César Leal
Encontro com o mito de Gerião: Inferno XVI
A dimensão musical da poesia de
Fernando Monteiro não consegue deter a força das idéias que se
infiltram em seus textos mais recentes. Eles possuem uma natureza
enigmática. Uma natureza simbólica criadora de mitos, um dom
imemorial da linguagem humana que faz o "espírito reproduzir-se do
nada". É isso que torna tão difícil a poesia moderna. Mas o problema
desaparece - pelo menos para os demais criadores de mito - quando
entra em ação o poeta. Cria-se aquela "música das idéias " e põe em
suspensão a consciência. E seu lugar passa a ser ocupado por um
núcleo emotivo envolto no mito e na magia. O Universo não é feito de
matéria. O universo é feito de música. Seria tarefa muito árdua
demonstrar o quanto há de verdade e beleza nessas descobertas do
espírito humano.
De todos os monstros colocados por
Dante na Divina Comédia, Gerião é o mais impressionante, o pior de
todos, a encarnação do sentido máximo da fraude. É o símbolo mais
representativo do homem contemporâneo. Principalmente daquele onde a
má consciência se aloja na mente. É o Rei que se cerca de Sibilas e
Sacerdotes para elaborar estratégias de poder politicamente
corretas. Dante situou tal monstro, agora tema do livro de Fernando
Monteiro, acima de Plutão e de Minos, do cão Cérbero, sempre
ameaçador em meio a uma chuva fétida a cair, constantemente, no VI
círculo do Inferno. Também é mais poderoso do que Minos e tem mais
força do que o Minotauro. Foi ele quem expulsou Dante, de Florença,
é desse monstro metafísico que se ocupa Fernando Monteiro. Ele
utiliza uma linguagem tão sutil que os males provocados por Gerião
não chegam a ser notados. Dividido em doze partes, Gerión e a
Suméria está banhado por uma luz intelectual da mais estrita beleza
e modernidade.
Sua leitura exige - mesmo do
"leitor perfeito" da teoria psicológica do Dr. Richards -
considerável esforço de reflexão. Os símbolos são emotivos e
míticos, não se aproximando em nenhum momento da experiência
mística. Nisso guarda certa semelhança com o T. S. Eliot de The
Waste Land. A abertura do poema éfantástica e poucas vezes a nossa
poesia moderna alcançou tais alturas:
Seu rei mandou dizer
que Nabucodonosor tinha receio
dos seus sonhos mais simples:
um pato que o comia
num prato de iguarias
ou uma pequena ave
que o rei engolia
com as penas que tinha
e isso sufocava seu sono
mas acima de tudo: o que
queria dizer?
Fernando Monteiro mostra-nos: o
que os Reis mandam dizer nada significa. Textualmente: "talvez não
tenha importância". Mas é preciso levar em conta para onde nos levam
os sonhos. Por que eles nada nos dizem dos sonhos repetidos, com
ligeiras modificações das imagens mas sempre as mesmas? Algo como a
"Casa de Usher"
com um mesmo lugar,
uma mesma coisa, as mesmas
surpresas que já conhecemos
mas logram nos surpreender
de cada vez que penetramos
na terra suméria de todos
os enganos das eras
em que contamos a idade
da esfera em que escorregamos
quando sonhamos
Frye viu no ritmo associativo da
lírica uma certa capacidade de reter uma conexão com o sonho,
correspondente à conexão do drama com o ritual. É aí onde
encontramos o sentido catalão que serve de epígrafe ou prólogo a
este livro: "Eu, Gerión, um símbolo do engano / em meu corpo de
serpente alimento / A esperança de ver tentar, em vão, / Teu mundo
que trama, vento silente". O leitor despreparado em mitologia diria
- sem nenhuma reflexão crítica - que Gerião é um mito grego. Sim.
Quase todos os mitos que conhecemos são gregos. Mas todos os povos
têm sua mitologia. É preciso lembrar que a maior parte desses mitos
foram formados por civilizações mais antigas e transformados pelos
gregos que lhes deram novos nomes quando criaram os seus deuses.
Homero é o fundador da literatura ocidental. Mas é preciso não
esquecer as lições do velho Jorge Luís Borges. Ele gostava de
trabalhar com labirintos e mitos gregos, mas consciente de que as
cidades-estado sumérias já haviam organizado suas mitologias em
épocas muito remotas. Mais antigas ainda são aquelas tradições
egípcias. E logo os espaços entre o Eufrates e o Tigre. Foram esses
povos que inventaram o Simurgh, ave feita de pássaros assim como o
europeu Dante inventou a forma da Águia, ave feita de Reis. Mas é
necessário saber que a Águia é o poder temporal de Roma e Israel; e
o Simurgh, cujos pássaros que o procuram se reconhecem nele,
representa o panteísmo. Nenhum dos dois existem senão como criação
da língua poética. Ambos - Águia e Simurgh - são genuínos produtos
da "máquina do espírito", diria o velho Borges. E Gerión é também
produto de tal máquina: É o que fica implícito no texto de Fernando
Monteiro.
(in Diário de Pernambuco, 17.11.1997)
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