Dimas Macedo
Aurélia Teixeira Férrer
Centenário de uma mulher exemplar
Em 1804, na primitiva Povoação de
Lavras, ainda não-elevada à condição de Vila, o Governador do Ceará,
João Carlos Augusto de Oyenhausen e Gravenburg (o Marquês de
Aracati), descendente da Marquesa de Alorna, e com ascendência numa
das principais nobrezas da Europa, levou à pia batismal um dos
filhos de Francisco de Oliveira Banhos e Ana Rosa de Oliveira
Banhos.
E possivelmente por impulsos de
sangue, permitiu que o menino levasse o seu nome para a posteridade.
João Carlos Augusto, o filho afortunado de Ana Rosa, foi, como o
padrinho, um dos grandes políticos da época em que viveu. Mas foi
grande, fundamentalmente, porque reproduziu na descendência o
sobrenome ilustre que herdara, por via de afetos que a tradição
ainda não pode comprovar.
A Família Augusto, portanto, da cidade
de Lavras da Mangabeira – Ceará, segundo Joaryvar Macedo (Os
Augustos, Fortaleza, Imprensa Universitária, 1971), é originária
daquele município, onde nasceu o menino João Carlos, cujos prenome,
nome e sobrenome lhe foram confirmados pelo rito sagrado do batismo.
Essa singularidade, contudo, na pátria
de Linhares Filho e de Sinhá D’Amora, não é um privilégio dos
Augustos, tão-somente: Raimundo de Araújo Lima (descendente de uma
outra estirpe memorável) e Ana Gonçalves da Silva (a conhecida
Naninha dos Pereiros) também geraram um varão que se tornou uma
espécie de Abraão daquele município. Seu nome: Vicente Férrer de
Araújo Lima. A ele coube o privilégio de batizar os filhos (a todos,
indistintamente) com o prenome que recebera em homenagem ao
padroeiro da freguesia – São Vicente Ferrer.
Férrer (com acento agudo na primeira
sílaba) e não Ferrer, como são conhecidos os componentes dessa
tradicional família da Ibéria, foi o artifício que Raimundo de
Araújo Lima e Ana Gonçalves da Silva encontraram para preservar um
jeito de ser, lavrense, muito especial.
Porém, deixando um pouco de lado os
Araújo Lima – sobrenome que ungiu também um dos maiores lavrenses do
seu tempo (Raimundo Ferreira de Araújo Lima: Deputado Geral e
Ministro da Guerra do Império) –, passemos agora para o outro ramo
da ancestralidade de Vicente Férrer de Araújo Lima, pai da
homenageada, cujo centenário é comemorado nesta ocasião.
Seria ele, por via da avó ou do avô
maternos, segundo uma versão e uma tradição histórica que ainda não
pude comprovar, bisneto privilegiado de Vitorino Gomes Leitão e de
Joana Batista de Jesus; neto de Pedro Ribeiro Campos e Ana Maria
Bezerra; e filho, como já vimos, de Ana Gonçalves da Silva e de
Raimundo de Araújo Lima.
Não tenho elementos para confirmar ou
negar essa afirmação. Mas posso assegurar, contudo, que nem o seu
nome, nem os nomes dos seus ascendentes (maternos ou paternos),
figuram em Os Gomes Leitão – Ramos de Lavras, Crato e Cajazeiras, de
autoria de Deusdedith Leitão (João Pessoa, Companhia Editora A
União, 1982).
Pesquisando-lhe os traços biográficos,
entretanto, acho que é possível afirmar o seguinte: Vicente Férrer
de Araújo Lima foi componente da Guarda Nacional da Comarca de
Lavras, tendo, em fevereiro de 1890, na condição de republicano
histórico, assumido o Conselho de Intendência Municipal.
Em fase posterior da sua militância
política, de forma serena, porém sempre firme e conciliatória,
ocupou os cargos de Vereador e Presidente da Câmara, tendo exercido
também o cargo de Prefeito Municipal de Lavras, em pelo menos duas
oportunidades: em 3 de maio de 1925 e a 20 de setembro de 1926,
segundo pude constatar em Lavras da Mangabeira – Um Marco Histórico,
de Rejane Monteiro Augusto Gonçalves (Fortaleza, Tiprogresso, 2ª
ed., 2004).
Nascido na então Vila de Lavras, em
1858, alí faleceu aos 02 de novembro de 1929, contando 71 anos de
idade. E para muito além de político e cidadão exemplar, senhoreou,
em seu município de berço, propriedades agrícolas e várias fazendas
de criar, entre elas a Cachoeira, a Cabaceiras, os Pereiros, o Poço
e a Várzea Cumprida, consociando-se alí com Maria Teixeira de Araújo
– Maria Teixeira Férrer, posteriormente, ou Mariinha Férrer, como
ficou conhecida pelos seus conterrâneos.
Mariinha Férrer, a mãe afetuosa e
querida de Aurélia, por via do avô paterno, era descendente dos
Teixeira Mendes, da vizinha cidade do Icó. Já por via de sucessão da
avó paterna (Ana Rosa Joaquina), e da avó materna (Pulquéria
Bernardina Sobreira), possuía ascendência na casa dos grandes
patriarcas que povoaram o município de Lavras, e que foram,
coincidentemente, seus bisavós: Francisco Xavier Ângelo Sobreira,
senhor da Fazenda Logradouro (margem esquerda do Salgado),
Capitão-Mor e Comandante Geral da Vila de São Vicente das Lavras; e
Antônio José Correia, senhor da Fazenda Mangabeira (na margem
direita do Salgado) – sede da primitiva povoação de São Vicente
Ferrer.
Vicente Teixeira Mendes, o pai de
Mariinha Férrer e avô materno de Aurélia, nasceu em Lavras da
Mangabeira, aos 21 de outubro de 1842, e faleceu na mesma cidade,
aos 24 de fevereiro de 1884. Era filho de Antônio José Teixeira e
Ana Rosa Joaquina Xavier Sobreira. Teve por esposa Silvéria
Bernardina Sobreira: ela, filha de Pulquéria Bernardina Sobreira e
do Tenente-Coronel Manuel Antônio Correia Favela.
Pulquéria Bernardina Sobreira, a
bisavó materna de Aurélia, era filha de Maria Silvéria de Almeida e
de Antônio José Correia, acima nominado. Já Ana Rosa Joaquim Xavier
Sobreira, a bisavó paterna, era filha de Francisco Xavier Ângelo
Sobreira, também acima referido, e da sua segunda mulher, Cosma
Francisca de Oliveira Banhos, irmã, esta última, de João Carlos
Augusto, pai de Fideralina Augusto e fundador da oligarquia-mor do
Vale do Salgado.
Manuel Antônio Correia Favela, avô
materno de Mariinha Férrer e, por conseguinte, bisavô materno de
Aurélia, era natural de Várzea Alegre e pertenceu à Guarda Nacional
de Lavras, no posto de Tenente-Coronel. Rendido aos encantos da
mulher e ao patrimônio desmedido do sogro, Antônio José Correia,
fixou-se na gleba adotiva e alí contraiu relações sociais
duradouras. Entre os seus descendentes, além de todos os integrantes
da Família Férrer, estão os membros da Família Favela, contando-se
entre eles o poeta popular lavrense, João Favela de Macedo, os
ex-vereadores e líderes políticos daquele município, Vicente Favela
de Macedo e Manuel Favela Saraiva (Nelzinho), e o Monsenhor José
Edmilson de Macedo, orador sacro de renome e Cônego Catedrático do
Cabido da Sé da Bahia.
Vivenciando um dos casamentos mais
duradouros e eficazes da história de Lavras, o coronel Vicente
Férrer de Araújo Lima e sua consorte Mariinha Férrer foram pais de
uma prole de 15 filhos, pelo menos – oito homens e sete mulheres,
assim discriminados em ordem cronológica: Aurélia (a primeira desde
nome), Maria Cira (consorte do Coronel Raimundo Augusto Lima), Luís
(Lêla Férrer, consorte de Guilhermina Augusto de Aquino), Maria
Marian (consorte do Dr. José Gonçalves Linhares), Oswaldo
(cognominado Teixeira, consorte de Augusta Benevides), Ana
(cognominada Sinhara, consorte de José Lindolfo Bezerra), Celí
(consorte de José Augusto Banhos), Benedicto (doutorando da
Faculdade de Medicina da Bahia, falecido aos 19 de agosto de 1928),
Anselmo (consorte de Guiomar de Holanda Cavalcanti), Silvéria (Soubé,
sem descendência), Sandoval (sacerdote da ordem secular), Amâncio
(falecido criança), Aurélia (Irmã Férrer, a segunda deste nome),
Dorimedonte (Dori, consorte de Necita de Sousa Férrer) e Vicente
Férrer de Araújo Lima Filho (Ferrim, sem descendência).
Aurélia Teixeira Férrer (Irmã Férrer,
Madre Férrer ou ainda Tia Ledy, como era carinhosamente tratada
pelos seus sobrinhos, e a quem me compete reverenciar neste texto)
seguiu a carreira religiosa, tal como o irmão de nome Sandoval, que
chegou, na vida eclesiástica, à dignidade de Cônego.
Era, na ordem dos filhos de Mariinha
Férrer e de Vicente Férrer de Araújo Lima, a décima terceira na
linha de sucessão filial. E também a segunda a receber o nome da
primeira filha do casal, falecida aos 17 anos.
Nasceu em Lavras da Mangabeira/Ceará,
aos 26 de novembro de 1905. As primeiras letras aprendeu-as no
próprio ambiente familiar e as tomou dos professores Henrique
Augusto de Aquino e Afonso César Targino Filho, este último Juiz de
Direito da Comarca de sua terra de berço. Em 1923, entrou para o
Colégio de Nossa Senhora do Sagrado Coração, de Fortaleza, dirigindo
pelas Irmãs Dorotéias, onde realizou os estudos secundários e o
Curso Complementar.
A inclinação de Aurélia, para a vida
religiosa e espiritual, não se deve apenas à influência do irmão, o
Cônego Sandoval, que foi, por sinal, a amizade e o afeto que lhe
tocaram de perto à sensibilidade. Essa inclinação, ao contrário,
atende a um jeito de ser de seus predecessores. O ilustre sacerdote
lavrense, João Correia da Costa Sobreira, por exemplo, era irmão da
sua bisavó Pulquéria. E da casa do seu trisavô, Francisco Xavier
Ângelo Sobreira, proviam os célebres revolucionários lavrenses,
Padres José Joaquim Xavier Sobreira, Cosmo Francisco Xavier Sobreira
e Francisco Xavier Gonçalves Sobreira, todos, assim como o primeiro,
formados no tradicional Seminário de Olinda.
Alguns colaterais de Aurélia,
igualmente, assumiram funções sacerdotais de forma muito virtuosa.
Mas nenhum deles, me parece, e nenhum deles – repito –, em grau de
santidade e de apego aos Evangelhos, foi superior àquele que é, de
fato, a glória suprema do ramo materno da família – Tito de Alencar
Lima (Frei Tito), célebre dominicano brasileiro de renome
internacional e primo, aliás, em segundo grau, de Aurélia.
Decidindo-se pela vida religiosa, em
Olinda, Pernambuco, fez o noviciado da Congregação das Irmãs de
Santa Dorotéia, onde teve por professor de Latim o Monsenhor
Pedrosa. Terminando o aprendizado religioso em Olinda, seguiu para
São Luiz do Maranhão, onde iniciou o seu apostolado, vindo em
seguida prestar serviços à congregação em Fortaleza.
No Colégio das Dorotéias de
Cajazeiras-PB esteve por um período de dez anos e, em Alagoa Grande,
no mesmo Estado, permaneceu durante os anos de 1954 e 1955. A Ordem
das Dorotéias conduziu-a para Belém em 1956 e, em 1959, as
exigências do apostolado a levaram aos Estados Unidos, onde residiu
por um período de quatro anos, regressando ao Brasil em 1963. Alí,
estabeleceu-se na Região da Nova Inglaterra, mais precisamente em
Bristol e New Betford, onde desenvolveu intenso trabalho caritativo,
realizando da mesma forma estudos superiores de Teologia e
Psicologia na Universidade da Providência, em East Providence.
Nos Estados Unidos da América, manteve
relações de amizade e de trabalho caritativo e social com a família
Kennedy, de cuja residência foi hóspede, sendo, inclusive,
correspondente de Jacqueline Kennedy no Brasil. Foi também
correspondente, no Brasil, de Dag Hammarsjöld, ex-Secretário das
Nações Unidas, a quem conheceu quando da sua estadia na Europa e
cujo perfil cinzelou em um dos seus escritos em prosa.
Dos Estados Unidos regressou
diretamente para Belém, onde viveu a maior parte da sua vida de
religiosa. Alí integrou o núcleo regional da Conferência Nacional
dos Bispos do Brasil, por designação da Arquidiocese de Belém, e
militou como jornalista profissional na imprensa da capital
paraense, especialmente junto aos jornais O Liberal, A Província e A
Folha do Norte, mantendo ainda na Rádio Liberal um programa de
orientação religiosa.
Em 1966, a serviço da Congregação,
viajou por Portugal, Espanha, França, Itália, Suíça, Alemanha,
Grécia e Israel, registrando essa peregrinação em magistrais poemas
tocados pela magia da fé. Retornando a Belém, prosseguiu em seu
apostolado, sendo transferida para Fortaleza em 1977, onde
desenvolveu parte da sua missão apostolar, religiosa e educativa,
junto ao Colégio de Nossa Senhora do Sagrado Coração, do qual foi
professora e secretária. Junto à Arquidiocese de Fortaleza, dirigiu,
por algum tempo, o Boletim Informativo Arquidiocesano, por
designação do Cardeal Aloysio Lorscheider, de quem foi colaboradora
em vários projetos de cunho social.
Nas lides do magistério, distinguiu-se
como professora de Inglês, Latim, Francês, História e Português.
Além da publicação Na Voz do Uirapuru, e de outros folhetos que
divulgou em vida, colaborou com a imprensa de Fortaleza e de outros
Estados. Poetisa de extraordinários recursos e prosadora de erudição
e talento, em 1980, publicou em Brasília, pela Gráfica do Senado
Federal, um substancioso livro de poemas – Em Busca da Plenitude,
bastante elogiado pela crítica e com ele propondo-se a restabelecer
a poesia em Cristo, de quem se fez amante fiel e muito fervorosa.
Estreando, aos 75 anos, com um livro
pleno de poemas maduros e desataviados, chamou de logo a atenção de
grandes escritores cearenses, tais como Jader de Carvalho, José
Valdivino, Moreira Campos, Linhares Filho e Artur Eduardo Benevides,
que escreveram, de forma apaixonada (e cada um a seu modo), sobre o
significado e a leveza estética da sua linguagem literária.
Em 1986, atendendo a apelo de ordem
interior, publicou o livro – Mensagens e Perfis, pela Editora do BNB,
sob a chancela de Mauro Benevides, e com apresentações de Eduardo
Campos e Joaryvar Macedo. Trata-se, no caso, de um conjunto de
ensaios e reflexões, todo ele aberto à participação e ao diálogo. E
assestado também para a dimensão espiritual dos grandes homens do
seu tempo, que se encontram alí perfilados.
Se Em Busca da Plenitude reúne poemas
tocados pela força do amor, pela transcendência da meditação, pela
magia da fé, pelo sortilégio do espírito e pela seiva vivificante da
sensibilidade e do afeto, Mensagens e Perfis, a seu turno, revela,
para todos nós, uma prosadora plenamente senhora da linguagem e da
mundividência com as quais apreende a composição do seu artesanato.
No livro com que a Irmã Férrer
assinala o seu ingresso no convívio da letras, eu diria que aparece
exposta a fratura da sua incontrolada emoção, a fratura da sua
mensagem de sensibilidade e de encanto, ungida pelo sândalo da sua
alegoria criativa e pelo compromisso com o soerguimento de um novo
amanhã.
A poesia com que ela nos brinda o
sentimento rebelado diante das asperezas do mundo, representa bem o
atestado de quem se deixou desabrochar poetisa em estágio de
maturidade, circunstância, aliás, que se deixa fotografar em todo o
conjunto da sua luminosa produção, em cujo esteio a Madre Férrer se
expõe como notável escritora, até mesmo nos poemas em que a rima e o
ritmo de gosto popular predominam.
Prova-nos a Irmã Férrer a sua
segurança quando trabalha na confecção de poemas caracteristicamente
mais longos; entretanto, nada nos fica a dever quando nos revela a
sua perplexidade de artista na feitura de poemas de menor dimensão,
ou ainda quando parte para a montagem de um soneto do porte de “Mãos
Sacerdotais”, sendo inquestionavelmente proveitoso o efeito por ela
extraído dessa modalidade de composição.
Já no pertinente a seus textos,
reunidos em Mensagens e Perfis, não saberia na verdade o que melhor
apreciar: se as suas crônicas, banhadas pela leveza do cotidiano; se
os seus ensaios, ungidos pelo encanto do lirismo e das revelações.
Sua linguagem, por outro lado, parece facilmente acessível a
qualquer tipo de leitor. Como função social, os seus textos valem
sobretudo pela mensagem que disseminam e pelo poder de convencimento
com que imanta a sua produção literária.
E por tudo isso, aliás, é que Joaryvar
Macedo nos assegura que as suas crônicas, enfeixadas em Mensagens e
Perfis, são “reveladoras de uma prosa leve, suave, simples e, por
isso mesmo, agradável e aliciante”, tendo Eduardo Campos, da mesma
forma, nos garantido que Deus está presente nas páginas descritas
pela Irmã Férrer, “presente pela luminosidade de espírito de uma
religiosa que sabe ver, sentir e escrever com segurança”.
Quando fala de monstros sagrados como
Tancredo Neves, João Paulo II, Enrichetta Cesari, Teilhard de
Chardin ou João Gonçalves de Sousa, por exemplo, a Irmã Férrer
parece chegar ao melhor equilíbrio da sua produção. Contudo, não
fica atrás quando descreve o drama dos desamparados, o universo dos
simples ou a angústia dos que se acham privados do senso de
fraternidade e humanização.
Devo registrar, agora, que os seus
livros acima referidos, com a ajuda de Miriam e de Zenilo Almada,
foram por mim lançados no Náutico Atlético Cearense, em 20 de junho
de 1990. E sobre eles escrevi um texto de crítica literária, que
publiquei no Diário do Nordeste e que reproduzi no meu livro Ossos
do Ofício (Fortaleza, Editora Oficina, 1992).
Orgulho-me também de ser o autor do
seu perfil biográfico, aquele que se pode ler num dos meus livros
mais afetuosos – Lavrenses Ilustres (Fortaleza, BNB/Secult, 2ª
edição, 1986). Alí, de forma didática e resumida, exalto a sua
postura de poetisa e de mulher, a sua trajetória exemplar de
sertaneja que honrou a sua terra natal e o Brasil, mercê da sua
projeção internacional, e que faleceu em Fortaleza, aos 10 de
dezembro de 1995.
Lamento que seu último conjunto de
poemas, intitulado Poesias, ainda permaneça inédito, juntamente com
o seu Diário de Viagem à Europa e Oriente Médio, escrito, este
último, em 1966. Sei que essas relíquias e os seus objetos de uso
pessoal foram recolhidos pela direção da Província Religiosa a que
pertencia.
Dalí, em duas oportunidades, pelo
menos, eu a carreguei nos braços para a Assistência Municipal de
Fortaleza e o Pronto Socorro dos Acidentados, quando,
sucessivamente, vítima de pequenos acidentes, fraturou o fêmur e a
bacia. Nessas ocasiões de dor e sofrimento, ela se limitava a
sorrir, olhava-me carinhosamente nos olhos e dizia: “Dimas, sempre
você por perto cuidando de mim”.
Não. Não era. O amor filial que eu
tinha pela Madre Férrer era que me permitia a graça da aproximação,
é que me havia dado o ensejo de levar os seus livros para as
editoras. Numa dedicatória/agradecimento que me fez no primeiro de
seus livros, registrou de público a minha participação no
empreendimento. E quando publicou o segundo, me pediu, de forma
carinhosa, que escrevesse a apresentação do volume. E vendo que eu
havia indicado Joaryvar Macedo e Eduardo Campos para a execução da
tarefa, reservou-me a quarta-capa do livro e não perdoou a minha
sutilidade de amigo.
Nessa época, os meus filhos diziam que
a Irmã Férrer era a minha namorada. E era. A admiração que eu sentia
por ela (e ainda sinto), me fazia cativo das suas inúmeras virtudes,
e beneficiário das suas orientações e conselhos. E tributário também
dos seus cuidados e fiscalizações diuturnas.
Foi ela, por exemplo, que me levou
para o consultório de Glaura, numa época em que tudo para mim era
hipertensão e desequilíbrio coronariano, em que tudo para mim era
uma vontade imensa de amar, incontrolada e incompreendida. Mas não
por ela, verdadeiramente, e por Glaura Férrer, que passaram, com
carinho, a sentir os impulsos do meu coração em sobressalto.
Pregoeira da mansidão e da bondade,
mestra da vida espiritual e afetiva e expressão de amor maternal que
muito me ensinou acerca da arte de viver, a Irmã Férrer constitui
para mim o exemplo de quem se faz luz para o mundo, e ancora em Deus
o significado de toda a existência terrena.
Acho, no entanto, que sua posição de
líder espiritual da família lhe deu um lugar de destaque entre os
que admiravam a sua postura de santa e de doutora. Convivi com ela
não apenas nesta condição, mas na condição de lavrense e de sócio
privilegiado do Clube de Amigos que partilharam com ela as atenções
de brasileiros e cearenses com quem interagiu e conviveu em sua
proveitosa existência.
Talvez me seja lícito apontar, no
Brasil, entre as suas grandes admirações, o ex-ministro do interior,
João Gonçalves de Sousa, Dona Risoleta Neves, que foi sua amiga e
correspondente, e o industrial Edson Queiroz, de cuja intimidade
privou com o maior entusiasmo. E entre os cearenses eu colocaria os
nomes de Artur Eduardo Benevides e Dona Yolanda Queiroz,
esclarecendo, aqui, que nenhum desses nomes exerceu sobre ela maior
influência e bem-querer do que Rachel de Queiroz, sua amiga, colega
de colóquios proveitosos e interlocutora privilegiada.
Lembro-me das nossas conversas com
Dona Yolanda Queiroz, tanto na Província das Dorotéias, no bairro
Dias Macedo, quanto na sede do Grupo Edson Queiroz, na Praça da
Imprensa. Quanto a Rachel de Queiroz, invoco o fato de que Rachel
vivia permanentemente interessada por Fideralina Augusto, a célebre
matrona lavrense. E éramos Joaryvar Macedo, eu e a Irmã Aurélia
Férrer as fontes que Rachel sempre consultava no Ceará enquanto
finalizava o seu clássico Memorial de Maria Moura (São Paulo,
Editora Siciliano, 1992).
E tanto que, quando publicou o
opúsculo sobre a grande coronela lavrense, intitulado Dona
Fideralina das Lavras (Rio, UFRJ, 1990), foi a Irmã Aurélia Férrer a
destinatária da distribuição do opúsculo entre seus amigos do Ceará.
Heloisa Buarque de Hollanda, a co-autora de Dona Fideralina das
Lavras, disse-me, certa vez, que uma das virtudes de Rachel era ser
conterrânea de três mulheres que muito admirava: Fideralina Augusto,
Sinhá D’amora e Aurélia Teixeira Férrer, todas, coincidentemente,
minhas conterrâneas de Lavras da Mangabeira-Ceará.
Se, entre nós, sabemos ou não sabemos
o significado dessa poetisa estupenda e dessa cronista de escol, que
o Ceará legou à literatura do Brasil, talvez não importe tanto no
momento, quanto o fato de que, neste ano de 2005, a Sociedade Amigas
do Livro/SAL está sintonizada com o seu centenário. É a essa
sociedade de mulheres que devemos a homenagem que hoje se presta à
sua memória imperecível. A Gláucia Férrer Pompeu, em primeiro lugar,
e a Glaura Férrer Dias Martins, sobrinhas diletas e queridíssimas da
Irmã Aurélia, sou grato de uma forma muito especial. E a Regina
Fiúza também, que me convidou, de forma prazerosa e sincera, para
aqui falar sobre uma das maiores admirações e esteios que remarcaram
toda a minha vida.
Centro Cultural Oboé,
Fortaleza, 03/05/2005. |