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Dimas Macedo


 


Vida e tempo de Filgueiras Lima


 

 

Poucos poetas no Ceará, em vida, foram tão amados, recitados e aplaudidos quanto Filgueiras Lima. E poucos como ele compreenderam tão bem o sublime mistério da poesia e se curvaram genunflexos às suas investidas e manifestações. Foi o autor de Jardim Suspenso (1966) um conhecedor qualificado do mundo da escrita, mas nas atitudes e enfrentamentos do cotidiano foi Filgueiras Lima um grande poeta também.
Tendo nascido predestinado para o convívio das letras, sentiu desde cedo, na sua ânsia e glória de artista, a pulsação de um rito dissoluto maior, que lhe permitia contemplar e colher a sinfonia das suas emoções e celebrar com seu canto a devoção que sempre prestou à sua terra e à conquista da paz entre os homens, realizando assim a sua liturgia e os projetos da sua visão interior.

Filgueiras Lima, como já acentuou Artur Eduardo Benevides, é “um poeta de larga afirmação lírica e cuja obra resistirá certamente ao impacto do tempo, enternecendo o coração do povo, cujos sentimentos e vozes procurou traduzir, principalmente nos poemas de base telúrica, transformando o Ceará no grande personagem de suas criações”.

Nasceu o poeta em Lavras da Mangabeira/CE, aos 21 de maio de 1909, numa velha casa situada na margem esquerda do Rio Salgado, lugar de onde se permitia assistir a ondulação das águas revoltas da infância a lhe beijar os pés, a tocar os recessos profundos do seu coração, a ungir a sua vocação de menino-poeta, uma das mais altas e nobres que a literatura do Ceará conheceu.

Esse passado longínquo, no qual mergulhou muitas vezes, segurando sempre um papagaio de papel de seda, a descrever “parábolas multicores no céu azul”, como afirmou num dos seus mais belos poemas, constitui, em certo sentido, como não podia deixar de ser, motivação da sua escritura literária. Mas a grande paixão pela vida, pelo Ceará com um todo e pelas malhas e seduções de amor formam com que, de maneira absolutamente luminosa, os elementos do seu concerto lírico triunfal.

Em Filgueiras Lima, seria correto afirmar, as contradições sociais e o ritmo essencial da linguagem poética, assim como a tortura da sua condição de artista, vão forjando o objeto das suas múltiplas preocupações, entre as quais o jogo permanente entre luz e sombra, entre a simbologia e a lógica da construção da palavra parecem sinalizar para as chaves da alegoria e da unidade da sua produção.

A excelência da sua elaboração poemática, pois, reside nessa tensão permanente entre a experiência que teve que vivenciar, como ser humano e como cidadão, e os apelos da sintaxe poética a atormentar a sua visão pessoal. Acho que poucos poetas, como Filgueiras Lima, foram tão longe na tentativa de superar essa ambivalência e de tirar partido dessa ambivalência em proveito da literatura e do crescimento do seu ideário poético.

Faz parte Filgueiras Lima dos primeiros tempos do modernismo cearense, daquele momento heróico que vai aproximadamente de 1928 – ano de fundação do Jornal O Povo e posteriormente dos seus suplementos Maracajá e Cipó de Fogo – até 1932, quando estreou com Festa de Ritmos, não pagando, no entanto, todos os tributos que citado movimento exigia dos seus participantes. Soube, como poeta, se manter fiel à sua individualidade, sem perder contudo de vista a necessidade de renovação da sua mensagem intemporal.

E assim permaneceria pelo resto da vida caminhando ao longo das correntes estéticas, porém delas tirando os elementos reveladores e modernizadores da sua linguagem simbólica e do seu ritmo altissonante e essencial, responsável este último, na maioria das vezes, pela grande popularidade alcançada pela sua poesia, na qual se alternam poemas de formas fixas e versos livres compostos com muita fluidez de pesquisa e expressão, contemplando a sua poesia, no geral e no particular, um sincretismo de cores e de temas pouco visto e muito pouco também praticado por poetas brasileiros da sua geração.

Como anotou certa feita Sânzio de Azevedo, a propósito da 2ª edição das suas Poesias (1990), “O certo é que Filgueiras Lima, não chegando a se comprometer radicalmente com nenhuma tendência esté¬tica – já o dissemos outra vez –, aproveitou do modernismo a liberdade rítmica, tornando-se, por isso mesmo, um poeta com largo poder de comunicação. Em suma, um artista apaixonado por sua terra e por sua poesia, que escreveu para o seu tempo, mas buscando, acima de tudo, a intemporariedade”.

Quanto aos atributos biográficos de Filgueiras Lima, cumpre destacar que ele foi em vida tudo quanto um homem público poderia almejar, fora ou em meio a uma vida atribulada de artista. Em Fortaleza, com Paulo Sarasate, fundou o Instituto Lourenço Filho, hoje Colégio Lourenço Filho, um dos melhores estabelecimentos de ensino do Ceará, tendo exercido os cargos de Inspetor Regional do Ensino e Diretor da Estatística Educacional. Foi, outrossim, Redator Chefe da Revista Pedagógica Educação Nova, Conselheiro e Presidente do Conselho Estadual de Educação, coroando sua brilhante carreira como Secretário de Educação e Saúde do Estado e Professor Catedrático da Faculdade Católica de Filosofia e da Escola de Administração do Ceará.

Na Academia Cearense de Letras, e assim em outras instituições culturais a que pertenceu, destacou-se sobretudo pela defesa que sempre fez da poesia, como âncora e castelo do seu fazer diuturno e transcendental.

Poeta de elevada inspiração, lírico dos melhores do Ceará, consagrado pelo juízo da crítica literária que o tem como um dos nossos melhores poetas, Filgueiras Lima faleceu em Fortaleza, aos 28 de setembro de 1965, aos 56 anos de idade, constituindo, pois, este livro, um imenso tributo à sua existência proveitosa.

Neste texto, contudo, não vou me alongar sobre aspectos da sua trajetória luminosa, porque neste livro o poeta Juarez Leitão, misto de orador e humanista, fez o que todos os admiradores de Filgueiras, esperava que um dia fosse concretizado com o melhor desassombro: uma biografia exemplar deste grande poeta, grande educador e grande expressão literária do Ceará e do Brasil.

Filgueiras Lima, a sua paixão de educador, a sua sensibilidade política e cultural, a sua extraordinária verve de orador, a sua cintilante alma de poeta e a sua decisão aguerrida de fazer da palavra ritmada a sua imensa vocação de artista, estão neste livro como em poucos momentos da cultura cearense.

Ensino Como Quem Reza – Vida e Tempo de Filgueiras Lima (Fortaleza, Tecnograf, 2006) é um grandiloqüente atestado de como a escritura literária, na maioria das vezes, se coloca, continuadamente, a serviço do bem. É um atestado de como o milagre da palavra reproduz o movimento da vida, pois a vida e o tempo de Filgueiras Lima estão neste livro a desafiar a nossa trepidante história literária.

Num dos momentos que considero uma das passagens mais sinfônicas deste livro, assegura-nos o autor de Ignes, O Inventário da Paixão (1993) que “Toda a tessitura criativa de Filgueiras Lima, formando uma grande renda de cores e pontos diversos, converge para algumas intenções claras e plenamente justificadas: ele é a terra, em todos os seus atributos de paixão e dor. Desde os temas clássicos dos destinos aos afetos domésticos; do regionalismo idílico às grandes causas universais”.

E acrescenta em seguida Juarez Leitão: “Filgueiras Lima teve uma existência gloriosa, de proveitosa realização, claramente reconhecida pelos habitantes de seu tempo. Fez-se um ser necessário e um agente numeroso e profícuo da construção do mundo”.

As expressões de fino lavor estético com que o autor intitula cada um dos capítulos do seu livro, mostram-nos, à saciedade, como são clarividentes os sonhos e as alucinações criativas que governam o coração dos poetas. Juarez faz a sobrescritura da vida de Filgueiras Lima com um imenso domínio de linguagem e com um intenso diálogo com os signos e a sintaxe que remarcaram a sua poesia luminosa.

Mas não somente de signos e intenções literárias é feita esta biografia do autor de Terra da Luz (1956) e Ritmo Essencial (1944). A contextualização da vida e da obra política e cultural de Filgueiras Lima constitui um achado de monta que orienta as linhas essenciais dessa pesquisa feita com sangue e com amor. É que no livro, com efeito, não estão apenas os traços biográficos do cantor maior da pequenina e eterna Princesa do Salgado, mas o curso da história social e política da infância da minha cidade de berço e o curso também da história política e social do Ceará.

Orgulho-me, neste ponto, de ser conterrâneo de Filgueiras Lima e de ser conterrâneo igualmente de outros inúmeros lavrenses que assumiram a literatura como vocação. Lavras da Mangabeira, a pátria de Filgueiras Lima, a terra adotiva de Moreira Campos, a cidade da infância de Antônio Girão Barroso, Fran Martins e Jader de Carvalho, o aconchego da adolescência de Antônio Martins Filho e Mário da Silveira, não é apenas a estrela perdida e o caminho de volta do meu imaginário, porque ali nasceram, por igual, Joel e Josaphat Linhares, João Clímaco Bezerra, Joaryvar Macedo, Batista de Lima e Linhares Filho, escritores que, juntamente com Filgueiras, sentaram, lado a lado, nas cadeiras quiçá mais cobiçadas de toda a tradição cultural do Ceará.

Fica aqui, por igual, assentado que o autor de Ensino Como Quem Reza – Vida e Tempo de Filgueiras Lima não quis apenas contar a história de um homem, mas reproduzir, de forma bastante veemente, como funciona o tempo histórico na perspectiva de um poeta. No mais, talvez guiado pela sua paixão de professor, procurou o autor privilegiar a didática da sua exposição, explicando cada referência e bem assim as circunstâncias de cada contexto que vai anunciando.

As divisões do livro, por seu turno, são indisfarçáveis alusões à simbologia ou a recortes semânticos ou lingüísticos da obra poética de Filgueiras. E em assim procedendo, Juarez Leitão apanha cada momento significativo da vida do seu biografado (especialmente as datas de publicação de todos os seus livros) para dessa circunstância extrair uma leitura do tempo e do espaço, dos sons e dos sentidos que vão se refletindo a partir da cosmovisão do seu objeto de pesquisa.

Esclareço, ademais, que tudo, neste livro, justifica a sua existência harmoniosa: a escritura sonora e poética de Juarez Leitão, o seu tirocínio de pesquisador, o recorte histórico das suas intenções e dos seus acertos, a aferição da sua rica bibliografia, a clarividência com que o autor nos provoca a imaginação e com que nos oferta um texto cheio de imagens e entretenimentos.

Juarez Leitão refaz neste livro não apenas a trajetória de Filgueiras: ele nos devolve também os momentos de fogo e os incêndios da nossa história cultural: história da qual Filgueiras Lima foi um dos maiores protagonistas, especialmente como figura singular e estrela de primeira grandeza do movimento da chamada Educação Nova entre nós, lutando contra a miopia dos seus opositores, a tirania do aparelho do poder e contra os redutos obscuros da imprensa, até triunfar definitivamente como o grande estadista da educação no Estado do Ceará.

O seu coração não apenas parou de bater inesperadamente como ele próprio previra. O seu coração simplesmente explodiu, o seu coração de poeta, de pai, de amigo, de educador, de orador, de jornalista e de irmão. E esta explosão do seu coração de poeta contagiou todo o Ceará. A descrição deste fato, num dos capítulos mais movimentados deste livro, constitui uma das páginas mais belas da nossa literatura e nos faz, de permeio, admirar ainda mais a escritura de Juarez Leitão e a sua expressão de poeta maior.

O autor deste livro – Ensino Como Quem Reza / Vida e Tempo de Filgueiras Lima – dispensa qualquer forma de apresentação: poeta, político, professor, historiador, orador e lenda viva da cultura e da cena social da sua geração, Juarez Leitão, se mostra, neste ensaio, escritor criterioso e erudito, manejando, com precisão, os cenários e as tintas com as quais nos devolve os movimentos da vida, os sonhos e as conquistas de Filgueiras Lima.

Trata-se de um livro-rio, escrito por um poeta de fôlego para louvar um poeta de indiscutível e humana vocação. A personalidade de Filgueiras Lima, descrita neste livro, nos visita ainda mais viva do qualquer outro objeto de pesquisa resgatado de último no Ceará.

Ensino Como Quem Reza foi sempre o lema de Filgueiras Lima. Mas o poeta não rezava apenas ensinando; rezava fazendo poesia, assim como Juarez Leitão nos ensina a oração do amor e da persuasão criativa fazendo a biografia do autor de O Mágico e o Tempo (1965) e nos trazendo de volta uma das figuras mais enigmáticas da cultura que se forjou no Brasil durante o século precedente.

 



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