Camilo Mota
Um nome sobre o papel
Não, senhor. Permita-me chamá-lo
assim, de senhor. Prezo idades. Não tenho mais nada, desprendi-me de
tudo, como dizem os místicos em seus livros. Vou mais além. Já não
me importam suas vidas. Inclusive a sua, meu senhor. Basto-me.
Basta-me a arma. Ela é, inteira e plena, o destino de tudo. Não, não
pense que isso tudo que falam sobre violência é verdade. Não. Tudo
mentira. O que existe, de fato, é a arma. A minha arma. Afinal,
depois de tudo, passo livre entre todos e sou, eu mesmo, o próprio
Deus, o meu Deus, que vive invencível dentro de mim; e também o seu
Deus, que comanda o seu destino, a sua vida.
O senhor há de entender. Tudo que faço
é por amor. Agora, veja: sua vida, isso a que o senhor se agarrou...
para quê? Dinheiro, carros, fantasias... Ah, o senhor não sabe de
nada mesmo. Meu único desejo é livrá-lo disso tudo. O desprendimento
é a forma mais sublime de se viver. Por isso sou livre e posso
comandar os destinos, inclusive o do senhor, se me permite. Claro,
desculpe, é claro que me permite, afinal o senhor não tem escolha:
eu sou Deus e o senhor me deve lealdade.
Vê? Essa arma? Ela tem um significado
especial para mim. Com ela transformo ruídos em silêncio. E como eu
amo o silêncio! E também a vida eu amo. Por isso, ajo assim, fazendo
justiça, libertando as pessoas de seus vícios materialistas. Foi
desse jeito que cheguei até o senhor. Me deixo guiar pelo brilho
metálico do revólver. Ele, de uma forma inconcebida e autêntica, se
harmoniza com sua própria natureza, e me aproxima daqueles que
sofrem. Como o senhor. Vejo como o senhor é triste. Tão apegado a
tantas coisas. Por isso vim aqui. Segui a arma. Ela me trouxe.
Não, não fique aí pensando que isso
que faço é violência, é crime. Isso é o que todos tentam fazê-lo
pensar. Tente ver com seus próprios olhos. Isso. Olhe bem para mim.
Para os meus olhos. Vê. Sou sincero. E justo. E, acima de tudo,
tenho respeito pelo senhor. E por esse respeito que tenho, que agora
o senhor está me devendo compreensão. Isso... assim, não é preciso
chorar... O senhor sabe disso melhor do que eu. Agora, eu o liberto.
(Não durou muito. O tiro foi certeiro.
Gustavo Mendes é só um nome escrito sobre papéis e escrituras. A
família chora. Parte da família briga, caso de herança. Jornais:
Empresário é assassinado a sangue frio. Polícia não tem suspeitos.
Não se sabe a razão do crime, mas desconfia-se de queima de arquivo,
ainda que não se tenha descoberto nenhuma ligação de Gustavo Mendes
com organizações clandestinas ou traficantes. O delegado de plantão
da quinta DP recebeu denúncia de que a ex-esposa do empresário
mandou matá-lo. Sem provas. A família desmente. A ex-esposa processa
a família. Danos morais. Gustavo é só um nome.)
Missão cumprida. Eles não entendem.
Não entenderão nunca. É preciso pegar um por um e explicar
direitinho. Deus está de olho sobre cada um de vocês, seus párias,
seus ingratos. Mas quando chegar a hora, demonstrarei respeito.
Afinal, é um momento de suma importância para nós ambos. E, afinal,
a libertação de um ser de suas vicissitudes, de suas fraquezas.
Todos não passam de nomes sobre um papel, mas não sabem disso até
que eu, e minha arma, chegamos junto e dizemos: é chegada a hora, o
senhor me desculpe, mas é chegada a hora.
|