Dimas Macedo
Romance e Crônica Social
A arte, diferentemente de outras
formas de intervenção, tem o dom de restaurar os sentidos essenciais
da existência. A arte movimenta a vida antes de constituir o
registro do seu cotidiano mais afortunado.
A literatura, forma refinada de
convivência com a imagem e a palavra, faz-se comumente com a
matéria-prima da linguagem. Exige, porém, de quem a empreende muito
mais do que aquilo que nos seria lícito supor.
A poesia é forma superior de
conhecimento que exige intuição e intelecção, enquanto a longa
ficção reclama de quem a realiza um mergulho na realidade, ao lado
de uma forma de pesquisa que seja o espelho e o arquétipo do
movimento social e histórico.
E de forma que não existe saída: ou a
longa ficção é uma imersão no tempo e no espaço que o romancista
movimenta em sua objetiva ou o significado do romance será bem menor
do que aquilo que esperamos de cientistas sociais e historiadores.
Sem intuição artística a prosa de
ficção nada representa; e sem um mergulho na realidade nada pode um
novelista aspirar a não ser a tessitura de uma atitude discursiva
vazia de significado.
Neste romance realista e alegórico de
André Lopez – As Areias Cantantes do Rio (Fortaleza/CE, 2005) –, o
drama social e político de uma geração exterioriza-se a partir da
consciência de seus agentes pastorais e do sentimento de dignidade
que orienta a sua militância, na defesa de um ideário de justiça e
de fraternidade.
Lopez situa a sua trama novelesca (ou
romanesca) no bojo da efervescência política do início da década de
1980. E o argumento que conduz a sua narrativa prende-se à onda de
assassinatos de advogados por parte de grileiros e proprietários
inescrupulosos, mancomunados com os agentes do grande capital e com
o beneplácito do Judiciário.
Ariré Ramalho, uma espécie de alter
ego do autor, personifica o ideário do jovem advogado que, designado
pela OAB, representa o clamor da família e da sociedade contra a
violência do braço armado de latifundiários que atentam contra a
vida do causídico e militante dos direitos humanos Ariestóbulo
Cabral.
A investigação do assassinato conta
com o apoio dos movimentos pastorais da Igreja Católica e das
Comunidades Eclesiais de Base e com as anotações do Diário do
Advogado injustamente vitimado.
A questão fundiária do Nordeste e
especialmente do Ceará e o seu monitoramento a partir de sua conexão
com as forças de poder dos grandes proprietários estabelecidos nas
entranhas da Amazônia Legal, constituem o pano de fundo das
denúncias formuladas pelo autor, ao lado dos elementos pertinentes à
trama e ao desfecho bem arquitetado do enredo.
O romance de André convence pela sua
dimensão alegórica que se instaura para muito além da tragédia que o
enredo documenta. A segunda parte do romance é dedicada a essa forma
madura de reconstrução e ancoragem das intenções do autor.
Elementos da antropologia indígena e
da semântica literária pertinentes ao universo da fabulação dão ao
romance de André Lopez um colorido todo especial. Mas o que remarca
a unidade do romance é o fecho da narrativa. Por sobre a tragédia da
questão indígena e fundiária e por sobre a luta em busca da justiça
e da dignidade firma-se a política da emoção e do sentimento, com o
triunfo da sensibilidade sobre os imperativos da tirania e da
coação.
Músico de gosto estético refinado,
advogado e procurador autárquico de renome, com marcante atuação no
campo do direito agrário e, acima de tudo, professor universitário e
militante político a quem muito devem os movimentos sociais e
eclesiais do Ceará a partir dos anos oitenta – fase madura e
decisiva da sua militância –, André Lopez tudo tinha para remarcar
com fervor e com indiscutível proveito a sua estréia na Literatura.
Não pretendo roubar ao leitor o prazer
(e o direito) de mergulhar no texto do romance sem os anteparos e as
orientações (às vezes duvidosas) da apresentação. Não posso, no
entanto, deixar de recomendar a sua leitura, os acertos da sua
pontuação estilística e a forma particularíssima da linguagem com
que o autor escreveu a sua narrativa.
Prefácio do Livro
As Areias Cantantes do Rio.
Fortaleza, 17/10/2005.
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