse é um tema que tem mantido ocupados os grandes
romanistas, inclusive Hugo Friedrich, cujos estudos sobre os
fundadores da lírica moderna são universalmente reconhecidos.
Em "Soneto a um Velho Poeta",
ainda que não cite o nome do autor, Francisco Carvalho nos dá esse
perfeito retrato de Jorge Luís Borges: "Vejo-te andando pelas
ruas claras / Nalguma tarde recendendo a antúrios / Desfolhados.
Vais entre adagas e urdes / Tempo e magia de Buenos Aires. // Urdes
o arcano e a música diversa / Das coisas. urdes a insígnia e os
espelhos / Do Monarca. A reminiscência e os velhos / Emblemas das
metáforas do persa. // Andas perdido entre relógios de areia / Mapas
azuis de remotos países / Lávros de Stevenson, cismas de Heráclito.
Enquanto o céu dos mortos devaneia / Teus olhos fitam com o fulgor
do hábito / Outras distâncias, outros paraísos."
Leia Francisco Carvalho
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