Diego de Carvalho
Cinzeiro repleto de corpos
sonâmbulos internos
A apologia aos próprios vícios
é um brinde à magnitude quase divina
representada pelo concreto urbano.
Crepúsculo cinzento. Pássaros
excitados pela transição temporal desaparecem entre marquises e
bueiros. Luzes artificiais conectam-se, em reciprocidade, ao
emaranhado de máquinas automotivas. Uma lua insensível esconde-se
entre a neblina e o cume de prédios silentes, não permitindo a
expressão da patologia poética. Em algumas frações de segundos, a
fauna urbana metamorfoseia-se, reproduzindo máscaras em constante
mutação. Médicos e advogados retiram suas cínicas pompas,
transformando-se em cafetões e traficantes.
Estudantes são abduzidos de seus
ingênuos corpos, decompondo-se na imagem de assaltantes.
Donas-de-casa transtornadas pelo misticismo selvagem vendem vaginas
e boquetes efêmeros nas esquinas. Apenas os mendigos, e toda a gama
de indigência improdutiva, mantêm sua forma corpórea, pois seus
organismos já foram manipulados, em essência, antes do último
suspiro solar.
Sigo meu caminho percorrendo as
carcaças e os esqueletos de ferro e carne que a cidade expele de seu
magnânimo estômago canceroso. Câncer intensificado, aos poucos, pelo
gás artificial que impõe à saúde inverossímil urbana. Em estado de
torpor, mantenho-me conectado, tentando contemplar os espaços e
restos que a metrópole ainda não digeriu.
Ratos ensandecidos introduzem-se em
canos de escoamento e ventilação. Morcegos curram rolinhas entre
árvores de secularidade sui generis. Faróis iluminam restos
de jardins de piche abarrotados de micro-organismos semivivos. Cães
brincam com suas parceiras consumindo as alegrias espasmódicas do
cio. Prostitutas e travestis, com suas entranhas de silicone e almas
voluptuosas de papel de seda, cospem elegias venenosas entre si. As
meninas e os meninos da noite, meus parceiros de penitências
físico-afetivas, em sua maioria, tornaram-se clones.
Peitos-bundas-espírito-estilo reproduzidos em um simulacro perpétuo,
na vã tentativa de atingir-se a perfeição, criando bonecos
enclausurados em um obsceno e ineficaz museu de carne e terror.
Senhoras arrastam-se embriagadas em
calçadas empunhando poodles de plástico e intenções patéticas.
Crianças consumidas por viroses desconhecidas jogam futebol em plena
avenida, entre automóveis e seringas descartáveis. Mendigos em
trajes de gala lutam por pedaços de excremento e garrafas de
caipirinha de gasolina. Viciados, em narcose, choramingam canções de
amor com sentido dúbio. Bebês dão os seus primeiros passos em restos
de lixo hospitalar, não sangrando seus pequenos pés idosos e
calejados. Uma chaminé insone vomita o oxigênio necessário para a
manutenção vital da metrópole. Em frente à boca de crack um letreiro
luminoso grita: “Em reforma”. A noite vende suas vísceras a
domicilio.
Acendo um cigarro. Cuspo restos de
saliva e de órgãos internos no meio-fio. A lua vai brochando,
lentamente, mas sorri em sua potência. A aurora dá continuidade ao
ciclo e, aos poucos, espíritos terminais transmutam-se em corpos
definidos pela rigidez moral e estética solar. Heroinômanos catam
pastas e gravatas em sarjetas e enclausuram-se em gabinetes
neuróticos sem ventilação. Michês limpam seus ânus vaselinados, com
uniformes assépticos, e percorrem os corredores intermináveis da
burocracia decadente. Ratos ganham asas, mas mantêm-se no chão
ingerindo alpiste e lixo. Maconheiros recolhem seus baseados
chapando-se da fumaça das fábricas e seu virulento THC fordiano.
Jovens recém-estupradas encaminham-se à feira em busca de seu
desjejum. Mas, estranhamente, os insones, e algumas almas de aura
vibrante, continuam estáticos em seu físico. Pois o crepúsculo e a
aurora nada significam para aqueles que queimam a própria carne em
ode à instabilidade.
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