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Jornal do Conto

 

 

Cyro de Mattos


 


 O Goleiro Leleta

 


 

Rio Claro é uma cidade pequena perdida na imensidão da terra. Foi batizada com esse nome em razão do rio que passa nos fundos, brilhando feito um espelho, deslizando sereno com suas águas e vertentes claríssimas. Tem um clima agradável, estações temperadas de sol e chuva. Lá, a vida é calma, nada de importante para a história da humanidade acontece no ano. Mas nenhum de seus habitantes pensa em trocar a tranqüilidade de Rio Claro pela vida numa cidade grande, dessas onde as pessoas saem de casa cedo para o trabalho e só retornam à noite, cansadas. Enfrentam o tráfego perigoso todos os dias, com carros velozes cantando os pneus no asfalto e correndo para todos os lados.


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Em Rio Claro existe uma praça com jardim. A bandinha toca valsas, choros e marchas no coreto, aos domingos pela manhã. O cinema foi instalado no salão atrás da feirinha. O padroeiro da cidade é Santo Antônio, sua pequena igreja foi construída numa colina e é avistada de qualquer parte da cidade. Os fiéis chegam até a igreja depois de subirem uma escadaria com muitos degraus.

A procissão de Santo Antônio é a mais concorrida de todas. Vem gente de tudo quanto é lugar escondido, dali próximo e dos pontos mais distantes. A Filarmônica toca o hino de Santo Antônio na procissão, vagarosa ela percorre as ruas da cidade em pouco tempo. O povo acompanha a imagem do padroeiro sendo carregada no andor florido, os rostos contritos cantando com emoção e rezando com fé.


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O campo de futebol de Rio Claro fica nas imediações do prédio escolar. Em vez de murado é rodeado de folhas de zinco, pregadas em esteios de jaqueira. A cobertura da arquibancada é também de zinco, está enferrujada e furada há anos. Os assentos são de cimento, foram construídos como se fossem bancos compridos. Só quem possui cadeira de madeira com assento de couro de zebu para assistir aos jogos é o juiz de direito, o prefeito, o padre e o delegado. Quando é dia de jogo importante, cada autoridade senta-se na sua cadeira, em cujo encosto, atrás, está assinalado o nome do cargo, pintado em letras grandes.


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Quando se discute futebol em Rio Claro, na praça ou em outro lugar, o torcedor do São José Futebol Clube, sem esconder certo orgulho na voz, diz que o seu time é o mais querido na cidade. É o que tem mais torcida e mais títulos de campeão, entre os times filiados à Liga Amadora de Futebol de Rio Claro.


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Se acontecer de um jogo importante do campeonato estar marcado pela tabela para um desses domingos com céu azul e sol forte, o pequeno estádio de futebol de Rio Claro fica superlotado. O campeonato é disputado por seis clubes locais, mais o Expressinho de Burburinho do Paraíso e o Ipiranga de Serra Grande, que participam como convidados.


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Burburinho do Paraíso é um lugarejo que fica distante de Rio Claro cerca de vinte quilômetros. É bastante falado por causa da feira que funciona na pracinha onde o trem faz uma parada antes de seguir para o fim da linha, nas imediações do vilarejo de Serra Grande. O movimento é intenso em Burburinho do Paraíso aos sábados. A feira tem tudo o que se possa imaginar. Só se vê gente pra lá e pra cá, a feira, como uma onda, vai e vem. As pessoas chegam alegres e voltam risonhas com tanta coisa que compram por um preço barato.


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Os moradores de Burburinho do Paraíso dizem que ali é que é lugar de viver. Ora essa, é um lugar mais bonito que Rio Claro. Nem se pode comparar. O luar lindo clareia o chão como se fosse de dia. As flores nas sacadas e quintais soltam um perfume à noite que suaviza o sono de qualquer pessoa.


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Num domingo de inverno foi realizada a partida do campeonato organizado pela Liga Amadora de Futebol de Rio Claro, reunindo as equipes do Expressinho de Burburinho do Paraíso e do São José Futebol Clube. Os times entraram em campo sob os gritos de cada torcida e um foguetório de ensurdecer que espocava na tarde cinzenta.


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O Expressinho de Burburinho do Paraíso empatou com o São José em zero a zero, conquistando o campeonato, numa partida considerada pelos torcedores como a mais disputada pelos dois times nos últimos tempos.


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Mas a tristeza que tomou conta do goleiro Leleta só foi um pouco atenuada com o empate que o Expressinho de Burburinho do Paraíso conseguiu arrancar de seu mais tradicional rival, obtendo o título de campeão da Liga Amadora de Futebol de Rio Claro pela primeira vez.


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A conquista do campeonato pelo Expressinho recompensou o esforço que o goleiro Leleta fez para jogar a partida decisiva, apesar de saber que seu pai, o velho Neco, estava sendo velado em Burburinho do Paraíso.


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Os companheiros do goleiro Leleta foram confortá-lo depois que o juiz encerrou a partida. Os jogadores do São José fizeram o mesmo. Ele estava parado na linha do gol, sem nada dizer.


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Quem esteve com o goleiro Leleta antes de começar o jogo ficou admirado de sua passiva tristeza. Ele explicou que queria jogar aquela partida de qualquer maneira porque nada mais adiantava fazer. Queria ver seu time sagrar-se campeão, já esperava receber a notícia da morte do pai a qualquer momento. “Essa é uma hora que chega pra todos nós”, observou, em seu jeito simples. Mas não ia ser um acontecimento difícil daquele que ia tirar a sua tranqüilidade e impedir que defendesse as cores do Expressinho de Burburinho do Paraíso.


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O goleiro dedicou o título de campeão conquistado a seu pai. Ele falou que o velho Neco ia ficar contente se estivesse na torcida. Assistiria a seu time disputar a última partida com o São José. Assistiria ao Expressinho de Burburinho do Paraíso jogar a partida decisiva pelo empate e tornar-se campeão.


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O velho Neco foi o fundador do Expressinho de Burburinho do Paraíso. Se dependesse dele, o Expressinho nunca deixaria de participar de um campeonato organizado pela Liga Amadora de Futebol de Rio Claro. Ia bater de porta em porta, fazia rifa entre os torcedores, corria o livro de ouro na feira. Armava até quermesse no jardim em frente à igreja. Só ficava em paz consigo mesmo quando conseguia ter em mãos o dinheiro completo para comprar um jogo novo de calção e camisa para o seu time.


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Azul e branco eram as cores da camisa do Expressinho de Burburinho do Paraíso. Azul e branco eram também as cores do coração do velho Neco. De uns tempos para cá, aquele coração, que tantas vezes vibrou com as vitórias do Expressinho, vinha batendo baixinho. Já não consolava mais os jogadores do Expressinho quando perdiam uma partida importante.


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O velho Neco tinha 78 anos. Os cabelos ralos, poucos dentes na boca, os olhos esverdeados no rosto pequeno. Durante anos foi, ao mesmo tempo, diretor, técnico, massagista e roupeiro do Expressinho de Burburinho do Paraíso. Ultimamente, estava andando com dificuldade, as pernas não comandavam o corpo. Permanecia recolhido ao quarto, onde às vezes passava o tempo todo tangendo galinhas que ele imaginava fossem dormir debaixo da cama. Falava para si mesmo umas coisas que os de casa não entendiam. Pronunciava numa voz pastosa o nome do Expressinho, que saía da boca velha num tom doído, marcando no seu rosto uma expressão de saudade.


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O velho Neco sabia que o maior ídolo do Expressinho de Burburinho do Paraíso era o seu filho Leleta. Disso muito se orgulhava. As defesas incríveis do goleiro levavam a torcida ao delírio.


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A mulher e os dois filhos do goleiro moravam em Burburinho do Paraíso. Junto com eles morava também o velho Neco. E ainda dois irmãos do goleiro. Leleta era o mais velho dos irmãos e o responsável pelo sustento da família.


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O goleiro Leleta deixou o estádio onde ainda alguns torcedores permaneciam na geral. Antes de viajar para Burburinho do Paraíso, teve a preocupação de passar em sua barraca de peixe perto da rua do comércio. Ali apanhou algum dinheiro para as despesas com o enterro do pai; o dinheiro que sobrasse ia deixar com a mulher.


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Foi para Burburinho do Paraíso no seu caminhão velho, pensando em chegar a tempo de participar pelo menos do enterro. Veria então o pai pela última vez, enrolaria o caixão com a bandeira do Expressinho de Burburinho do Paraíso e diria: “Vá em paz, velho, que somos os campeões”.


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Durante a viagem, o goleiro ficou lembrando as manifestações de pesar que tinha recebido dos jogadores dos dois times. Agora, seria ainda mais o maior ídolo do Expressinho. Fizera a melhor partida de sua vida e, durante os noventa minutos, fechara o gol com defesas sensacionais. Nas bolas altas ou rasteiras, praticara defesas milagrosas, elásticas, precisas e corajosas.


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Um céu de teto preto despejou uma chuva forte no segundo tempo do jogo. O campo tornou-se pesado e escorregadio. Os jogadores tinham dificuldade em dominar a bola.


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Enquanto o caminhão seguia, sacolejando na estrada de barro por causa dos buracos, não saía da cabeça do goleiro aquele momento mais difícil do jogo. A torcida do São José explodiu numa só voz de alegria quando o juiz marcou o pênalti cometido pelo zagueiro do Expressinho num lance bobo. O zagueiro cortou com a mão uma bola que sairia pela linha de fundo sem oferecer qualquer perigo.

Leleta pediu calma aos seus companheiros.

Colocou a bola na marca do pênalti.

Esperou o apito do juiz.

Sem se mexer, ficou no gol com os braços abertos.

Quando o juiz trilou o apito, o jogador do São José desferiu na bola um chute violento, mas o que se viu, para o espanto de todos, foi um salto rápido do goleiro, parecendo ter sido dado por alguém feito de borracha. O goleiro todo esticado tocou na bola com a ponta dos dedos, mandando-a para fora. Com a defesa mais difícil de sua vida, Leleta garantiu o empate e o título de campeão para o Expressinho de Burburinho do Paraíso.


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Logo após defender o pênalti, os torcedores entusiasmados passaram a gritar o nome do goleiro. LE-LE-TA! LE-LE-TA! LE-LE-TA! E ele, rosto molhado, agradecia, acenando para a torcida, que agitava as bandeiras desfraldadas e gritava num só coro de dezenas de vozes: “É campeão! O Expressinho é campeão! É campeão...”.


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Terminada a partida, o goleiro ficou comovido ao ouvir a charanga tocando o hino do clube. Sentiu naquele momento emoção igual àquela que teve antes de começar a partida, quando os torcedores ficaram de pé no pequeno estádio lotado, durante o minuto de silêncio dedicado ao velho Neco.


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Os torcedores custaram a sair do estádio depois que o juiz encerrou a partida. Continuaram a gritar o nome do goleiro, que tinha as mãos doloridas de tanto fazer defesas arrojadas e repor a bola em jogo.


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Tudo era só festa na arquibancada e na geral. A torcida do Expressinho de Burburinho do Paraíso vibrava e cantava. Torcedores abraçavam-se. No gramado, um menino, que tinha Leleta como o seu maior ídolo e depois viria a escrever esta história, viu quando o goleiro pegou a bola com as mãos sujas e aninhou-a no peito, como se estivesse tentando abafar uma dor que vinha pulsando dentro dele. O menino ouviu-o pedir a alguns torcedores que saíssem da frente. Queria ver melhor a torcida, que agitava as bandeiras, comemorando animada o campeonato que o Expressinho de Burburinho do Paraíso acabava de conquistar, depois de trinta anos de fundado. E de maneira invicta.

O menino viu ainda os olhos do goleiro percorrerem devagar por entre a torcida com as bandeiras desfraldadas. Era como se quisesse achar naquele instante o velho Neco no meio da euforia e do barulho causado pela conquista do título.


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Geralmente, o goleiro atirava a bola ou sua camisa para o velho Neco no meio dos torcedores, onde sempre gostava de ficar, quando o Expressinho de Burburinho do Paraíso ganhava uma partida importante.


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Então, o goleiro Leleta chorou muito, só, debaixo do gol.


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* A história “O goleiro Leleta” apareceu originalmente na seção “Ultraleve” do jornal A Tarde, de Salvador, em 25 de outubro de 1990.
 

 

 


 

08/07/2005