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Donizete Galvão


 


Dora Ferreira da Silva e a chave do sagrado


 


 

Sem alarde, Dora Ferreira da Silva publicou no finalzinho de 97 seu oitavo livro de poesia Poemas em fuga, Massao Ohno Editor. As sugestões musicais sempre presentes na poesia de Dora ganham nesse livro mais vigor. Todos os poemas da primeira parte do livro recebem títulos de andamentos musicais. Dentre todos, Dora tem uma paixão sempre nomeada por Mozart.

A poesia de Dora exige do leitor uma visão panorâmica, que revele o conjunto. Não basta isolar esse ou aquele poema, destacar alguns, criticar outros. É impossível não ler Dora pensando em mosaicos, vitrais, patchworks. Não é por acaso que um de seus livros chama-se Tapeçarias. O que importa é o efeito que o conjunto oferece. A sua capacidade de unir fragmentos, de juntar partes aparentemente irreconciliáveis, para tecer uma partitura ou uma tapeçaria que, como a de Penélope, nunca termina. Diferentemente dos poetas que só são visitados pela poesia quando escrevem poemas, Dora Ferreira da Silva está na poesia. Vive imersa em poesia e pensa através dela. O sentimento poético vaza para sua fala, sua vida, para a maneira como ela transforma sua casa numa escritura.

Um dos equívocos mais comuns é tentar catalogar a poesia de Dora. Uns querem enquadrá-la na geração de 45. Outros situam como poesia dita feminina.

Penso que Dora é livre demais para qualquer um desses rótulos. Embora muitos leiam-na desatentamente , sua poesia não tem nada de intuitivo, de derramamento emocional ou falta de rigor. A poesia de Dora é toda pensada já que ela pensa poeticamente. A sua razão é a razão poética. Como Dante Milano tão bem defendeu, pode-se pensar poeticamente. O que significa uma pensamento permeado pela emoção, pelo espanto, pelo choque, pelo sentido do sagrado. Caso quisesse, Dora poderia muito bem usar formas fixas pois como tradutora tem perfeito conhecimento dessa técnica. Chegou a traduzir O Cemitério Marinho de Paul Valéry. Mas para sua poesia Dora prefere os poemas longos, com muitas seções, que amorosamente tecem um caminho, ou como no título de um de seus livros, Uma via de ver as coisas. Daí sua irreverente despreocupação com a pontuação gramatical. A música é a música da fala, com suas pausas, seus stacattos, suas hesitações e sussurros. O tom Cada poema seu tem uma íntima relação com sua verdade e, portanto, é sempre necessário.O tom elevado nunca soa pretensioso porque Dora não posa. Cada poema seu tem uma íntima relação com sua verdade e, portanto, é sempre necessário.

O imaginário de Dora está cravado na Grécia e no Mediterrâneo. Ela poetizou a trajetória da família em Retratos da Origem. Família que vinda da região onde hoje é a Albânia, atravessou a Grécia, foi para a Calábria e veio se abrigar na pequena Conchas, no interior de São Paulo. Houve uma época que era obrigatório cobrar a “ brasilidade” de pintores, escritores e outros artistas. Para esses, a poesia de Dora poderia parecer estrangeira, fora de nossa realidade. Uma leitura mais acurada vai mostrar que a cidade natal de Dora, a figura do pai, as paisagens de Itatiaia estão sempre presentes em seus versos. A ligação de Dora com seu país é profunda e sutil para os que querem obviedades. Seu inconsciente, seus arquétipos, estão sim mergulhados na Grécia azul e branca. Parte de sua originalidade e estranhamento advém de como ela mistura deuses e deusas da Grécia na sua vida, no quotidiano de São Paulo ou entre as árvores de Itatiaia. A atitude de Dora é pânica, com aquele sentido do sagrado permeando os seres e as coisas. Dora não aprecia a Natureza, ela vê folhas, árvores, bichos, águas e pedras como signos do sagrado. Sua experiência de identificação é tamanha que em certos momentos, como descreve em seus poemas, ela se dissolve na paisagem, mimetiza-se na Natureza. Só um acontecimento externo, como um tropel de cavalos, por exemplo, vem tirá-la dessa mergulho e ela submerge , voltando a ocupar seu “eu”.

Três vezes premiada com o Jabuti, Dora tem recebido atenção de críticos importantes como Vilem Flusser, Van Acker, Wilson Martins. Casada com filósofo Vicente Ferreira da Silva, transformou sua casa na rua José Clemente num efervescente ponto de cultura. Com a morte prematura de Vicente, foi em frente e, enquanto pôde bancar, publicou a revista Cavalo Azul. Ivan Junqueira, sempre atento, tem sido um fiel defensor da poesia de Dora, publicando-a na revista Poesia Sempre e estimulando outros poetas a lerem seus livros. O “isolamento” de Dora tem diversos motivos. Um deles é seu elegante alheamento a tudo que seja vida literária, divulgação ou jogo de influências. Dora está sempre interessadíssima em conversar, em ler outros poetas. Nunca, entretanto, desvia sua atenção da Poesia. Sua atitude aristocrática descarta alardes nem autopromoção. Seu tempo é ocupado com a Poesia e com as traduções de Jung e Hölderlin. Recentemente, publicou pela Paulus Tauler e Jung que escreveu em parceria com Hubert Lepargneur. Um outro motivo seria mesmo o caráter ímpar de sua poesia. Longe do mundo das universidades ou de modismos, sua poesia não tem a repercussão que merece, embora haja uma fortuna crítica de porte. Publicando como todos nós, poetas sem eira nem beira, por pequenas editoras suas obras não ganharam a circulação devida em livrarias e bibliotecas. Com oito livros publicados, sua obra está por merecer uma visita em perspectiva que mostre a consistência e, ao mesmo tempo, a delicadeza de sua poética. Aos que se interessam pela poesia, vale a pena perder-se e achar-se na intrincada tapeçaria que tece a sibila Dora. Até agora poucos tiveram o privilégio de conhecê-la. Já é mais do que hora de o Brasil descobri-la como um de seus talentos genuínos.

 



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12/04/2006