Daniel Glaydson
Crônica consumida: coitado do poeta
no escuro
Será que ainda há
templos a profanar? De tanto estar na “moda”, atirar pedras em
templos tornou-se uma atividade bastante complexa. Faz-se necessário
uma mira apuradíssima para atingir os restos dos vitrais que ainda
não foram completamente esbagaçados. Mas Floriano Martins
habilita-se. Cata as pedras e posiciona-se. Templo-alvo da vez
(“tudo é uma questão de alvo”, ele mesmo diz): a Poesia – um templo
diferente, onde os vitrais já inexistem há muito para alguns, nunca
existiram para outros, continuam deslumbrantes para terceiros, estão
empoeirados ou realmente acidentados para quartos.
A questão está em
saber que templo é conhecido pelo autor de “Crônica de consumo: a
lâmpada queimada da poesia” . Qual Poesia? Onde está o ambiente
poético que ele critica? Um lugar onde ela virou produto de
consumo... Não deve realmente ser por estas bandas: um país onde
poetas já “conhecidos” a nível nacional, para ser enfaticamente
pleonástico, mal conseguem uma tiragem superior a mil exemplares;
daí se tira a situação dos “não-tão-conhecidos”... uns 200
exemplares no máximo, isto quando arranjam um meio lícito de
publicar (restando sempre um eterno consolo: com alguns poetas
mortos, hoje ícones do Modernismo, não era diferente, meus filhos –
diz o historiador).
No templo profanado
por Floriano Martins, os poetas brasileiros se parecem e tem
basicamente a mesma qualidade. “Para diferenciá-los, é preciso
atribuir a eles uma personalidade”, nas palavras de David Shah
falando de outra coisa. Isto porque seguiriam “as tendências do
mercado livreiro”, agora nas palavras do nosso autor – talvez no seu
momento mais equivocado. Será que eu preciso mesmo atribuir mais
algo, seja lá o que for, a poetas como Ferreira Gullar e Fabrício
Carpinejar, Nelson Ascher e Francisco Alvim, Soares Feitosa e Décio
Pignatari, Alexei Bueno e Carlos Nóbrega, etc e etc, para conseguir
diferenciá-los? Será mesmo, Floriano? Ou devo jogá-los todos no
lixo, pois seus versos não passam de produtos como qualquer outro
capitalista, feitos para durar pouco e ser logo substituídos?
Coitado do poeta...
criticado por supostamente reificar a linguagem com fins
absolutamente pragmáticos, e ao mesmo tempo compelido a “ir de
encontro a todas as idéias recebidas” – há de haver algo mais
pragmático do que isto: um acabado, manjado, cansado discurso da
negação? E, coitado do poeta de novo, criticado também quando
condena a lógica do mercado mas não consegue atingir “a revolução”.
Essa mania de
revolução não já havia falecido e desfalecido pelos séculos
passados? Terá o poeta que continuar acreditando na ilusão das
ilusões, tendo a “esperança” que o telejornal quer que todos
tenhamos? Ou ser como a criança da “família Brasil” nas tirinhas do
Luis Fernando Veríssimo, que após ter seu pedido de presente negado
porque, segundo o pai, a alimentação da casa é mais importante, sai
reclamando: esses valores antigos...
Não estou aqui
conclamando o elogio da putrefata sociedade em que vivemos – nunca
seria capaz de tal feito... diferentemente do sr. Reinaldo Azevedo,
aquele intelectual da revista Bravo. Sim, aquele mesmo: o cara que
afirma não termos um grande clássico poético dos nossos tempos
porque ninguém brada a favor do capitalismo e da globalização (como
o fizeram, para suas respectivas épocas, Homero e Virgílio). Que
faça ele próprio sua Georgêida ou A Bushéia, seja lá
como for, e espere a canonização...
Mas voltando ao
Floriano Martins, coitado do poeta outra vez... completamente
rejeitado pelas grandes editoras, é obrigado a praticar “exercícios
de simpatia” numa “articulação estratégica” caso realmente queira
ter seus textos publicados, e ainda é condenado por isso, acusado de
estar fazendo “culto do eu”. Mas se, pelo contrário, ele resolve
desistir de tudo e fechar-se com seus papéis, radicalizando “o
status de sua condição solitária no mundo”... coitado do poeta
mais mais mais uma vez: será repreendido porque, afinal de contas,
“todo conhecimento se anula em si se não pode ser compartilhado”.
Todas estas aspas são lá da “Crônica de consumo”. Meio ambíguo, não?
Parece-me que a
confusão nesse templo particular em que convive nosso autor, “também
poeta e brasileiro” – templo que ele implode por dentro, como um
homem-bomba cheio de dogmas –, está na atribuição de finalidades
demais para quem não suporta nenhuma. Eles não reconhecem que a
Poesia é inútil, e que na sua inutilidade está todo o diferencial,
toda sua vitalidade, todo o poético da Poesia.
E assim, coitado! Ao
poeta, nem lhe resta o suicídio como alternativa: corre o risco de
ser recriminado mais tarde – seja por egocentrismo, ou por querer
pegar carona na fama certa do post-mortem, ou por quaisquer
outros motivos facilmente inventáveis...
1Artigo
publicado em “Agulha: revista de cultura”, nº 43, de janeiro de 2005
(hyperlink:
http://www.revista.agulha.nom.br/ag43martins.htm)
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