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Dimas Macedo


 


Sobre O Peso do Morto



 

Qualquer que seja a modalidade de crítica, acostumada com o enfrentamento do texto, talvez não tenha dificuldade em aceitar que O Peso do Morto, de autoria de Pedro Salgueiro (São Paulo, Editora Giordano/Fortaleza, Biblioteca O Curumim Sem Nome, 1995), agora em segunda edição (1997), tirada pela Editora Bagaço, de Recife, representa uma das melhores estréias que, por último, no Brasil, se fizeram no domínio do conto.

Esta previsão foi feita por mim, de forma pioneira, por ocasião do aparecimento de O Peso do Morto. E uma das mais gratas satisfações que experimentei, até hoje, como militante da cena literária, foi ver a minha profecia confirmada pelos pronunciamentos emitidos em torno da estréia de Salgueiro.

Acho que poucos escritores foram como ele tão observados e puderam colecionar, em torno de um livro de estréia, uma fortuna crítica tão favorável quanto proveitosa.

O seu segundo livro de contos, intitulado O Espantalho (Fortaleza, Coleção Alagadiço Novo, 1996), confirmou, a meu juízo, a permanência de Pedro Salgueiro como um dos nossos melhores contistas, pois excelente também foi a repercussão que esse livro obteve, provando-nos que Pedro Salgueiro é um escritor de quem ainda temos muito a esperar.

Não me sinto, no momento, muito motivado a me desviar daquilo que sobre O Peso do Morto já externei em outra ocasião. Acho que Pedro Salgueiro estreou maduro porque, na sala de espera, visitou o discurso e a linguagem dos clássicos e, do texto literário, aprendeu a extrair a ambivalência e a insinuação, optando sempre por rejeitar os encantos e as facilidades da literatura de feição linear, desprovida de leveza estética e de renovação.

O universo ficcional de Pedro Salgueiro, pelo contrário, parece todo ele permeado por um tratamento literário exemplar, tanto em nível da matéria humana com a qual trabalha, quanto no recorte da sintaxe e da forma com a qual reveste as parábolas e enredos que vai arquitetando. Parábolas e enredos, repito, carregados de uma atmosfera simbólica bem próxima das veras construções da arte universal. Esta afirmação não busca inserir Salgueiro entre os expoentes da literatura, o que seria exagero, mas pretende deixar claro que ele está próximo de algumas matrizes literárias que considero relevantes. O excesso de citações, quase todas no geral desnecessárias, que faz o autor da obra de grandes escritores, é com certeza aquilo que mais prejudica a fluidez e a revelação do mistério presente em sua dicção.

Num dos períodos mais tensos e inquietos da produção de Pedro Salgueiro, acompanhei o seu interesse pelos escritores russos e pelos romancistas que povoam a nossa americana civilização. Viajamos, em seguida, na doce companhia de Kafka, de Isak Dinesen e de Henry James, que eu já havia descoberto em outras oportunidades, e constatamos, para nossa surpresa, que tínhamos em Juan Rulfo e em Vergílio Ferreira uma grande paixão em comum.

Discutimos o poder de sugestão e a essência que constituem a matéria da literatura e juntos aprendemos a selecionar parcerias e a buscar formas de refinamento literário e também a identificar na arte da palavra o que ela possui de eterno no que pertine ao desespero do homem e à precariedade da nossa humana condição.

O que sangra dos contos reunidos em O Peso do Morto é produto desse lento aprendizado humanístico, é a carpintaria de uma longa espera, é a levitação que campeia a gravidade dos mortos, são os valores que o inimigo nos ensina no seu jogo de espreitamento e sedução, é a alegria breve que o abismo existencial nos impõe.

No livro de estréia de Pedro Salgueiro estão enfeixadas páginas de literatura lavadas por densa atmosfera simbólica e por fino lavor artesanal. Do seu texto exsurgem o apelo da infância revisitada, como acontece no conto “O Menino do Cabelo Azul”; a realidade e o cascalho da memória e o mundo evanescente da nossa formação cultural, como os retratos que estão em “A Espera” e no conto que abre o caderno em alusão; por fim, a tempestade invadindo os cenários de um possível juízo final, tal como o clima que campeia em “O Peso do Morto” e “A Rua do Cemitério”. E assim também a tessitura da lenda e das histórias apócrifas que costuram toda a leveza do livro e lhe dão a sua indiscutível unidade estrutural.

“Belisarina” é um conto assim remarcado por esses filamentos, que atingem também o enredo de “Os Loucos da Papaconha”e se projetam nos textos que se vão organizando no decorrer do volume, por onde grassam também o ritual cabalístico, o espanto, a superstição, tudo isso tendo a morte e o fantasma da morte como motivação e temática principal.

Entre todos os contos, é indiscutível que “Os Urubus ou O Dedo de Dona Júlia” é aquele que possui maior concentração e densidade, aquele que melhor explora o fantástico e no qual a morte e o mistério parecem juntos caminhar, sugerindo-nos dessa forma o autor diversos níveis de leitura e com certeza nenhuma pronta solução, fazendo do seu livro uma obra aberta enquanto dimensão estética e literária, enquanto proposta criativa e técnica de construção ficcional.

Em nível do significante, nota-se nos contos de Pedro Salgueiro uma opção quase compulsiva pela economia da expressão textual. Já no que tange aos componentes semântico e estilístico os contos reunidos em O Peso do Morto agradam sobretudo pela multiplicidade dos recursos formais e pelos processos de revigoramento e modernização da escrita.

Assim, pois, a curta ficção de Pedro Salgueiro, um contista que sabe reinventar os descaminhos da literatura e recuperar os diversos estágios e acertos da sua mais bela tradição, provando-nos que a arte não está fadada ao enfrentamento da superação e que são muitas as possibilidades que um escritor pode utilizar.

 



Pedro Salgueiro
Leia Pedro Salgueiro

 

 


 

05/08/2005