Cunha e Silva Filho*
As múltiplas Vozes da Ribanceira
Terceira obra de ficção de Oton
Lustosa, Vozes da Ribanceira(2003) não desmerece o bom nível,
já por duas vezes, alcançado pelo autor, primeiro com Meia-vida(1999),
romance de estréia, em seguida, com O pescador de personagens(2000),
coletânea de contos.
Nas duas primeiras obras acima o
ficcionista deu suficiente mostra de saber lidar com o difícil
ofício da criação literária, respeitando os limites de gêneros, ou
seja, ao escrever Meia-vida conseguira ser plenamente
romancista e, ao construir O pescador de personagens, lograra
ser apenas contista. E me parece que com esses dois gêneros irá
realizar sua carreira de escritor, já que podemos constatar em
apenas três livros um potencial e um preparo técnico aliados a uma
inegável capacidade de, no terreno da ficcionalidade, criar enredos,
intrigas, situações dramáticas e habilidade de saber narrar e
descrever, movimentando personagens com naturalidade, com absoluto
domínio dos usos da linguagem literária, isto é, familiaridade
demonstrada, sobretudo neste terceiro livro, em transpor, pela
linguagem, paisagem e ações com um conhecimento estudado e
pesquisado da natureza piauiense, nos três reinos, animal, vegetal e
mineral, da sociedade nordestina, da sua cultura e do que resta
ainda de suas tradições, de uma visão suficientemente arejada do
mundo. A arte de contar história pressupõe por parte do romancista
essa consciência estética e social.
Num artigo publicado no jornal
Meio-Norte (Teresina, PI, 9/7/2000) Os anti-heróis de Oton
Lustosa, eu já havia apontado na ficção do autor pelo menos duas
qualidades, a do domínio da “manipulação da trama, do “plot”,
e a “capacidade de criar personagens”. Na construção da trama quero
significar a lucidez que confere ao desenvolvimento das ações dos
personagens, ou melhor dizendo, à competência literária demonstrada
na articulação do discurso e da história, para ficarmos apenas com
dois componentes basilares da estrutura da narrativa.
Quanto á capacidade do autor de criar
personagens, aludo à sua potencialidade de, no âmbito da
imaginação, condição essencial ao sucesso na arte da ficção,
poder compor “criaturas de papel”, conforme definia Roland Barthes,
que, na recepção dos leitores, pudessem se transmudar em seres ou
criaturas humanamente verossímeis, sem o quê qualquer
tentativa ficcional estaria fadada ao insucesso.
Não é por acaso que, na segunda obra
do autor, O pescador de personagens, vemos confirmada essa
habilidade do ficcionista de elaborar admiráveis seres de carne e
osso, para aqui lembrarmos uma expressão do velho e talentoso
crítico impressionista, Agripino Grieco, falando de personagens de
Jorge Amado.
Entre o nouveau roman ou
anti-romance de Alain Robbe-Grillet e um romance de personagem de
feitio tradicional, eu não hesitaria em preferir o segundo, porque,
se o romance, grosso modo, me proporciona a visão panorâmica da
vida, essa visão eu só saberia encontrar na sua plenitude
através da forma dos personagens dos grandes romancistas ocidentais.
Se em Meia-vida Oton Lustosa
povoou seu universo literário de personagens de grande densidade
humana, como Zezão, Belim e Maria de Fátima, no livro de contos O
pescador de personagens ele nos brindou com a figura do
juiz-literato, amante do futebol, Dr. Dionísio Trajano de Mendonça
Abreu. Aliás, esse personagem, alter-ego provável do autor,
segundo já lembrou Ronaldo Cagiano, funciona no texto com uma
espécie de gancho para entendermos melhor a visão do escritor como
homem e criador. Alguns dos doze contos aí valem como verdadeiros
exercícios meta-ficcionais, nos quais o personagem-juiz, presente em
todos os contos, confessa suas preferências literárias e sua maneira
de tratar seus temas e personagens e até projetos de livros.
No conjunto das três obras escritas,
posso sem esforço divisar em Vozes da Ribanceira uma evolução
positiva de maturidade do autor, sobretudo no domínio dos recursos
de técnica narrativa, segundo veremos mais adiante, e de sua
correspondente formalização da linguagem literária.
Em Meia-vida Oton Lustosa fez
um corte temporal, indo buscar sua vigorosa trama romanesca na
Teresina dos anos 80 e, como nível social preponderante, os
desafortunados da sorte, a gente miúda, os anti-heróis, como os
defini em meu citado artigo. Mas, observe-se que essa gentinha vem
sempre em contraponto com a classe social mais privilegiada. Como se
vê, as preferências do autor até aqui são por esses tipos
desvalidos, e são eles que formam o número de personagens mais bem
compostos esteticamente, dos quais são exemplos o engraxate, a
prostituta, o camelô, o feirante. Como ficção costumbrista, de corte
neo-realista e mesmo com traços por vezes neo-naturalista, aí não
faltam outros personagens típicos como o delegado, o político, o
marginal, o viciado.
Em Vozes da Ribanceira,
recuando um pouco e avançando mais ainda até os meados da década de
80, o escritor passa, agora, a enfocar a vida dura, sofrida e mesmo
heróica dos oleiros, dos pescadores, contribuindo, então, com uma
nova galeria de personagens incrivelmente humanos, como Zito, oleiro
rude e operoso, Totonho, líder dos oleiros e pescadores, Sousa
Martins, soldado de polícia, cego às transformações sociais, Arlindo
Viola e Caetana, cantadores, Valdo Paim, líder político
fisiologista, Dasdores, beata zelosa das coisas sagradas e defensora
incondicional do padre Pedro.
A galeria de tipos sociais é imensa
nesse romance povoado de gente de vário naipe: o oleiro, a
prostituta, o traficante, o macumbeiro, o bodegueiro, o padre
politizado, o boticário, o motorista, o poeta-cantador, o
capataz-jagunço, a artesã, o padre estrangeiro, o jogador de
futebol, os amantes da poesia, o agente do DOPS, a “autoridade”, o
drogado, o alcoólatra, o traficante, o hippie, a radialista
(protagonizada por Zizinha de Almeida, formando par amoroso com o
hippie Tenório, ambos de origem burguesa). Mas, tal como em
Meia-vida, o personagem principal, no caso o hippie Tenório, não
é a criação ficcional mais convincente esteticamente. Tudo gira em
torno dele, porém da pena do escritor são os personagens
secundários, em sua maioria, que se destacam mais pela perfeição e
densidade dramática e, portanto, por seu convencimento como criação
ficcional Tenório mais parece um símbolo, uma abstração. Já uma
Dasdores, um Zito, um Nego Mundico transpõem, por sua veracidade, da
ficção para a vida. Oton Lustosa parece, assim, querer abarcar, o
quanto possível, esse enorme contingente da sociedade local, e nisso
anda certo na sua condição de romancista, competidor, na esfera da
Arte, de simulacros do Universo. No caso desse romance, é o Poti
Velho, em Teresina, que lhe serve de cenário principal de sua
narrativa, variando apenas o seu espaço mediante
flashbacks das reflexões do personagem Tenório em direção a
Recife.
Politicamente, a narrativa se localiza
num período em que o país ainda atravessava os fins sombrios dos
anos da ditadura militar e o período de promessa de abertura acenado
pelo governo Figueiredo.
A narrativa, portanto, se desenvolve
em meio a esse momento discricionário assustador e, mais adiante, a
uma mudança que já é esperada pela sociedade brasileira ansiosa
pelas conquistas democráticas.
O eixo da narrativa se divide em
duas células temáticas principais: a) a realidade dramática
vivida por uma população ultrajada em suas reivindicações de
condição de vida: acesso à terra própria, à moradia e a uma vida
mais decente pleiteada pelos trabalhadores rurais; b) o direito à
liberdade reclamado pacificamente por um emigrante nordestino do
Recife, o hippie Tenório, pivô da trama e personagem em torno do
qual, segundo já mencionamos, boa parte da fabulação se concentra
como forma de representação dramática.
As duas células acima referidas, a meu
ver, explicitam à perfeição a divisão do romance em duas partes,
conforme propõe o ficcionista: o Barro e o Fogo.
A primeira parte sinaliza, em meu entender, o trabalho dos oleiros
na busca de dar forma à argila, atividade associada à forma do
húmus, da natureza telúrica, das condições do solo, tão bem
ilustrada pelo heroísmo e dignidade de ofício do personagem de Zito,
sucessor do pai na faina de oleiro. A segunda, o fogo, metaforiza o
ato de denúncia feita contra Tenório, acusado de mandar incendiar os
pastos e da invasão do latifúndio de Raimundão Araújo. Metaforiza
ainda todas as acusações contra o hippie e contra a população
invasora. O fogo sintetiza a visão antagônica entre o latifúndio e
os sem-terra, entre os despossuídos e os exploradores no sistema
capitalista rural. O barro é o trabalho e o suor do operário; o
fogo, a revolta contra a posse e a prepotência dos poderosos.
Vozes da Ribanceira é uma
ficção que reúne uma gama de problemas polêmicos, alguns ainda bem
atuais, enfrentados pela sociedade brasileira tanto urbana quanto
rural: a exploração de mão de obra barata, o conservadorismo dos
latifundiários, a droga, o autoritarismo não só rural (donos de
terras) mas institucional (o do governo, representado pela força
policial e pelo regime de exceção), a prostituição, o clientelismo,
o mandonismo rural, a questão da reforma agrária e as relações
tensas de natureza reificadora entre propriedade e trabalho no
campo.
Romance também em que se discutem as
relações familiares, a moral burguesa, o complexo de Édipo (este na
relação entre Tenório e sua atraente mãe), o erotismo de fundo
neo-naturalista, o aborto, enfim, a questão da liberdade sexual
exemplificada na figura do hippie Tenório com todas as implicações
existenciais e ideológicas decorrentes das práticas e costumes da
beat generation identificada no lema de Paz e Amor, ou na
expressão em inglês On the road remetendo à obra de Jack
Kerouack. Podemos, agora, entender o clima de alguns momentos de
sonho, fantasia e alucinação experimentados por Tenório e expressos
numa linguagem entre vigília e o sonambulismo, dado que o
personagem, amigo do “baseado”, em alguns trechos da narrativa
mergulha nos mistérios inapreensíveis dos efeitos alucinógenos das
drogas.
Um outro aspecto positivo que devo
salientar nesta apresentação de Vozes da Ribanceira me parece
ser a forma de focalização habilmente utilizada pelo
escritor. Sendo inegável o tributo pago por ele à geração do romance
nordestino de 30, sobretudo a Graciliano Ramos, deve-se louvar no
ficcionista piauiense o seu recurso de combinar a voz do narrador em
terceira pessoa, o uso do discurso indireto livre, ao expediente de
ceder a vez do narrador a um personagem na mesma pessoa gramatical.
O efeito disso é altamente eficaz ao discurso do narrador, que irá
representar a fala de vários personagens num salutar exercício de
polifonia ou de perspectivismo narrativo. Tal recurso dá ao leitor
uma impressão de que não é o narrador em terceira pessoa que conduz
o discurso, mas este instaura, no fluxo da narração, a consciência
da voz do personagem. A narração assume, assim, uma função de
desdobramento de vozes. Esse recurso já podemos rastrear em alguns
romances de Machado de Assis, como Quincas Borba(1892).
Finalmente, considero como avanço
significativo em Vozes da Ribanceira, com respeito aos livros
anteriores do autor, a revelação de um ficcionista de amplos
recursos descritivos e narrativos, agora no domínio pleno de elevar
sua linguagem a um patamar de um autêntico criador de formas de
comunicação literária. Bastam capítulos primorosos como “Caieira”,
“Pescaria”, “Festa de São Pedro”, “Incêndio”, entre outros, para
poder-se ter a prova provada de um escritor que já se encontra dono
de sua própria maneira de produzir ficcionalmente, mercê da energia
de seu verbum irradiada para todos os lados
e para todas as esferas do Cosmos, com capacidade de transformar
sentimentos, ações, paixões, sofrimentos, alegrias e reflexões em
vidas que brotam dessa química, que é a palavra elevada ao seu
estatuto estético, reunindo céu e terra, ar e água, vegetação,
animais, situações humanas e transcendências, nessa fusão
encantatória, que é fazer, com consciência e dignidade intelectual,
da linguagem uma imagem vigorosa e visceral do mundo.
Cunha e Silva Filho é piauiense de Amarante, radicado no Rio de
Janeiro. Doutor em Literatura Brasileira e Crítico Literário.
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