Diego de Carvalho
Flatulência subjetiva em nocaute
psíquico
Momento atemporal. Um instante perdido
entre miríades de instantes incorpóreos e surreais. O relógio
romano, alojado no intestino do hall principal, perde-se em mutismo.
O tempo estuprado, em minha psique, alicia-me. Tento não encarar o
espelho. O acúmulo de intensidades doloríferas impõe imagens que não
tenho coragem de contemplar. Escarro restos internos, como
excremento azedo, nos ladrilhos. As mãos trêmulas tocam a face com
aspereza. Vertigens intensas surgem em pontos ambíguos do atônito
organismo. O ar pulula, como cal, entre as narinas. Sons
indefinidos, compondo uma sinfonia polifônica, atravessam os ouvidos
metamorfoseando-se em gritos inaudíveis. O corpo, perdido na insânia
da ressaca anterior, é sucumbido pela própria existência.
Ingiro um pouco de água. O líquido
insípido, mas corrosivo, impele a bílis a migrar para a boca e, em
seqüência, ao espaço indefinido. Os gritos continuam e, aos poucos,
ganham vida transubstanciando-se em imagens multiformes. Fecho os
olhos calejados. As imagens, em desconexão, entram em êxtase
lisérgico. Pressinto o nocaute psíquico. Em um ato reflexo, tento
balbuciar um pedido de ajuda, mas as cordas vocais paralisam-se,
impotentes. As imagens tornam-se cada vez mais nítidas, produzindo
uma cena. Insólita paródia de reminiscências.
É noite. Alguém me pede um cigarro.
Sem pudor, sorri e toca a parte interior de minha coxa. Eu
correspondo com um beijo de fumaça. Pergunto-lhe o nome. Ele (ela?)
nada diz, apenas continua sorrindo e acaricia minha face com certa
ternura. Fito seus olhos e percebo um brilho selvagem e sensual. É
uma garota. De forma negligente, ela belisca minhas nádegas. A
excitação do toque mescla-se a uma sensação de estranheza.
Petrifico-me pela existência de tal sentimento. Ela me chama de
querido. Encaro seu rosto e não o reconheço. Tenho o impulso de
iniciar um diálogo, mas prefiro presenteá-la com um golpe abrupto no
supercílio esquerdo. Ela expele um uivo de desespero. Sem piedade,
continuo com a agressão. Dou-lhe um chute que atinge, com perfeição,
o estômago, e finalizo o ato com uma mordida canibalesca na orelha.
Sinto um pedaço de cartilagem na boca. Cuspo-o e ouço ela dizer o
meu nome. Uma lufada fantasmagórica me atinge. A noite escurece-se
gradativamente até tornar-se um grande vácuo.
Abro os olhos e encaro o espelho pela
primeira vez. O rosto expõe um tom de escárnio para si mesmo. Noto
hematomas em volta dos olhos e uma cicatriz insensível na testa. A
barba, por fazer, torna-se mais eficaz que o calendário. Três?
Quatro dias? Quanto tempo a ilusão teria perdurado? A boca seca
emite um eflúvio indefinido. Câimbras reproduzem-se sem timidez. De
repente, uma sensação transparece. Sinto-me nauseado. Sinto-me
aflito. Aflição que me aterroriza. Dores ermas despontam nas
extremidades de órgãos não corporais, alojando-se no início da
auto-estima. Tremulo fisicamente, sem sentido fixo ou linearidade,
tentando manter o equilíbrio. A sensação, de extremo desamparo,
transubstancia-se em sutil psicose. Contemplo os olhos. As pupilas
dilatadas formam um palco lúgubre que me impõe lágrimas. O líquido
lacrimal queima o rosto como clorofórmio. Respiro fundo. Tento me
recompor. Tento ao máximo não me deixar abater por qualquer tipo de
sentimentalismo, mesmo espectral, mas, mesmo assim, pressinto o
nocaute psíquico.
Ouço uma voz. A voz suave imita um sussurro. Meu corpo arrepia-se e
produz uma ereção. A ereção e o sussurro compõem bizarros acordes
hiper-sensíveis que aumentam gradativamente de tom. Acordes
bizarros. Acordes e gritos. Apenas gritos. Os gritos se prolongam
até transformarem-se em um turbilhão de imagens que explodem em um
ponto luminoso visível.
Um corpo apresenta-se a minha frente.
Estou de pé junto a uma pia. Movimento-me para frente e para trás.
Estou copulando. Com vontade, injeto meu falo no interior de outro
corpo. Em recíproca, ele dança suavemente. Clima de supra-excitação.
Tesão gostoso atingindo a nuca e o ventre. Cada vez mais rápido.
Mais rápido. Domino a excitação, ao máximo, para prolongar o
momento. Tesão desvairado. Mas, de repente, surge um rosto. Uma face
conhecida. Meu cunhado. A pouca luz existente, em minha alucinação,
apaga-se. Recobro os sentidos.Volto novamente à frente do espelho.
Com forças extra-reais mantenho-me de
pé, aterrorizado. Os pés formigam em sua face. Sinto o crescimento
de unhas e a proliferação de rugas. Os órgãos internos comunicam-se
entre si. O fígado enfermo procria o início de reações cancerígenas.
Sulcos estomacais são corroídos por ácido malignos. Miasmas pululam
entre os poros. Encharco-me de suor purulento. A boca enoja-se do
próprio gosto. Vomito um jato substancial, de líquidos viróticos, em
meu peito. Acessos paranóides transformam ressentimentos passados e
futuros em sentimentos atuais. Dores solitárias trafegam no ventre.
Dor inconstante. Ansiedade profunda. Torpor interno parasitando os
resquícios de força de vontade. A libido, esfacelada nos ladrilhos,
agoniza de forma inflexível.
Os sussurros retornam, aliciando-me.
Eles surgem de dentro e de fora, da periferia, de lugar algum.
Sussurros atonais. Sussurros alucinantes. Sussurros vivos e
pulsantes. Em um crescendo, os sussurros compõem bizarros acordes
hiper-sensíveis, que aumentam gradativamente de tom até tornarem-se
um grito seco. Uivo gutural primata. Grito latente e manifesto. O
grito se procria em uma polifonia cênica. Gritos ouvidos pelo globo
ocular. Contemplo-os. Imagens audíveis. Sons em matéria visível.
Nocaute psíquico.
Percebo-me estendido em uma cama
asséptica. Uma face sem traços definidos me fita. Ela emite
onomatopéias disléxicas. Murmúrios doentios são escarrados da boca
inexistente. Entro em desespero. Tento gritar, mas meus lábios estão
costurados. Lábio superior e inferior, interligados. Um senhor de
óculos, vestido de branco, prosterna-se a minha frente,
multiplicando-se em dezenas de seres. A face, sem traços definidos,
continua escarrando sílabas incompreensíveis até compor um
emaranhado de palavras concretas. Cirrose? Aids? Entro em êxtase
epilético, tentado me expor, mas mantenho-me inerte. As palavras
continuam. Overdose? Suicídio? Uma mão gélida e anêmica acaricia
minha face. Mão fraterna. Mão familiar. Mão íntima. A mão de minha
mãe ressuscitada. Lágrimas escorrem corroendo-me por dentro. Uma luz
etérea nasce de spots de carne. A luz redunda explodindo em uma
multiplicidade imaculada de luzes.
O relógio romano, alojado no intestino
do hall principal, recompõe os minutos e os segundos. O tempo
inexistente é domesticado. A escova de dente não mais me assusta.
Empunho-a e a introduzo em minha boca. Minha brava indiferença
bloqueia a bílis. Escovo os dentes, cuidadosamente. As gengivas, em
carne viva, queimam suavemente. Respiro uma adocicada fragrância de
excremento, que me felicita. O alívio beija a minha face espinhenta.
Os dentes amarelados, consumidos pela nicotina, revelam um sorriso.
Sorrio para mim mesmo.
Abro a porta do banheiro. Minha
esposa, deitada na cama, perde-se em escapismo sonífero. Apesar das
cicatrizes e do sangue em seu corpo, ela transparece serenidade.
Beijo seus cabelos. Beijo uma ferida aberta no supercílio esquerdo.
Beijo sua orelha decepada. Encaminho-me para a sala. Meu cunhado, nu
em pêlo, afaga o travesseiro. Suas nádegas avermelhadas e seu ânus
visível relaxam, insolentemente. Direciono-me à cozinha. Bebo um
gole de água. Contemplo pela janela a decrepitude solar.
Reconforto-me. Olho os transeuntes, a poucos metros, criando trilhas
de plástico no asfalto. Um facho de luz choca-se em minha íris.
Raios ultravioletas de inocência sui generis. Fico cego.
Apenas uma fagulha dourada apresenta-se em meu foco de visão. Um
ruído distorcido revela-se em algum lugar, provavelmente no câncer
da metrópole. O ruído decompõe-se em um grito que se metamorfoseia
em imagens. Turbilhão de imagens. Acendo um cigarro. Perco-me em
visões alucinantes de uma realidade imprópria e sugestiva. Mas, não
me importo. Guardo o medo e a aflição para a próxima ressaca.
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