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Jornal do Conto

 

 

Caio Porfírio Carneiro


 


Dueto



 

Ao cair daquela tarde fagueira, à sombra das bananeiras e sem borboletas azuis, ele, assoviando, gingando, enxada dançando no ombro, viu-a tomando banho nuinha, nuinha. Esbugalhou os olhos, estacou e disse, Vixe, que coisa mais linda, mais cheia de graça, Jesus Cristo Nosso Senhor. E ficou de olhos acesos nos peitinhos, na xoxota, nas coxas de alabastro, na bunda arrebitada. Desandou um pouco, levado pelo nervosismo, o graveto quebrou, ela ouviu e descobriu:

- Por que estás me olhando, Caturapota?

- Ele se entortou todo, mordeu o talo de capim, sem saber onde se meter.

- Não estava te olhando não, Viviane das Dores.

Ela, mais nua que nunca, pôs as mãos nos quadris: - Não estava, hem. Pois pode olhar. Olha. E porque ela se oferecia toda, cabeça levantada, plantada nas pernas, desafiante, ele amunhecou. Perdeu o rebolado, esqueceu a fagueira tarde, e voltou, rabo entre as pernas, a roçar o pasto, antes de escurecer de todo. Ela ainda cantarolou e enxugou os cabelos longos, torcendo-os como quem torce pano. Vestiu o vestido transparente, quase camisola, que grudou rápido no corpo. E lá se foi cantarolando, Não há , ó gente, ó não, luar como este do sertão. A bacia, com roupas lavadas, segura à cintura.

Ele roçou à toa, que entre os olhos e o milho e o feijão que nasciam se interpunha o corpo de leite, os bicos dos seios, o chumaço de entre as pernas. A enxada por pouco não lhe alcança o pé.

- Porra.

E foi para casa. Chutou a cobra que passou coleante. Lá do alto viu a casa dela e ela a se pentear.

O braço acenou:

- Olá, Caturapota!

- Oi!

- Vem cá, criatura.

Ele se achegou, mudando a enxada de ombro, o coração desesperado, aflito por não saber o que dizer a ela. A vergonha que sentia era uma enormidade.

- Senta aí, Caturapota.

Ele aquietou-se no cepo, chapéu na mão, enxada entre as coxas.

Ela veio, encostou-se nele, um roçar de vai e vem que lhe despertou o fogo sagrado.

- Você gosta mesmo de mim, Caturapota?

Depois que o vento amainou, depois que duas galinhas subiram ao poleiro, animou-se a suspirar:

- Se gosto...

Ela ergueu as saias até surgir a pontinha negra:

- Você me quer mesmo, tesão?

Novo tempo de espera, nova lufada de vento, novo suspiro:

- Se quero...

Ela acomodou-se ao lado dele, tomou-lhe a mão:

- Então me terás e poderás me levar à camarinha. Ele levantou-se, encostou a enxada à parede de taipa, voltou, reverenciou-a em curvatura longa, o chapéu furado varrendo o terreiro: - Com prazer. Dispôs-se a conduzi-la nos braços. Ela, porém, puxou-o para si:

- Ainda não. Ando preocupada.

- Com o que, Viviane das Dores?

- Com os problemas econômicos do país, a péssima distribuição de renda...

Ele, esquálido, sujo de muitos dias sem banho, coçou a barba espinhenta:

- É para pensar.

Ela balançou a cabeça:

- Se a política financeira...

Ele cuspiu seco:

- Por falar em finanças, Viviane das Dores, me dá água, mata a minha sede.

Ela entrou e ele ficou entregue às sombras. Brisa leve. Latido ao longe, para os lados da vila. Escurecera quase completamente. Apenas, lá para os confins, uma tira de vermelhidão.

De repente uma claridade tênue, amarelada, tangeu um pouco a escuridão. Virou-se. Ela avivava o lampião da sala. Veio com a caneca d'água. Ele a sorveu em poucos goles. E ela voltou a se sentar ao lado dele.

- De que a gente estava falando, Caturapota?

Ele pensou, pensou, concluiu mais para si:

- Acho que na merda deste país.

Olhou na direção da vermelhidão que se fora:

- Vamos falar de coisa mais séria?

- Fala.

- Você é muito bonita.

Ela pegou-o pela mão:

- Vinha dele um cheiro forte de suor.

- Para onde, Viviane das Dores?

- Para o quarto.

- Ah.

O silêncio perdurou. A mão dela veio vindo, veio vindo, alcançou:

- Ele está que parece ferro, nossa.

Ele baixou a cabeça, envergonhado. Ela puxou-o num repelão:

- Vambora, cara.

Conduziu-o casebre adentro. O sexo atrapalhava-lhe as pernas. Pararam na sala. Ela baixou o bico de luz. Foi ao pequeno oratório, pregado no canto da parede, trouxe de lá, de junto aos pés de Nossa Senhora, o pequeno rádio de pilha. Riu para ele, um riso mais convidativo:

- Com uma musiquinha é melhor.

Ele apenas fez gesto de tanto faz. Ficou ali esperando, tamborilando os dedos calosos na mesinha de centro. Ela acendeu o toco de vela:

- Vem.

O toco de vela num pires seguro com a mão direita, a esquerda puxando-o como quem dirige um cego. Ele, uma vontade louca, praticamente resistia.

- Quer ou não quer, sujeito? Que merda.

Ela pôs a vela sobre o velho móvel, verniz descascando, tirou o vestido pela cabeça e estirou-se na cama de varas, um oferecimento só. A luz oscilava e desenhava sombras no corpo alvo.

Ele petrificou-se. Os olhos estourados em cima daquela visão que o esperava.

- Vem ou não vem? Meu Deus.

Despertado, como emergindo de um mergulho, ele, aos repelões, jogou os trapos no chão e caiu, fome canina, em cima dela, e nela começou a navegar.

- Devagar, Caturapota.

O desespero dele era sorver aquele corpo de leite num gole apenas, sugá-lo, subir aos céus e enovelados chegarem à mão direita de Deus Pai. E gemia, e grunhia, e vai e vem, e ai minha Vivivaninha meu bem, eu morro, juro que morro, Vi...

- Acabou?

Ele, molengado, largado ao lado dela, ainda não saíra de todo do rodopio. Veio o soninho, leve, passageiro, passos de animal distante, o vento vibrando nas portas e janelas.

Ela se deteve um instante ouvindo a vibração da janela:

- Este vento não me engana, Caturapota. Este ano não chove mais.

Ele deteve o leve bocejo:

- Bata na boca, Viviane das Dores. Será mais um ano de tormento.

Calaram-se. O silvar do vento lá fora. Ruído no galinheiro. O desejo voltando. A mão, de leve, passou a acariciar o sexo dele. E ele foi despertando, despertando, despertou.

- Agora é a minha vez, Caturapota. Prepare-se.

Montou-se nele. Foi um nunca acabar de gemidos, nas gargantas e nas varas da cama. Então suspiraram, ela desabada sobre ele.

- Foi ótimo, Caturapota. Você é bão. Puxa. Pensei que era a primeira vez.

- O caralho.

Depois pensou, pensou, arriscou:

- Quero a vossa mão em casamento.

Ela sentou-se na cama, olhou-o ternamente:

- Sou vossa.

- Para quando serão as bodas?

Ela olhou as telhas, dedo no queixo:

- No próximo outono, está bem?

- E que tal na primavera?

Ela passou as mãos nos cabelos longos:

- Tanto faz. É tudo uma seca mesmo.

A música do radinho, lá na sala, só então foi percebida.

- Que tal esse conjunto de rock, Caturapota?

Ele se deteve ouvindo os sons estridentes dos metais e o pensamento voou para outros acordes:

- Minha viola está com duas cordas quebradas. Cadê dinheiro para comprar outras?

O estrídulo eletrônico foi se desfazendo e substituído pela informação:

- O preço do dólar...

Ela acariciou-lhe o peito:

- E o dólar, Caturapota?

- Haja saco.

Ela levantou-se, nua e linda, foi à sala, fechou o rádio e o conduziu ao seu lugar aos pés de Nossa Senhora, uma mão tapando o sexo, que o pudor era grande diante da mãe de Deus.

Voltou e vestiu o vestido leve pela cabeça.

- Está tarde, Caturapota. Amanhã tenho um monte de roupa para lavar. E só recebo uma merdinha de dinheiro.

Ele coçou a barba, que lhe espinhava o rosto:

- A gente aqui em baixo comendo bosta e eles lá em cima comendo doce. E se a seca continua...

- Pelo jeito...

Ela ia perdendo o sono, desalentado:

- E o meu roçado, tão bonito...

Ele voltou a sentar-se no cepo, no terreiro enluarado. Ela avivara o lampião e veio aninhar-se ao lado dele. Parecia dia. A lua corria no céu estrelado. Olhavam-na, embevecidos.

- Nem uma nuvem, Caturapota meu noivo.

- Nem uma nuvem, Viviane minha noiva.

Ela prendeu-lhe o rosto com as duas mãos, olhou-o bem nos olhos, um fio de lágrima a correr:

- E o que vai ser das nossas vidas? Até o fio d'água onde lavo as roupas está se acabando. E o socialismo, meu noivo, a nossa velha esperança?

Uma lágrima, igual à dela, saiu do olho dele. Encolheu os ombros:

- Se foi com o vento, Viviane minha noiva. Mas volta.

Um raio de esperança bailou no rosto dela:

- Será?

Ele franziu a testa, alisou o queixo, não disse nada. Voltaram a olhar a lua. Então ela se levantou de repente, entrou na sala, pôs o rádio de pilha no parapeito da janela. Aumentou o volume.

A sonata inundou até muito longe, levada pelo vento. Ele bateu nas coxas:

- Já vou, Viviane das Dores minha noiva. A minha enxada.

Mas não se dispôs a pegá-la. Ela suspirou, um suspiro profundo:

- Vou lhe acompanhar um pouco.

Lembrou-se, segurou-o pelo braço:

- Espere. Volto já.

Foi ao velho baú, tirou dele a peça colorida, voltou, abraçou-se a ele:

- Está um pouco frio. Vamos nos proteger.

Envolveram-se com a bandeira verde e amarela, e foram ladeira abaixo, maltrapilhos e descalços, a enxada no seu silêncio cansado escorada à tapera, o caminho leitoso e serpenteado à frente, o dueto contrapondo-se aos acordes da sonata:

Não há, o gente, ó não,

Luar como este do sertão...