Dimas Macedo
A ficção de Dias da Silva
Dias da Silva é um dos meus escritores
preferidos. Tenho por ele uma admiração e um afeto que extrapolam a
minha maneira serena de pensar. Sabe ser discreto e humano como
poucas pessoas que conheço e o seu coração de amigo é generoso e é
bom.
Estou que Dias da Silva possui um
certo ar de santidade, talvez porque seja, com certeza, um grande
pecador. Comete tantos duelos e volteios com a palavra que às vezes
penso que nunca vai se curar. Diz que vai parar de escrever e não
pára. Remói a picardia do texto e sempre triunfa diante do leitor.
É, no entanto, portador de um grave
defeito do qual já se devia ter libertado: é modesto demais, acha
que a literatura não serve para nada e não vê que sem ela a sua vida
não teria sentido. Acho que se não fossem a mulher, os filhos, os
amigos, o co-autor de Ficção e Poesia (Fortaleza, 1981) já
teria morrido. E morrido sem nada publicar.
Diz que a literatura é um tédio e que
na vida caminha aos trancos e barrancos. Mas quem, nessa existência
de loucos, não caminha exatamente assim? Eu, pelo menos, morro
porque não suporto mais escrever e escrevo para não morrer de
inanição diante das misérias do mundo.
Escrevo de forma profusa para não
sofrer. Mas não posso me comparar com o Dias da Silva, que passeia
com desenvoltura por diversos gêneros literários. Pensei, no início
de sua trajetória, que fosse apenas um jornalista desambicioso, com
a cabeça e os pés fincados em alguns Suplementos de Cultura.
Enganei-me, porque daí ele evoluiu
para uma série de livros que se tornou uma referência de peso na
literatura. E de forma que, hoje, Da Pena ao Vento, já com
cinco volumes editados, se tornou um monumento da crítica literária
do Brasil.
Depois, enveredou pela biografia e o
ensaio, pela crônica de sabor regional e pelo memorialismo que
retrata os espaços e o tempo perdidos da infância. Um Padre e
Muitas Proezas (1982), Cenas, Lições e Coisas (1984),
Mangabeira nas Artes nas Letras no Mundo (2002) e Pedaços da
Vida e Outras Coisas em Pedaços (2002) são testemunhos maduros
da sua polifonia estilística e da sua verve criadora.
A maturidade o surpreendeu levando-o
de volta para as vozes da poesia popular e da ciranda. A música, uma
música em surdina lhe soprou a escansão do metro da viola e do ritmo
do verso. E a ancestralidade atávica se depositou em seu texto como
em nenhum outro momento da sua linhagem de esteta. Voz Verso e
Violão em Mangabeira (2003) é a sua obra-prima e o trabalho que
lhe marcou (e remarcou) a imensa vocação de cronista.
O romance epistolar é o seu grande
achado em 2004, pois Lições do Outro Lado é um livro acima de
qualquer suspeita. É um livro de fé e de grandeza, onde as misérias
humanas do autor são dissecadas como em nenhum outro momento da sua
existência atormentada. Soleiman é a voz que retine na alma
profundamente cética do autor, mas é a voz que triunfa para além do
sentido da lógica e da razão. Soleiman é a voz que recompõe a
verdade corroída pelo pessimismo e a teimosia de quem quer duvidar
da maravilhosa paz interior. É um livro, portanto, de conversão e de
certeza, de esperança e de plenitude maior.
A crítica, é claro, continua
perseguindo os passos do autor, mas é no conto, na ficção menor e
nos apelos da verossimilhança que ele, Dias da Silva, abraça agora
os seus leitores de todas as idades. E para quem já auscultou a
crítica e a crônica, a biografia e o ensaio, o memorialismo e o
romance de feição epistolar, é claro que o conto funciona como um
fecho de intenções e de afetos para com o domínio da palavra mutante
e ritmada, que faz a glória e o sucesso de quem a cultiva com
esmero.
Histórias simples e desataviadas essas
que Dias da Silva reúne em Historietas: Delas Engraçadas / Delas
Sem Graça (Fortaleza, RBS Editora, 2005). Mas curta ficção,
acredito, que paga tributo à terra e à gente humilde do sertão.
Coisas de Mangabeira, como quer uma certa expressão ao gosto do
autor, mas coisas que se transformam pela persuasão da palavra e por
um estilo que considero bastante singular.
O fantástico, a linguagem regional e a
pesquisa da forma estão neste livro de Dias da Silva como em poucos
autores que conheço. Se Tabocal já era a Macondo cearense pela voz e
a escrita incomparáveis de Batista de Lima, que é conterrâneo do
autor, Mangabeira passa, a partir desses causos e historietas de
fôlego, do plano real para o espaço da verossimilhança. Passa a ser
a escritura à clef e o orgulho supremo do imenso País dos
Amargosos, de onde vêm a força e o talento desse escritor de
estatura maior.
São inconfundíveis neste livro os
acertos de sua linguagem literária. São inconfundíveis as suas
intenções e os seus achados plurais e estilísticos. Talvez a
modéstia e o retraimento do autor não saibam do valor e do desvelo
da sua ficção, como é possível que Dias da Silva não saiba mesmo o
seu lugar nos escaninhos da arte literária.
Apresentação do livro Historietas:
Delas Engraçadas / Delas Sem Graça,
Fortaleza, 26/12/2005.
Leia Dias da
Silva
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