José
Nêumanne
Caderno
2
14.9.2002
O poeta Vogt, missionário do espanto
Em ‘Ilhas Brasil’, seu sexto livro
de poemas, o lingüista Carlos Vogt garimpa lugares incomuns no
lugar-comum por excelência dos provérbios e ri de si mesmo
Eduardo
César/Divulgação
Na síntese epigramática
ou em poemas de fôlego mais largo, Carlos Vogt sorri da
própria pequenez e das misérias humanas | |
| JOSÉ NÊUMANNE
A poesia sempre nega o lugar-comum. Ao aprender essa lição – e
entendê-la bem, por ser lingüista – , o poeta Carlos Vogt radicaliza a
opção pelo lugar incomum. Em sua labuta poética, inaugurada com
Cantografia, prêmio de revelação em poesia da Associação Paulista de
Críticos de Artes (APCA) em 1982, e exercida em seis livros – o sexto,
Ilhas Brasil (Ateliê Editorial, 142 págs., R$ 25) acaba de sair a lume – ,
esse militante da educação (foi reitor da Unicamp) desarruma as palavras
com garra, talento e desprendimento. É com esses instrumentos que ele
promove a demolição e a reconstrução de aforismos. Como em Alegoria: “Quem
foi rei/ nunca perde/ a realidade.” Nesse antiaforismo, perceba-se, além
da substituição da ilusão majestática pelo realismo chão, a submissão do
senso comum à lógica semântica, o que dá ao uso do lugar-comum como
matéria-prima a ser distorcida um charme muito especial. Outro exemplo
irresistível, nesse campo da operação sobre o provérbio, em que o poeta
investe contra o óbvio para alcançar um efeito crítico e instigante é
Ultrarrealismo: “A vida/ limita/ a arte.”
É notória essa sua preferência pelo epigrama, a difícil arte de
sintetizar o escárnio e o pitoresco em versos curtos de breves palavras.
Mesmo sem o rigor técnico (quase matemático) exigido pelos japoneses em
seus haiku, a natureza epigramática não é avessa apenas à enxúndia, mas
também às facilidades do anedotismo inconseqüente e episódico. Em
Super-Homem (“A vida pode continuar/ sem mim/ a vida”), Vogt nos dá uma
idéia precisa de como é hábil na esgrima verbal em campo estreito e
minado. É óbvio o confronto entre o título superlativo e a confissão
simultaneamente minimalista e cósmica do corpo do poema, um mini-hino
irreverente e resignado à precariedade da condição do gênero humano.
A confissão da própria pequenez, reconhecida de forma tão crua nesse
poema, também comparece no tratamento auto-irônico, muito bem-vindo num
ambiente de vaidade e autocomplacência como o é o da literatura
(especialmente a poesia) no Brasil. É o caso de Desequilíbrio: “Eu confio
na humanidade,/ mas ela não confia em mim.” Essa autoderrisão não se
limita, contudo, a um exercício de contranarcisismo oportunista. O poeta
vai além: pinga gotas de ácido na própria condição humana, para assim
penetrar mais profundamente na ossatura do gênero sem ficar só em
impressões meramente epiteliais. O sarcasmo se faz presente de forma
exemplar no conselho dado em Anfitriã: “Não se decepcione:/ a vida o
convidará/ para outros fracassos.” Não há quem consiga ver esse título e
esses três versos dispostos elegantemente sobre o papel em branco sem
sentir um friozinho no baixo ventre. Será que estou exagerando?
Exagerado ou não, este resenhista reconhece que basta de decupar
epigramas, pois seria uma simplificação – e grosseira – limitar a obra, e
o sexto livro, de Vogt à brevidade de seus textos poéticos. O que os
caracteriza (a obra como um todo e o livro em particular) é aquilo que a
prefaciadora Marisa Lajolo classificou como espanto “face à vida, à morte,
aos outros”. O poeta, missionário do susto, dedica-se em Ilhas Brasil a
depenar (Inconcluso: “O poema/ ovo/ sem pena”) a linguagem por excelência
desta nossa Era da Informação – a dos meios de comunicação de massa. Sua
ironia abrasiva (não é ele o autor de um poema e um livro intitulados
Metalurgia?) dedica-se à corrosão da linguagem peculiar de nossa mídia.
Leia Círculo Virtuoso: “A CPI alimenta a imprensa/ que alimenta a CPI/ que
se alimenta da imprensa/ que aumenta a CPI/ que se lamenta da imprensa.” E
responda: não é uma síntese cruel? Sim, mas não é uma síntese precisa?
Até aqui pode ter restado a impressão de que Carlos Vogt não se
aventura pelo perigoso universo do poema largo, dedicando-se
exclusivamente à ourivesaria exata da síntese epigramática. Será um
equívoco. Mesmo de posse do poder da concisão, ele também se compraz no
gosto da efusão, como lembrou o saudoso José Paulo Paes no texto que
escreveu para a orelha de Metalurgia (de 1991). Está certo que em
Metalurgia ele foi mais efusivo do que em Ilhas Brasil, mas também neste
último ele se permitiu ao longo fôlego em poemas como Anagramas (homenagem
às Anas de sua vida), Desenvolvimento Sustentável ou mesmo o que deu
título à coletânea, nos quais deu vazão a sua veia crítica social e
política, essencial num poeta que se preze (e é o caso), desde que não
subordine (e não é o caso) o veio poético ao vezo retórico. Nele, a poesia
vem antes e por cima.
Ilhas Brasil, de Carlos Vogt. Ateliê
Editorial, São Paulo, SP, 2002,
142 págs., R$ 25,00
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