Dimas Macedo
Mano Alencar, o poeta das cores
Assim na arte, como na vida, a
imprecisão é o elemento fundante de todos os processos estruturais e
orgânicos, de todas as construções e perspectivas analíticas. O
artista não é, em si mesmo, uma entidade singular que possa ser
apalpada ou medida, que possa ser considerada na sua textura pessoal
ou significante.
No poeta, no músico, no cinegrafista
ou no artista que manipula pincéis e paletas habita a cosmovisão
ontológica que se quer uma realidade cambiante; ou nele se funde uma
liturgia de formas e alteridades em cujo eixo de gravitação se
cruzam contrários. E é deste ponto de tensão que emerge a vida e a
simetria para com os sentidos que lhe são correlatos.
O que alimenta a essencialidade do
artista? O que o faz progredir em busca das formas inacessíveis do
subconsciente? Acho que os reflexos de luz ou a claridade excessiva
daquilo que lhe é revelado constitui o resíduo documental desses
princípios a que me refiro. E o cruzamento entre o claro e o escuro
seria o ponto nodal que reveste o tormentoso ato de parturiar a
criação.
Tudo se torna impasse, às vezes; tudo
não se resolve, às vezes; mas às vezes a criação também se torna
mistério. A arte que se preza, a arte que possui verdade não imita a
vida, pois que a vida e os seus abismos insondáveis, pois que a
morte e os seus filamentos de mercúrio já representam a paródia que
o imaginário da arte elabora a cada movimento do tempo e do espaço.
Entre todas as formas de propriedade,
a que emerge do sonho e a que enraíza no sonho a sua estrutura
simbólica é aquela que mais de perto interessa à durabilidade dos
bens e dos valores, e à multiplicidade dos afetos que lhes são
inerentes. E esta forma de propriedade somente os artistas a detêm
em toda a sua compreensão e abrangência.
Ser artista, portanto, é ser
proprietário de toda a harmonia cósmica e ancestral que se anuncia
em forma de dons e de talentos. As cores, as linhas, os sons e os
sentidos, os traços e as objetivas cinematográficas, as tessituras
da vida e os enredos, as escrituras do subconsciente se articulam no
caleidoscópio que o artista carrega em sua emoção e em sua linguagem
intelectiva.
Não existe uma história da arte
propriamente dita, senão que existem leituras que a arte regulariza
na estética de recepção de seu enunciado e de sua beleza
genuinamente indiscutível. A obra de arte e os seus reflexos na
sociedade, as trocas simbólicas que a arte propicia aos que dela se
acercam são, em sua essência suprema, os códigos de luz de todas as
idades do homem.
E assim sendo, penso que a arte de
Mano Alencar, o poeta das cores, o arquiteto melódico dos sentidos,
o artífice genial da loucura criativa, é uma resposta substancial a
esse articulado teórico a que me refiro, pois que em Mano diviso a
genialidade que não se quer enquadrar em escolas ou perspectivas
conceituais de qualquer gênero ou formato.
Parodiando aquilo que Álvaro Lins
afirmou certa feita a respeito de Gide, eu diria que, com relação a
Mano, “a sua inquietude, a sua curiosidade, o seu experimentalismo,
a sua mobilidade – são disposições de um viajante”. Mano concebe a
sua vida pessoal e a sua trajetória de anjo como se elas fossem uma
viagem através do tempo e do espaço, através de telas e pincéis,
sempre em busca de um sentido ou de uma sinergia amorosa que lhe
possa levar adiante, até os limites escuros do desconhecido, onde
ancora, por vezes, o resultado de sua produção, mormente a produção
da sua última fase de pesquisa.
O que impressiona em Mano Alencar, o
que me parece exuberante numa das primeiras respostas da sua arte
pictórica, é que nela se fundem inteligentemente diversos estágios
de leitura: o da ancestralidade borbulhante ancorada num tempo
primitivo, o do espaço cósmico recortado pela percepção da finitude
e pela transgressão do eterno, o da pós-modernidade que se perfaz a
cada agilidade do ato criativo, pois para Mano o mundo já não faria
sentido com a engenharia dos projetos sociais do passado, com a arte
pagando tributos à violência e às padronizações.
Em profusão de cores que esbanjam
liberdade, em sinfonia de luzes que filtram o caos e o desespero do
presente, antecipando os signos do futuro, vai o artista Mano
Alencar arremessando para o alto o seu suicídio colorido,
redesenhando o mundo e, em função do mundo, reassumindo o seu lugar
no planeta, pois o domínio da arte pictórica para Mano é a via
dolorosa a ressangrar o coração do artista, o deslimite de sua
loucura e a navegação espacial de sua ambivalência.
A velocidade da memória é um dos
pontos de partida da sua atmosfera criativa. E isto ocorre, no caso
desse polivalente artista cearense, porque nele pesquisa e imagem se
articulam num enunciado fecundo. Cores fortes, vivas, agressivas, a
fundir cosmogonia mística e verdade, existencialismo e exacerbação
do ato de criar.
Vou adiante afirmando que a sua arte é
enigmática enquanto dimensão visual e significante, mas o que ela
representa, em essência, é a concreção agonizante de uma expressão
simbólica que se finda e é, ao mesmo tempo, o sentido germinal do
novo que se quer a contenção de uma outra verdade.
O que isso representa para sua arte,
se faz também a espessura nova que a semiótica precisa para revestir
a linguagem cambiante do belo. E assim agindo se coloca Mano Alencar
também em posição de vanguarda no pertinente aos escaninhos da arte
e às suas propostas de mudança.
Em um dos folders de divulgação da sua
obra já se afirmou que “a plasticidade e a versatilidade de suas
pinturas denotam a clarividência de sua louca lucidez. Outras
galáxias o habitam. O aparente caos equilibra-se em constante jogo
de luz e cor. A idéia e a emoção parecem duas paralelas que se
encontram no infinito do traço poético de Mano Alencar, estando
acima de quaisquer enquadramentos meramente teóricos ou julgamentos
prévios. Na realidade, o passado vivido é um liame cósmico com o
futuro realizado ou idealizado”.
Mano trabalha com óleo sobre tela,
bico de pena, aquarela e acrílico sobre tela. Figurativo nos
primeiros anos de sua experiência, Mano Alencar enveredou
posteriormente por uma arte abstracionista e já afirmou que sua meta
é atingir o radical, no sentido de buscar luz e formas cada vez mais
equilibradas. Na roda-viva do tempo, ele busca sempre a utopia do
sonho em cores, percorrendo as células místicas da sensibilidade. “A
clarividência de uma viagem cósmica numa pequena parte do meu mundo
interior me faz criar e sentir a presença viva de Deus”, como já
revelou o artista.
As figuras abstratas de Mano Alencar
produzem, sem que ele queira, uma farra de cores e de formas,
multifacetando ainda mais a versatilidade do seu imaginário e
fragmentando também, por conseguinte, o recorte poético e criativo
que a sua objetiva revela a cada leitura que fazemos da sua arte
pictórica.
Artista plástico, pintor, desenhista,
escultor, compositor e poeta, Mano Alencar se lançou no Movimento
Massafeira, em 1979. É um dos artistas plásticos cearenses mais
talentosos, pois desde que surgiu profissionalmente vem se dedicando
integralmente ao seu trabalho com um número expressivo de exposições
individuais e coletivas, podendo-se destacar, entre elas, as
seguintes: Recompondo a Paisagem (1990), Translúcido (1993), Entre a
Flor e o Ferro Concreto (1997) e Alucinação Urbana (1999).
Já nas exposições Fantasias de
Setembro (1991) e Coadjuvante (1993), realizadas na cidade de
Verona, Itália, o artista mereceu destaque nos jornais L´Arena e
Cultura Veronense, onde o crítico de arte italiano Silvino Gonzatto
teceu elogios ao seu trabalho, considerando-o, apesar de sua
juventude, “um mestre da luz e da cor pela audácia com que junta
cores fortes e contrastantes sem quebrar a harmonia que o estilo
exige”.
Por fim, gostaria de fechar este texto endossando as palavras de
Floriano Teixeira, no sentido de que em Mano Alencar “o artista
decidiu soltar o seu grito de liberdade e exaltar a pintura”,
fazendo arte “com sinceridade, simplicidade, talento e amor”, e
fazendo história, acrescento, como um dos expoentes máximos de sua
geração.
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