Cyro de Mattos
Vinte poemas do rio
In:
O Primeiro de Janeiro
Luís Serrano*
Esta obra de Cyro de Mattos, poeta
brasileiro da Baía, foi publicada pela primeira vez em 1985.
Surge em 2005, aquando da passagem do
escritor por Coimbra, uma nova edição, esta da Palimage.
A primeira lembrança que me ocorre ao
ler a obra diz respeito aos poemas O Cão Sem Plumas (1950) e O Rio
(1954) de João Cabral de Melo Neto mas como diz e muito bem Fernando
Py, para se afastar do enfoque do grande vate. De facto, pelo
recurso à infância e através de um rio bem mais humilde, o rio
Cachoeira, Cyro de Mattos desvia-se do grande Capibaribe, rio de
lodo e ferrugem (Cão sem Plumas I) ou ainda [rio que] Entre a
paisagem / (fluia) / de homens plantados na lama; / de casas de lama
/ plantadas em ilhas / coaguladas na lama; / paisagem de anfíbios /
de lama em lama. (Cão sem Plumas II). Ora, o rio de que nos fala
Cyro de Mattos nada tem a ver com este Capibaribe de Melo Neto.
Há antes nesta obra uma espécie de
recuperação do tempo perdido para citar ainda Fernando Py.
O rio e a infância do poeta correm
lado a lado. O rio é simultaneamente definitivo (primeiro poema, p.
27) e enigma (último poema, p. 59).
Toda a obra constitui uma clara
assunção da simplicidade e uma recusa da grandeza que de algum modo
esmaga a infância. Logo no primeiro poema (p. 27) se diz: Não me
tragam o Amazonas / com o seu mundo de água / ou o Nilo e suas
dádivas / mas um rio com seus remansos […]. Esse primeiro poema
funciona como um programa para a obra pois já aí se fazem
referências a lavadeiras, areeiros, meninos, temas que serão
desenvolvidos noutros poemas.
Este é um rio de águas claras,
frescas, saltitantes ou como diz o poeta Água pura / Melhor só no
céu (p.31).
Tudo é essencial nesta obra: a canoa,
o peixe, o porco, o cão, a galinha, a semente, o cacau. É uma poesia
ascética que, mau grado as diferenças relativas à poética de Melo
Neto, vai no mesmo sentido, isto é,
Sem perfumar sua flor,
sem poetizar seu poema.
A defesa da sobriedade (o efémero à
margem / ante o eterno que passa, p. 39) é assumida do primeiro ao
último poema.
Anotem-se de passagem alguns
neologismos: diversicoloridas (p. 41), rioflor (p.45), neologismos
que vão ainda no sentido da contenção com um aumento evidente da
carga significativa. E também o recurso à anáfora para sublinhar a
importância de um verso: Lá vem o meu rio menino (p. 29) e Naquele
rio pequeno (p. 49), repetidos quatro e seis vezes, respectivamente.
Este microcosmos (Naquele rio pequeno
/ toda a metáfora do mundo, p. 49) é dado poeticamente por um número
relativamente reduzido de vocábulos (20) mas que se repetem com uma
frequência significativa (três ou mais vezes):
Pela simples observação do quadro se
verifica que os vocábulos mais frequentes são água(s), rio,
menino(s), lua, mundo e pedras.
A água é um elemento fundamental, tem
uma conotação matricial, uterina, é um meio onde a vida nasce e se
desenvolve. O rio remete para a passagem do tempo (Heraclito:
ninguém se banha duas vezes no mesmo rio e daí a impossibilidade de
o poeta voltar à meninice, ao rio que foi o da sua infância; esse
morreu, só a poesia o pode ressuscitar pela mão do poeta).
Os meninos são a expressão inequívoca
da infância. A lua projecta-nos para o sonho, para aquela
“realidade” onírica que constitui os fundamentos da utopia, sem a
qual a arte perde sentido. Mundo que aparece, sobretudo no poema da
p. 49, tem o significado abrangente de continente onde todo o
conteúdo se inscreve. As pedras aparecem sempre ligadas ao rio e às
lavadeiras: é sobre elas que se lava a roupa e são tão importantes
que o poema acaba com o verso tão ser tão pedra tão água, síntese
perfeita do rio.
A obra vem enriquecida com a tradução
para inglês levada a cabo por Manuel Portela. Não tenho competência
para me pronunciar sobre a qualidade da tradução mas Manuel Portela
é um poeta, não apenas com formação académica mas também com uma
experiência de tradutor com créditos firmados. A terminar, não posso
deixar de fazer uma referência elogiosa ao interessante e lúcido
prefácio de Graça Capinha.
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