Cyro de Mattos
Ladainha nas Pedras
NO CÉU NUVENS LANZUDAS BOIANDO, HÁ
DÚZIAS DE ASAS NEGRAS NO AR.
O sol deita forte luz sobre acanhadas moradias, algumas estão
escoradas com velhas estacas nas esquisitas construções: a madeira
das paredes e fachadas encardida com a sujeira acumulada pelo tempo.
O bairro pobre da cidade tem inúmeros becos e encruzas, os casebres
na cacunda dos outeiros, sobe por caminhos tortuosos, incríveis
veredas, entradas estreitas e compridas, algumas delas sem saída. À
noite, as casinhas são alumiadas como num presépio nascido de mãos
milagrentas, o bairro vidrilhando reaparição por ladeiras e
outeiros. Nos barrancos à beira do rio, perto da Ponte Velha, estão
alguns barracos pequenos, foram construídos na madeira empretecida,
o mais encardido com uma cobertura de zinco enferrujado, a entrada
estreita pelo canto. Onde uma mulher gorda, cabelos assanhados,
busca sempre com dificuldade mais espaço por dentro do balcão
pequeno. As mãos carnudas, o couro cascudo que se engrossou na
rudeza do ofício, arrumam a mercadoria de variada procedência: de
boi, porco, cabra, carneiro. Mãos incansáveis tornam vísceras de
animal em pequenas bolas, o atendimento prestimoso é feito a uma
enorme freguesia todos os dias.
Nas manhãzinhas, o tempo friinho, a neblina toalhando o bairro,
surge uma voz no peito que geme, a mulher sabe que tem início mais
um dia de labuta. Toma fôlego a voz arrastada sob a respiração
controlada, cadenciada num ritmo monótono, alteia e abaixa, soa
arrebatada de quentume sob o silêncio de ruas e encruzas. Um vento
frio leva aquela voz com o seu canto de alerta e aviso pelas ruas da
frente, introduzindo-o nos casebres como num choro moído, ressoa na
frincha das portas, lá dentro onde homens e mulheres movimentam-se
com os primeiros gestos do dia. Logo surge o primeiro freguês, o
rosto embaçado de neblina com sinais visíveis do sono pesado, noite
que se fez reconfortante no esforço do corpo, após duro dia de
embate.
- Louvado seja!
Nas carnes de Bituta, o cheiro de vísceras infiltrou-se, odor ardido
ressuma do corpo com as carnes flácidas, aonde vai, as nádegas
gordas balançam. Os vira-latas fazem-lhe sempre companhia, línguas
vermelhas cercam os passos arrastados nos chinelos gastos, varizes
são cordões azuis nas pernas inchadas. Surgem de onde-onde os cães
em busca de resto de comida. “Afasta-se, rabugento, vai caçar comida
no lixo!” – grita Bituta. O chinelo tira um estalo cascalhento,
raspa a poeira do chão, a remetida violenta. Quando não, acerta em
cheio naquele focinhudo, o animal repuxa os quartos, a boca
esganiçante, a dor cegando-lhe a direção, azoadamente se arrastando
com o rabo entre as pernas. Os latidos doloridos quebram o silêncio
das ruelas.
Os moradores do bairro conhecem por demais aqueles gestos, sabem que
não têm a menor presteza, em pouco tempo os vira-latas retornam,
ainda mais esfomeados. Na danação da fome, os cães ficam arrodeando
o barraco, alguns até se misturam com os filhos de Bituta, de
corpinhos preguiçosos, as cabeças grandes, os pescoços finos, os
olhos graúdos, as perninhas que nem galho de arvoredo seco. Nas
andanças pelo bairro, eles se apegam ao avental da mãe, confundem-se
na barra da saia, atrapalham uns passos avexados. Os tons
lamuriosos, vozes fatigando pedição, bocas como que formando uma
única boca, na ladainha sem fim a filharada reclama: “Mãe, comida,
minha barriga dói de fome!”. Aperreada, numa agoniação afogueando
cabeça, tronco e membros, raivando os peitos, que balançam como dois
mamões maduros, Bituta responde: “Cala a boca, fominha, que o fraco
só come uma vez”. E nervosa acrescenta: “É se conformar, anda!” O
cortejo segue agoniado, marcado pela romaria de pedidos, Bituta
vendo os filhos com as tripas roendo de fome, os estômagos enjoados
com o pouco comer.
Andarengando, lá se vai a mulher com os filhos, entra no beco, desce
o declive da rua estreita, dobra à esquerda rumo à beira do rio, os
meninos insistem nos mindantes, as barriguinhas verminosas, Bituta
com os pensamentos infernizados. “Volta pro barraco, arrelientos de
uma figa, não já ordenei?” Os filhos com os olhinhos espantados,
alvoroçados com o berro da mãe, na medrosa carreira os passos
daquele, o mais grandinho, arrastam-se manquejantes. “E o que é que
vocês três ‘stão esperando? Caminha, que vou buscar comida no
matadouro!” Os vira-latas seguem rabanando Bituta, os peitos
tuquetuqueando agonia, os olhos tristes revelando mais uma vez que
seus passos sempre caminharam pelo martírio dos dias. Os passos que
andaram por uma estrada que não tinha fim, onde o tempo não se
fartava com o esforço dos dias. De madrugada começava a chamar a
freguesia com a monótona cantoria no barraco,, ali ficava até o
entardecer. Cansadas as pernas retornavam ao início do mesmo
caminho, percorriam um círculo que lhe era íntimo em todos os
sentidos, esbarrando enfim naquelas bocas famintas nos pedidos:
“Mãe, comida, minha barriga dói de fome”. “Valha-me meu bom São
José, que os meninos ‘stão que nem cego de feira. As bocas
entulhadas dos pidantes”. Estriziados nas pedras da vida, com o
sangue pisado e repisado na sola dos pés, os passos interrompiam a
caminhada, numa parada breve buscavam se aliviar do repuxo de sua
marcha. Fincavam-se em algum ponto da estrada áspera, sempre marcada
pela labuta, sempre entoada pela pedição dos filhos. Os pensamentos
desprendiam-se nos longos saltos do sonho.
Bituta imaginava armar um dia grande barraco atrás do Curral Velho,
onde a cidade aos sábados voltava-se para a feira, ali se movendo
como num enorme burburinho. A princípio, nesse barraco venderia
farinha, arroz e feijão, e, com o tempo que traria certamente grande
freguesia, teria nele um bom sortimento em produtos secos e molhados
, então com a venda de coisas graúdas e miúdas se veria aliviada
daquele penoso passadio. Os filhos ficariam de boca quieta, a
choramiação emudecida, as caras tomando novo hálito de vida. E se
via labutando no barraco atrás do Curral Velho, no barraco grande,
ressalte-se, já num armazém que venderia também louças e porcelanas,
por que não bandejas, copos finos e bibelôs? E toalhas de mesa
formosas e cortes de fazenda rara e sapato da moda e sapato macio e
sapatina e chinelos macios como algodão e lençol de linho e cobertor
de lã e colchas de fios brilhantes e fronhas e vestidos bonitos e
elegantes pra uma clientela formosa e distinta e. um pouco de tudo
que se venda neste mundo e... e... e... o armazém daria lugar a uma
grande loja na rua do comércio, a mais procurada pelas pessoas ricas
da cidade, com vitrinas decoradas e anúncio luminoso e com uma parte
dela destinada para vender geladeira e fogão a gás e TV a cores e
lustres de cristal e colchão de molas e mesa de jacarandá e... E a
razão foi dando pasto aos sonhos, que urdidos e remoídos foram
passando como essas águas do rio Cachoeira, seguindo todas as horas,
entre as pedras pretas, rumo ao mar de Ilhéus.
Assim, com o rio da vida fluindo dentro, os cabelos foram ficando
brancos cedo, a boca encrespada de pregas, lábios pelancudos onde
comissuras entremostram os rastros por onde passou a fugacidade dos
sonhos. Nem tinha mais conta dos dias em que acordava cedinho, os
olhos remelentos de sono. O Cachoeira dormia nas águas quase
imóveis, ainda salpicadas da luz que descia das estrelas vidrilhando
no céu. Sempre sentiu aquele rio como dádiva de Deus ao povo pobre
da cidade, pão e ubre, bondade de ventre que nunca cansava. O outro
rio, escorrendo nas águas da vida, misturadas com pouca gente rica e
muita gente pobre, ficava à margem ante o eterno que passava através
do Cachoeira em seu passo de cobra. Nos instantes de maior aflição,
o corpo cansado, olhos de tristeza, não sabia por que encontrava
alento na serenidade daquelas águas, que desciam rumo ao mar, no
caminhar preguiçoso daquele rio, tão areia, tão pedra, tão espuma.
Um rio que já estava ali antes que alguém chegasse por aquelas
bandas, descendo com o seu mundo de mistério, lendas e assombrações,
iaras que plangiam canções como que tocadas por muitas flautas. No
último inverno, de repente o rio amanhecera grosseiro. O Cachoeira
levava tudo o que encontrava pela frente, as casas ribeirinhas,
afogara até três pescadores, que de teimosos não se intimidaram com
a zanga das águas. De boca assombrada ficou o povo do bairro, não se
cansou de dizer que Deus vomitara castigo pelo bucho do Cachoeira.
Bituta nunca conseguiu se esquecer da agonia que teve naqueles seis
dias da cheia. Os homens recolheram o corpo de Arnóbio das águas
enraivadas nas imediações da Marimbeta, ele que era tido pelo bairro
como o pescador mais corajoso, nunca tremera uma linha do rosto
quando o rio nas cheias descia desembestado.. Os homens tiraram o
corpo de Arnóbio dos peraus da Marimbeta, o sexo comido pelos
peixes, o rosto cheio de cortes, por onde as águas mais haviam
deixado a sanha da sua passagem. Teve então de falar aos filhos que
a Mãe d’Água havia carregado o pai deles para o fundo do rio, a dona
do Cachoeira precisara dos préstimos dele, seu homem agora vivia num
palácio encantado, não mais iria retornar pra pescar no Cachoeira e
fazer com que ficasse menos penoso o passadio dela e da filharada.
As palavras não conseguiam esconder a verdade que durante meses
pulsou dentro, bastava estar sozinha à noite, escorriam no rosto
outras águas que minavam pelos olhos.
Nem mais precisava os dias em que acordava cedinho, madrugando o
silêncio do bairro, o sol encoberto pelas cabeças dos morrotes. Da
vendagem da sua mercadoria, sabia Bituta, o que se apurava pouco
dava para o gasto das necessidades corriqueiras. Em pouco tempo, os
ouvidos atormentavam-se com o choramingado dos meninos. E se
reencontrava cercada de uma certeza definida, absoluta como a
descida do Cachoeira, todos os dias a se despedir da cidade no seu
destino de rio. Separada pelo rio da vida, a feira da estação cada
dia ia se tornando mais longe, ponto inacessível ao itinerário de
seus passos, sofrida andança feita de vísceras de animal, suor e
pano sujo. E sabia que, aos sábados, a feira do Curral Velho ia e
vinha numa grande onda, mexendo-se como um grande burburinho. E as
esperanças iam delongando por uma estrada que bem conhecia,
deixando-a num dia sem sol e numa noite sem sonho, apenas ela
abandonada em companhia das próprias chagas: as esperanças fugiram
como carregadas por um vento solitário, e os sonhos, acalentados num
chão verde com árvores que davam frutos bons, foram desejos nunca
alcançados.
II
No teto do bairro, o sol rastreia
entre nuvens noivas, de tão lentas quase não se movem.. Raios
brilhantes são patas de luz de enorme aracnídeo, lâminas afiadas que
perfuram nuvens, resvalam nos casebres, pairam nas ruas, encruzas e
becos. Bituta caminha por uma estrada que ela só nunca soube onde
começa e muito menos onde tem fim. Passos difíceis ainda buscam
disposição, não querem se render à fadiga extrema do corpo, no sal
da vida não pensam em derrota um só instante. Os passos arrastados
movem pernas arqueadas, as moscas voando em volta do avental sujo,
os vira-latas trilhando o corpo com o cheiro de vísceras, nas pernas
veias como se fossem cordões. Ela sente que os sestros são lágrimas
que espinham, faces sob a pele enrugada dão para qualquer um ver que
abandono e labuta são moradores da alma, sinais inevitáveis do ritmo
dos pés nos chinelos empoeirados, mas com uma coragem que não se
sabe onde conseguiu reunir forças para enfrentar a indiferença dos
dias.
O bairro flutua num mormaço vindo de todos os cantos.
Perto do matadouro, de guarda-chuva a sol a pino, os urubus pousados
nas estacas de uma cerca velha.
Foi quando três moradores do bairro saíram apressados do casebre,
assustados com o barulho que veio de fora. Horrorizados estacaram no
passeio, os dois homens e a mulher ante uma surpresa desastrosa e,
vendo seus impulsos amarrados por forças ocultas, não sabem o que
fazer. As rodas suspenderam a poeira da terra, os freios deixaram
grandes rastros no cascalho, no ar aquele cheiro forte de borracha
queimada. A carroceria foi jogada para o fundo, como se grande força
a tivesse arrancado da boléia. Viera adoidado o caminhão de boi,
desenxergando o caminho e, no momento do impacto, revolvera uma
nuvem de poeira. O povinho do bairro logo se ajuntou em torno do
bolo de carnes: a cabeça fendida, uma gosma amarela saindo da boca,
o avental sujo de sangue. Os moradores do bairro cabisbaixos ante a
cena que não queriam ver.. Então souberam que os ouvidos de todo o
bairro, rua, ladeira, beco, encruza, não mais escutariam a mercancia
de Bituta, despachando as derradeiras voltas da noite, varando
madrugadas, acordando os dias numas mãos calosas para labutá-los no
Barraco Bom-Sereno.
III
Nessa manhã em que os urubus rodam no
céu, outros aquecendo-se sob o sol na cobertura dos casebres, Bituta
sobe a escadinha de Maria Pirambu, a comadre. “Oi de casa, gente
boa, que é de paz!” – o aviso repete-se apressado, as mãos calosas
batem na porta pequena. Os avisos sacodem a quietude da moradia e
estremecem o corpo da comadre. Os passos pesados esbarram junto à
cabeceira de uma cama velha, feita de tábuas encardidas, fabrico
antigo do carapina do bairro. Olhos sondam os cantos acanhados do
casebre, as telhas corridas no teto, a peça da pequena cumeeira com
uma casa de cupim. Enrolada na coberta puída, emporcalhada de urina
e suor, de retalhos colorida quando dos primeiros usos, a comadre
trinca os dentes com a febre alta. O corpo todo trêmulo, a
batifundar com a febre as tábuas da cama, forrada apenas com um saco
de aniagem. Ela se aproxima para mais perto da cama, a barriga
volumosa, os sestros tremem uma verruga grande no canto esquerdo da
boca. Pelo rosto passa aquele ar triste de quem se lamenta no íntimo
com a fisionomia feia da comadre, olhar cadavérico, cor de água
barrenta. Dias era pra fazer a visita, já há algum tempo fora
informada sobre a doença da comadre, mas cadê uma sobra de hora que
não achava? Sempre entregue à labuta do dia-a-dia, à procura de
diminuir a pedição dos meninos, suas vistas queimando pena com
aquelas boquinhas arrelientas. Também a comadre nunca iria adivinhar
sua aflição, o rosto todo desordenado tomado de preocupação quando
Risoleta Fuinha lhe fez a abordagem: “Bituta, você teve notícia do
que se deu com Maria Pirambu?”
Surpreendida com a indagação, boca aberta engolindo grossas
correntes de ar, Bituta respondeu de sua inocência: “Ora, lá se veio
uma vertigem na mulher, sem mais nem menos! A bichinha ficou verdosa
feito capim das primeiras águas, os olhos duros e atravessados, os
beiços despregados naquele riso atoleimado. O jeito que se teve foi
carregar a infeliz na rede para o Hospital da Santa Graça”. Não se
conteve Bituta e se quebrou numa derramada soluceira, chorando pelos
olhos, boca e nariz, mais fazia esforço para conter aquele choro
mais se via desprendida no verter de grandes águas. “Olhe, comadre,
foi quando me tomou aquele fogo pelo corpo quando lembrei de suas
horas na mesa de operação”, disse Bituta. “Dei então de ficar
inquieta, zanzando bestamente na frente do barraco, esquecida por
inteiro de atender minha freguesia. Se a comadre não escapasse da
operação, o que seria de sua meninada? É só o que a gente pobre pode
pensar nessas horas de vexanças”. Os meninos iam ficar por aí
jogados como cão sem dono, pras meninas a vida reservava a pior das
infâmias. Todas elas pra viver iam ter que vender o corpo como puta.
O corpo de criança ia servir pra mercar o sexo, emburacadinhas no
puteiro sem tirar nem pôr, os peitinhos como dois búzios no duro
ofício de rameira. Se a comadre não escapasse da operação, eram
essas entre muitas as ciladas pela vida preparadas pras meninas.
Comadre, não afastava de mim tais pensamentos, converti-me toda de
preocupação com a sorte das meninas , noites passei puxadas ao
claro, maginava, maginava. Debulhei o terço sem ficar reza desfiada
pra salvação da pobre da comadre. Até há pouco tempo ainda desfiava
o sem-fim de ave-marias, sempre com uma vela que acendia quando a
outra acabava junto à imagem de Nossa Senhora Perpétua do Socorro,
que é minha santa protetora. Nem a comadre iria adivinhar como
Bituta ficou alegre quando das derradeiras falas de Risoleta Fuinha.
Sem se conter de contentamento, a assanhada atirou nela esse
observado: “Ei, Bituta, a Maria Pirambu já retornou do hospital. Não
é que a mulher se deu bem na operação e saiu da enrascada? Mulher de
sete fôlegos essa Maria Pirambu”, acudiu Risoleta Fuinha. Dali mesmo
foi à venda de Ambrosino Teu-Teu, onde comprou mais uma dúzia de
velas, estão alumiando no prato de alumínio o oratório de Nossa
Senhora Perpétua do Socorro, que lhe concedeu a graça de salvar a
comadre em boa hora.. Retomando o rumo certo da conversa, mostrou
Bituta que era sabedora também das agonias da comadre no Hospital da
Santa Graça, acrescentando que tinha passado certa vez por igual
padecimento. Até pouco tempo ainda perturbavam seu sono pesado os
gemidos dos indigentes no Hospital da Santa Graça.. Certa vez, teve
ela de tirar umas pedrinhas que ficaram grandes na barriga,
observara o doutor que era um caso de muita urgência, de oito ou
oitenta, a não ser que fosse de seu inteiro prazer acordar a
qualquer dia de dente preso e olho duro, corpo encaixotado numa
viagem grave para as terras do além. Logo imaginou que fosse terra
que comeu quando era menina, a fome fez que mastigasse muito bolinho
de barro mole pra acalmar no estômago a bicha braba. “Valha-me,
minha Nossa Senhora Perpétua do Socorro, feito porco em matadouro –
zás – iria mesmo cair na faca!” E lá se foi pro Hospital da Santa
Graça. Conduzida para a mesa de operação, embarcou numa cama muito
alva, uma que tinha umas rodinhas nos pés, as vistas entontecidas,
os lábios balbuciavam. Àquela hora só se via com ares enrustidos de
defunto,todo frio se despedindo deste mundo. De tanta reza ligeira,
os lábios caíram no queixo, embeiçudos com tamanha aflição: os
dentes naquela cortadeira um só instante não paravam, chamando o
nome da sua santa.. “Me acode, minha Nossa Senhora Perpétua do
Socorro, faz com que eu fique muito tempo nesta vida, eu não quero
ver meus filhos padecendo neste mundo!” Os quatro dentes restantes
mostraram-se como cacos afiados, quando uma das moças de branco
comentou com a outra: “Que mulher da peste, tomou duas injeções das
grandes e a anestesia nem pegou! Segura a bruta que ela pode dar
coice!” Como iria dormir àquela hora que podia ser só de
assombridade? Se chegado era o momento pra última viagem, que de
olhos bem acesos duelasse com a morte. Bituta não vacilou um só
segundo, desejou, naquele instante, ser uma mula de coice brabo e
rumar a pata certeira nas ventas daquela enfermeira infame. “Vá ver,
comadre, que se assim acontecesse a enxerida se aquetasse, ao menos
seria uma boa resposta pra evitar judiação do pobre nessas horas de
vexanças. Quem sabe até se aquela pesteada não era maninha, nunca
pariu pra sentir a dor da parição e saber o que é o carinho que uma
mãe deve ter pelo filho?” No dia seguinte, disse que acordou como
que surrada com taca rabo-de-tatu, o corpo todo moído, a cabeçorra
pesada. Lembrava-se das paredes enevoadas a princípio, não
identificava o trino do canário lá fora, as vozes no hospital eram
como fala de moribundo no leito cheio de dores. Pelos olhos
inchados, as coisas da manhã dançavam. Pensou que daquela vez sua
hora havia chegado, o corpo estando mais pra urubu do que pra curió,
os meninos sem mãe, engolidos pela boca impiedosa desse mundo. Quem
iria proteger e dar de comer e vestir àquele bando de arreliados?
Pouco a pouco, as coisas foram revelando seus contornos, tomando
forma nos traços mais remotos, se mostrando nas cenas claras e
imagens definidas, lá fora o trino do canário os ouvidos alegrando.
E um riso frágil tremeu devagarinho a verruga grande no canto
esquerdo da boca murcha. Um riso tímido e doce com o seu alívio de
brisa generosa.. “Que estava feliz? Muito-muito”. Restava só um
tempinho pra receber alta no hospital e retornar ao barraco, sabendo
mais que nunca onde estão os pintos a galinha põe os olhos. Os
filhos não arengariam pedição nem esmolariam pelas ruas feito cego
ou aleijado.
Parou um pouco, tomou fôlego e continuou.
Dalvinha então, comadre, já vem botando sinais de moça, os peitinhos
estão saindo como dois búzios, creio que não demora muito pra ela se
juntar com algum moço, contanto que em seu caminho ele seja
respeitoso, no passo direito e não no torto, vivendo com ela numa
casa pobre mas decente, sem nunca faltar comida no prato.. Retornara
então vivinha a seu barraco, não tinha mais receio Bituta que
Dalvinha se largasse aí pelo mundo e fosse vender o corpo a qualquer
um como puta. Depois de operada, permaneceu ainda oito dias no
hospital, passando a ser observada na ala dos indigentes conforme a
ordem do doutor. “Comadre, que vomitório de aflitivos! Gentinha de
sorte mais desgraçada, gentinha de passadio mais inclemente,
gentinha de horas mais agoniadas. Era aquela cantiguinha dia e
noite, noite e dia, pra frente e pra trás, pra trás e pra frente,
gemidos que brocavam até peito de defunto, machucavam que nem
sofrimento de alma penada. E, naquela mancheia de penitenciados,
lastimoso era a bastante desatenção das freiras, de ano em ano
vinham de visita aos indigentes. Algumas delas passavam no corredor
bem preocupadas, a barra da roupa esvoaçando com os passos
apressados. Lá se iam ligeiras para os quartos dos doentes
endinheirados. De lá quase não arredavam, quando uma saía, vinha
logo outra, ali ficavam demorosas naquele atendimento grãfineiro e
atencioso...”
Ela assim que retornou ao barraco, logo sentiu a barriga aliviada,
as entranhas sem aquela coisa que incomoda, enjoada, sem aquelas
constantes pinicadas. Nunca mais apareceram tontices, no lugar delas
cresceu foi uma fome assanhada, indormida e indomável, por isso cada
vez mais no bairro mercando vinha, arranjando o dinheirinho com a
vendagem das vísceras de animal, contando para tanto com fiel e
prestimosa freguesia. “Chegue à frente, freguês, temos tudo
fresquinho, do novinho e do bom: mocotó, tripa, bofe, passarinha,
rim, coração...”
Bituta vê que é chegada a hora de se despedir da comadre. Mostrou-se
contente com o riso que a comadre deu num esforço, procurou ainda
mais animá-la:
- Ponha resistência nesse corpo, quero ver em pouco tempo essa
doença derrubada.
Veja que muita moléstia tomba as criaturas neste mundo só por
encontrar elas com fraqueza na vontade de viver.
Com a voz forte::
- Coragem, muita coragem mesmo’
Prestimosa:
- Alguma coisa você queira, não deixe de mandar pedir por uma das
meninas.
Um tanto triste:
- A gente é pobre, mas nessas horas tudo se ajeita.
Num tom fraquinho, que quase não se escuta, a comadre:
- Amém.
Desolha Bituta a comadre gemendo, o corpo febrento, a coberta com
cheiro de urina misturado com o ar de mofo no quarto.
E mal havia dado os primeiros passos na rua, os filhos vieram se
aproximando: bocas vomitando cantiguinha da fome, aquilo parecendo
chorume de bezerro apartado da vaca antes do tempo, de boiadeiro os
ouvidos de Bituta, atanazados com aquele choro desmamado.
IV
O serrote rangeu nas tábuas velhas, o
carapina ia e vinha nos movimentos íntimos da arte de fazer o caixão
do morto com dedicação para que todos vissem. Aos poucos ia tomando
forma na madeira a competência das mãos solidárias, as intenções de
um rosto calado, que cuidava de dar a Bituta um caixão decente,
envernizado por fora, forrado por dentro com um tecido grosso de
algodão. Os ruídos no serrote arreliaram os ouvidos dos meninos,
agudas as vozes deles com fome machucavam o silêncio do velório.
Todos eles em torno do caixão, não entendiam por que a mãe estava lá
dentro de corpo duro e olho fechado.. Com a ordem de Dalvinha, eles
se afastam dali cabisbaixos, cada um se apega ao outro, já fora do
casebre vagamundam intranqüilos, para lá e para cá, pés descalços
esmorecendo, bocas querem comida a todo instante.
Dedos magros de Dalvinha tesouram lâminas de papel de cigarro. Do
silêncio concentrado, desenha ela corações e estrelinhas, enfeites
que vão saindo dos cortes da tesoura e se amontoando em cima da
mesinha. Nas bordas do caixão, alguns enfeites já foram pregados,
sobre a tampa um anjo feito de seda e papel brilhante, escreveram os
nomes dos meninos num pequeno pedaço de papelão preso à coroa de
flores. Por que mãe não se livrou do caminhão de boi? Será que nessa
viagem sem retorno, os olhos fechados num sono sem sonho, o corpo
imóvel, afinal ela encontrava o repouso que a vida havia
negado?.Pergunta que ressoa dentro de Dalvinha, circula numa zona de
saudade feita solidão que machuca e não desvenda essa hora que corta
como faca afiada.
O sofrimento tem asas na vida do pobre, é difícil um dia bom descer
pela garganta. Por que a vida é boa para alguns e sempre dolorosa
para muitos? A vida assim dividida os olhos nunca vão chegar a
compreender. Os sentimentos de Dalvinha tentam perceber a razão dos
dias sempre desiguais, nesse instante de mágoas, atravessando
camadas espessas de ânsia, labirínticos caminhos no sem-fim de algo
sempre indecifrável para ela. Atmosfera triste envolve o rosto
emudecido, mostra tonalidades depressivas da palidez de suas
paredes. Duros pensamentos, sentimentos amargos trazem agora
andanças que a mãe teve durante a vida inteira. Ritmo sem pausa de
Bituta naqueles passos sempre os mesmos, todos os dias agredidos na
aridez de um chão só de cascalho e pedregulho. Impregnavam o bairro
com labuta, suor em círculo do tempo no esforço.
Corpo com manhãs de calo, tardes de fissuras, madrugadas de uma nota
só, daquela mulher gorda e um piano antigo, que nunca prestou para
acordes suaves, qualquer música que não fosse a da vida que mira o
céu sujo e o chão de sede e fome. Não via a hora de limpar a nódoa,
como fazê-lo, se vivia do sujo que enganava a fome e adormecia a
tristeza? Numas teclas que arranhavam as notas, a música que tocava
era a da vida comendo os próprios olhos, no seu assalto impiedoso
tornou-se hóspede do corpo maltrapilho, cheirando a vísceras de
animal.
Aquela música, aqueles passos, ficarão como sons doídos nos ouvidos
do bairro, em cada peito do morador novo ou antigo.
Como ladainha nas pedras, danação nas veias, sol roxo de martírio.
V
Batido pelo sol de raios fortes e
cortantes, o enterro movimenta-se com o povinho do bairro. De vez em
quando os carregadores vão se substituindo, os punhos solidários
doendo com o peso do caixão. Lavadeiras, areeiros, pescadores,
pedreiros, a cauda enorme de enterro mexe-se como um peixe de nado
triste e lento.
Segue o povinho do bairro penetrado de uma atmosfera sombria, passos
monótonos, rostos entristecidos lançados para o chão.
No casebre, o ar continua impregnado com os mindantes dos meninos,
vigiados agora por Risoleta Fuinha, vendo com dó aquelas
porqueirinhas com o choro de renitente cantiguinha. Aqueles dois com
os rostos virados para a tábua da parede, como que escondidos dos
olhos do mundo, as calças nodosas e rasgadas. Os outros em nenhum
canto permanecem, ora nos fundos, ora na frente do casebre:
mariposas bailando agonia em torno de uma luz que fere e cega?
Sob os passos do enterro surge de repente um vento seco, a pervagar
rastros e rostos no ar triste.. Parece aquele vento querer
acompanhar rostos cabisbaixos, afagar a onda enlutada que se move
vagarosa como um bloco monolítico. Dá agora um corte no ar aquele
vento doído, desvia-se um pouco do cortejo e busca célere os
remansos do Cachoeira, ali mesmo pros lados da Ponte Velha, nas
imediações do Poço da Marimbeta. Mergulha justamente num poço de
águas cristalinas com pedrinhas redondas pousadas no leito, onde
afirmam que ali está o reino da Mãe d’Água com o seu palácio
encantado, feito de ouro e espumas coloridas, contam vozes sobre
isso os pescadores do bairro mais antigos. O vento penetra aqueles
recantos que a ninguém foi dado a conhecer e, voltando à tona
momentos depois, movimenta em pequenos círculos as águas calmas do
Cachoeira, para reencontrar-se em seguida, no percurso breve, com os
passos do enterro. Agora é como se a muitos a passagem daquele vento
trouxesse a lembrança de Arnóbio, remando na canoa sozinho e
pescando com a tarrafa, outras vezes tirando areia do rio para
vender nas construções. Também traz a alguns deles calados a
lembrança da cantoria de Bituta no barraco perto da Ponte Velha,
certas notas que a voz arrastada dela tirava gemidas, como que
escorridas por entre espaços sem esperança ,no sempre da labuta, no
inevitável dos dias soterrados em dó e lágrima.
Nos passos morosos segue o enterro, anjinhos vão à frente, os corpos
magros vestidos num camisolão de tecido grosso, asas foram feitas de
pena de galinha. Puxando o fúnebre caminhar daquela gente, os
anjinhos estão levando margaridas, foram colhidas nos barrancos das
margens do rio Cachoeira. Dentro do povinho, ninguém percebe os
olhinhos de Ambrosino Teu-Teu, faiscantes qual águia astuciante e
maligna, de bicho velho e recurvo, de vôo preciso e traiçoeiro,
sempre em busca de coelho distraído e inocente. Os olhinhos de
Ambrosino Teu-Teu rapinam os peitos de Dalvinha, como frutinhas
frescas e cheirosas forçam o vestido de algodão.
O enterro dobra o primeiro beco e irrompe numa rua calçada de pedras
redondas, em cujas casas farfalham árvores frondosas nos quintais.
Passa próximo à feira do Curral Velho de onde se avista, erguido no
outeiro, cercado de palmeiras, o Hospital da Santa Graça. Inicia a
subida de uma ladeira grande, numa reunião de criaturas mudas
prossegue como se obedecesse a uma convocação antiga, muito antiga,
a que ninguém nunca conseguiu evitar. Meia hora depois, desvia-se lá
em cima do Hospital da Santa Graça, aproximando-se do velho
cemitério da cidade por onde, em descidas e subidas, cruzes e
túmulos, desprende-se uma atmosfera só silêncio. Às vezes, essa
atmosfera estranha do cemitério entremove-se nas folhas das árvores
espalhadas por entre covas e túmulos, sob o toque do vento faz-se
canção ilegível que se propaga em surdina, num rigor de atitude
impenetrável comandada pelo tempo..
Em sua caminhada vagarosa, entra agora no cemitério o enterro.
VI
E como seriam sem Bituta os dias no
Barraco Bom-Sereno? Iria ser bem sucedida nas vendagens? – Dalvinha
se indaga sentada no caixote, ficou sem sono a noite inteira, só se
levantando pra fazer alguma reza à Nossa Senhora Perpétua do Socorro
e acender outra vela junto à imagem de barro da santa.
VII
O rosto não esconde os traços
apreensivos, o olhar caído para os pés pequenos, engolidos por uns
chinelos grandes, empoeirados, velhos. Tão gastos que logo mostram
que por ali outros pés estiveram, andando nos caminhos neutros do
tempo, passos que, sem dúvida, não tiveram qualquer sossego.
VIII
Na manhãzinha vem nevoento o frio. A
neblina deita uma coberta mortiça sobre casebres, becos, encruzas,
ladeiras. Justamente no momento em que um canto hesita no ar,
nascendo vagaroso de um dos barracos próximo à Ponte Velha. A voz um
tanto esmorecida, ninguém ainda havia escutado, mas que os ouvidos
do bairro não demorariam em senti-la perto. De maneira insegura, em
suas cordas gemidas a princípio, a voz vai se alteando na manhãzinha
e, pouco a pouco, ganha corpo para se transformar num aviso
monótono, cadenciado, doído. Dalvinha movimenta-se no Barraco
Bom-Sereno. Magras mãos arrumam a mercadoria sobre o balcão pequeno,
os gestos ligeiros, aflitos, encobertos por camadas de neblina que
se adensa em torno do barraco e esvoaça como toalhas em vários
sentidos.
Ela escuta os primeiros passos na manhã e custa a acreditar na
existência deles, logo trazem um sopro de esperança na medida em que
eles vão se definindo. A boca emudecida é agora um só ponto aberto
no rosto tenso, cujo olhar se volta na direção de dois vira-latas
que caçam comida numa lixeira perto. Olhos de temor retornam então
para o silêncio da ruela ali da frente, onde a neblina continua
esvoaçando do chão úmido, com massas de fumo em suas tonalidades
espectrais, laivos gelatinosos, flutuando em sua cor de prata fosca,
própria das madrugadinhas.
Benditos sejam esses passos que, nessa manhã quieta, fria, chegam ao
Barraco
Bom-Sereno.
- Louvado seja!
E bem-vindo esse sol que pálido custa a se exprimir por trás das
cabeças dos outeiros, onde nuvens formam uma cortina cinzenta.
- Que o pobre não recua entristecido em seu tempo de labuta!
Fios de tremor desaparecem dos lábios que a boca confrangia, no
rosto que se mostrava súplice ante o silêncio deixado pela ausência
de uma vida tão sofrida, mas que protegia como podia na dura
passagem dos dias. Outro mundo então torna em círculo, que o pobre,
como dizem antigos moradores do bairro, lança os primeiros passos
precisamente de onde veio, desde cedo, na estrada que o aguarda para
o clamor de passos sofridos num tempo inconcebível.
Nos fundos do bairro, o sol avermelha nuvens sobre os morros,
resvala os raios luminosos sobre a cobertura dos casebres. Quando a
manhã vai se fazendo aos poucos um dia claro, acanhadas moradias
reaparecem nas esquisitas posições, dentro os moradores do bairro
nos movimentos costumeiros.
NO CÉU NUVENS LANZUDAS BOIANDO, HÁ DÚZIAS DE ASAS NEGRAS NO AR.
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