César Leal
O soldador de palavras
O Dr. I. A. Richards, que foi um dos
teóricos mais influentes da crítica de poesia no início do século,
costumava dizer que as sílabas embaraçosas, difíceis de pronunciar,
só poucas vezes poderiam agradar ao ouvido. Majela Colares parece
haver seguido tais conselhos, o que não significa ter sido
obrigatoriamente um leitor dos Principies of Literary Criticism,
de Richards.
A poesia é uma arte que se aprende
mais com o hábito da leitura dos bons poetas do que propriamente nos
manuais de poética ou nas faculdades de letras, onde as leis da
poesia são ensinadas de forma sistemática. Parece-me que Majela
Colares aprendeu assim, com os velhos mestres, como demonstram as
numerosas epígrafes, inclusive de Safo, em um soneto de amor, onde
aparecem rimas co- locadas à direita e à esquerda de cada estrofe.
Sabe-se das dificuldades de rimas à esquerda, tão difíceis quanto as
rimas internas das quais os românticos abusaram em seus poemas.
Mas é a própria composição que dá
título ao livro quem define o trabalho do poeta. Pelo menos de um
poeta com as preocupações técnicas de Majela Colares, neste O
Soldador de Palavras:
Fazer poemas é soldar palavras,
fundir o signo – literal sentido –
do verbo frio, transformado em chama,
aceso verso, pensado e medido
sob a moldura da expressão intensa
fingem palavras um som mais fingido
além, no ocaso, da sintaxe extrema,
fuga do verbo não mais definido.
Criado o texto, com idéia e tinta,
forma e figura em linguagem extinta,
quebrando regras de comuns fonemas.
A idéia é fogo. Fogo... o verbo aquece.
A tinta é solda que remenda e tece
versos, metáforas... por fim, poemas.
Dizia Shelley que os poetas são homens
de consumada prudência. Ao que parece, Majela Colares, que é um
poeta jovem - poeta da geração de Mário Hélio, Weydson Barros Leal e
Alexei Bueno, para citar apenas três recentemente entrados na casa
dos trinta anos - deu-nos neste soneto uma fórmula ou pelo menos um.
dos modos como ele escreve poesia.
Preferiu utilizar a metáfora da
soldadura, uma noção de que poesia é trabalho e não mera confissão.
Um trabalho difícil, esse de soldar palavras. Certamente, Mallarmé o
reprovaria, ao dizer que o texto fora criado com "idéia e tinta".
Pelo menos o termo abstrato "idéia” que com certeza não seria aceito
pelo mestre quando nos recordamos de sua resposta ao pintor Degas.
Contudo, tenho grande admiração por Mallarmé mas nunca aceitei sua
tese de que "poesia não se faz com idéia e sim com palavras”. Volto
a Majela Colares e vejo que ele nos fala em “forma e figura", idéias
muito caras ao poeta-engenheiro Joaquim Cardozo. Fala ainda em
metáforas.
Ora, a metáfora é uma imagem, imagem
poderosa pois sem imagens não se pode escrever boa poesia. O erro de
Mallarmé foi dizer a Degas que poesia não se faz com "idéias” quando
devia mostrar-lhe que poesia se faz é com “imagens" e não com
"palavras” como ensinou ao pintor. As palavras - já o disse e direi
novamente - são elementos acessórios e nisso o velho Hegel tem razão
de sobra quando diz que a imagem presente no espírito tem de ser
captada pelo poeta através de palavras. Encontrar as palavras
apropriadas à configuração da imagem é um dos trabalhos mais sérios
que o poeta tem de executar. Imaginem Shakespeare privado da
utilização da imagem metafórica. Dante impedido de utilizar o
símbolo - algumas vezes produto da imagem continuada - ou da
alegoria. Homero sem imagem nem sequer poderia ser chamado de poeta.
Majela Colares diz no "Poema Anônimo":
"O poema que não fiz/ traduz meu mundo/ está implícito.../ único/ em
meu verso/ já não sei quem sou/ quem ele é/ – fundiram-se todos os
limites”. Observem a força desta imagem: “fundiram-se todos os
limites”. Parece aquele instante da tarde quando o sol estando
prestes a se ocultar no poente, todas assombras das coisas fixas-
edifícios, árvores, animais etc. - se aproximam. De súbito o sol se
põe e as sombras dessas coisas se unificam, abolindo os espaços
entre elas. Esse é um fato que já tive oportunidade de observar e ao
concluir a pesquisa, escrevi o poema “Análise da Sombra”.
Há numerosas singularidades gráficas,
que muitos detestam. Quanto a mim sempre gostei muito da poesia
visual. Parece-me de grande beleza a forma gráfica de muitos dos
seus poemas, em especial o "Canto Jaguaribe”, aquele rio seco que
nos faz lembrar, grandes invernos, “o deus castanho - taciturno,
intratável e violento” - de que fala T. S. Eliot no Four Quartets (The
Dry Selvages). Ao contrário do Mississippi, o Jaguaribe nunca é
paciente. "Quando seco é belo e manso/ cheio é feio e temerário”.
No poema "O Silêncio da Flor” temos um
exemplo da arte de Majela Colares:
Foi quando as flores não vingaram frutos
(nos secos ramos, ressecaram tardes)
as folhas murchas despencaram pálidas,
se dispersaram contornando rastros
pelos caminhos conspiravam fugas
levando marcas de uma morte lenta,
porque raizes omitiram seiva
para mantê-las sempre ao caule, sempre...
mas foi da terra sim, que a morte veio
do chão que a planta ruminava nuvens,
o fio de água, transformado em lodo,
contido pela rigidez da argila.
Quando as folhas retornaram adubo:
(nas secas tardes, renasceram ramos)
antigas folhas inundando o caule,
imune seiva, frutos-flores, quando...
Como se vê: as melhores mentes jovens
do fim do século XX, prestam homenagens - em dedicatórias e
epígrafes - aos velhos mestres e também aos novos. Mas não os seguem
passivamente. Criam suas próprias falas, sua própria língua poética.
Assim é Majela Colares.
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