Dimas Macedo
O Solitário da Montanha
A arte que tem o dom de transformar as
partituras de fogo da solidão e do afeto, para aí edificar um reino
de luz e de beleza, onde a palavra e a imagem constituem os achados
antológicos de maior relevo, só podia mesmo sobreviver a todas as
idades do homem e chegar até nós de forma exuberante e serena.
A literatura é essa arte ancestral e
mitológica, pois contemporânea do homem da caverna, contemporânea do
homem primitivo e das religiões fundadoras da verdade e de todos os
cenários de redenção e de ressurreição dos devaneios humanos e de
suas veladas esperanças.
Os poemas heróicos das civilizações
primitivas, as fábulas com que no passado os ensinamentos e
sabedorias foram transmitidos, as gestas medievais, o teatro de
destinos cruzados com que os gregos tanto se bastaram, os romances
de cavalaria, os tratados filosóficos de todas as utopias políticas,
o romance burguês e de costumes sociais dos séculos dezoito e
dezenove são exemplos de literatura que se fez para a glória dos
valores mais afortunados que o homem moderno representa.
O romance é, por essência, o maior de
todos os empreendimentos poemáticos. Enquanto a poesia se faz com a
estética do fragmento e da linguagem, o romance se faz com a forma,
o conteúdo e a visão de mundo dos escritores mais afortunados. O
romance, repito, se faz com a unidade dos arquétipos sociais e
psicanalíticos, com a unidade da expressão literária a tecer os fios
de ouro da semântica.
Um romance se faz com estruturas
relacionais e com enredos polifônicos e assim também com gestos e
ações de sentido universal e filosófico, quando se trata, é claro,
de um romancista de talento. Existe um movimento no romance que
somente o romancista compreende em um primeiro momento.
No entanto, quando o autor de um
romance é, ao mesmo tempo, criador e criatura de outros universos,
gêneros literários e polifonias para além da dispersão e da unidade
do ser, como é o caso dos poetas e dos que sabem a arte do
pensamento por imagens (ensaístas e críticos literários de maior
estofo), é claro que desse autor podemos e devemos esperar o melhor.
E o melhor, acredito, é o que podemos
colher deste belíssimo romance – O Solitário da Montanha (São
Paulo, Editora Nova Aldeia, 2005), última criação de Vasco dos
Santos, um dos maiores e mais eruditos arautos do romance histórico
e do mar salgado da escrita na literatura de língua portuguesa.
E o que documenta este romance maduro?
Uma história de amor e heroísmo, uma história de movimento e de ação
do espírito posicionada contra os contextos arcaicos da imensa
violência do mundo. Somente a vida, louvada a partir da solidão dos
que amam, faz sentido neste romance de enredo sublime, cuja leitura
recomendo com entusiasmo.
Não é feita de matéria bruta a sua
tessitura linear, nem de discursos formais enfadonhos é tecido o
enredo exemplar desta narrativa. O autor, ao contrário, a escreveu
com as tintas da paixão e a ungiu com a aliciante sintaxe da solidão
e do desejo, fiel ao seu ideário de esteta e à sua vocação de
escritor de estatura maior.
Restaria uma palavra a dizer sobre o
enredo deste grande romance e desta grande sinfonia estilística, que
tanto me tocou a emoção e o engenho, que tanto me curou da intensa
agonia de viver e que tanto me curou também com o seu estupendo
poder de catarse e de efeitos visuais e sinérgicos que se lêem a
partir do seu articulado.
Nem tanto assim, acredito, deveria
proceder um prefaciador, pois não me é lícito roubar ao leitor o
prazer de aprender com a sedução da leitura. A estética da recepção
existe para isso: privilegiar a interlocução, restabelecer os
princípios maiores da interação e da alteridade.
Se aqui fosse somar o talento do
escritor que arquitetou este livro com a erudição que sempre
remarcou a produção do romancista, do ensaísta e do poeta que se
harmonizam na personalidade singular de Vasco dos Santos, creio que
teria motivos para dizer que estamos diante de um dos nossos maiores
literatos.
Lícito não me seria também calar
acerca da claridade estética deste texto, sobre a sua leveza e
concisão de linguagem, sobre a sua disciplina formal e o seu rico e
diversificado conteúdo. Fica aqui a recomendação da leitura:
imperdível, humana, maneirosa, sutil e desafiadora, sob qualquer
ângulo em que o romance e o seu argumento aliciante possam ser
examinados, para a glória da literatura que hoje se pratica no
Brasil.
Prefácio do livro
O Solitário da Montanha.
Fortaleza, 29/09/2005.
Leia Vasco dos Santos
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