Caio Porfírio Carneiro
O peso da arte criadora
Pedro Rodrigues Salgueiro insere-se
entre os autores de histórias curtas de linha estética ampla, que
vai do regionalismo aparentemente estreito à divagação fugidia,
pendulando ao longo do veio criador elástico do moderno conto
brasileiro e universal. Escritos novo, ainda em busca de contornos
artísticos pessoais mais definidos, não espelha, entretanto, nestes
dois primeiros livros publicados — O Peso do Morto e O espantalho —
imprecisão e insegurança que desnivelem suas criações. Não. É que
ele chegou com muita explosão de talento, numa fulguração a um tempo
lúdica e cósmica, em atropelo de pulsações várias e vívidas,
buscando a síntese da linguagem, em contraponto às múltiplas
florações do seu arroubo artístico.
Se temos na literatura, bem
emblematizado nestes dois livros, esse vendaval notável de
encantados sopros tão variados, que intrigam o leitor e o jogam num
voleio de interrogações para saber aonde chegará este escritor de
auras criadoras tão desnorteantes, temos igualmente nela a prova
inconteste de que estamos diante de um contista de alma voltada e
atenta para o que de melhor se produz não apenas no Brasil, mas na
América Latina, e além dela, no campo da ficção curta.
Tal prova é que para além do regional,
do fantástico, do mágico, do alegórico e até do anedótico há o
fantasma maior da solidão ao correr de quaisquer destas páginas. E
este é o sinete de sangue e a espinha dorsal da alma artística deste
Continente. Temos em Pedro Rodrigues Salgueiro — sem parâmetros de
influências visíveis e diretas — um pouco de José J. Veiga, de
Bernardo Élis, de Moreira Campos, de Sérgio Faraco, e até mesmo dos
romancistas Cornélio Penna e Lúcio Cardoso, pelos conflitos de amor
e ódio, num doído jogo de atração e repulsão. E temos ainda a sombra
de Juan Rulfo, de Alegria, de Quiroga... É a absorção não das
influências, mas do espírito da latinidade, que está em todos eles.
O livro de estréia — O Peso do Morto —
, com seu universo centrado no Nordeste, é mais que uma surpresa,
porque é um susto continuado. Por trás das vinganças, dos crimes, da
alegria da vidinha miúda interiorana, o que vem ao vivo, com toda a
sua pesada carga acusatória, é o atavismo medonho, fugidio e tão
presente (a divagação fugidia citada...), que acorrenta as gerações
da região a uma autoculpabilidade quase doentia e a uma ávida busca
de redenção dela. Ou seja: o eterno passado e suas ressonâncias tão
presentes. Bastaria a citação de A Longa Espera, conto que abre o
livro, tomado ao acaso, para se ver isto em toda a sua dimensão
fascinantemente bela e trágica. E o trágico aqui é uma constante,
que aprofunda a solidão em família, que dói, que assusta e que, tal
como o cantado e decantado palhaço, leva ao riso.
Toda essa roldana de tragédias
herdadas da história da região, para não dizer do País ou do
Continente, e seus desdobramentos que vão do horror ao riso, esse
riso de indiferença ou falsidade, Pedro Rodrigues Salgueiro expõe e
documenta em O Espantalho, seu segundo livro. Neste, a saturação
criadora, de impactos implícitos, não é tanta quanto no livro
anterior, porque o autor, sempre em busca de novos caminhos formais
e estéticos, permite que aragens, pinçadas do variadíssimo mapa da
ficção curta, porejem o texto, dando-lhe uma primeira visão de
desnivelamento criador. Mas não é isto. Ao revés, embora algumas
criações não estejam em sintonia em conteúdo e forma para maior
valor gregário da obra, o que se vê, e surpreende, é a hábil
capacidade de Salgueiro de sair do drama de Os Inimigos para o
anedótico O Apelido, para a crônica de O Homem Bem Sucedido, para o
narrativo Na Praça ou para o humaníssimo de Um bêbado... sem maiores
sustos no processo de criação. Daí a referência ao pendular.
Não importa muito, embora importe ao
autor, o agrupamento dos contos em blocos, quase diria capitulares,
por motivos temáticos ou de abordagem criadora. O primeiro livro — O
Peso do Morto — divide-se em quatro partes, e O Espantalho em sete,
cada uma delas reunindo alguns trabalhos. Isto preserva apenas,
queremos crer, o cuidado do autor em bem ordená-los.
Mas o que vale, em essência, é a força
ficcional deste escritor, que chegou com tudo, e para ficar; o que
importa é que qualquer contista que entrega ao público esta pequena
obra-prima que é Epopéia, para só citar esta, de O Espantalho; o que
é notável é esse fôlego assustador que exsurge de A longa Espera,
logo ao abrir de O Peso do Morto. E se descobre, com vívida
surpresa, a capacidade do escritor para o miniconto, de difícil
fatura e de poucos bons cultores no País.
E ainda esta arma a mais em favor de
Pedro Rodrigues Salgueiro: sabe escrever, no sentido nobre e
prevalente de quem usa a palavra, na arte escrita, com aquele senso
de oportunidade que lhe dá sentido e alcance, bem maiores que o
restrito significado dela. O escritor já é dono de um como dizer
personalíssimo. E tem tudo para a caminhada sempre ascendente...
Estes dois livros põem diante dos
olhos um escritor, um contista.
O Ceará e o Brasil esperam
tranqüilamente muito mais dele.
É certo, certíssimo, que virá.
Leia a obra de Pedro
Salgueiro
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