Dimas Carvalho
O manuscrito
Epaminondas
Pitágoras da Cunha trabalhava numa livraria decrépita, um prédio
velho de dois andares, situado numa ruazinha decadente do centro da
cidade. Era o único empregado, além de dono, seu Eleutério, muito
idoso, surdo, reumático, quase cego. De modo que Epaminondas se via
quase que como proprietário absoluto daqueles milhares de livros
velhos e empoeirados, perfilados em estantes antigas, e aos quais
praticamente ninguém procurava. Porque os clientes, como era de se
esperar de tal estabelecimento, eram raros, e também eles antigos,
decrépitos e decadentes.
Os dias se
passavam numa monotonia de rio amazônico… Epaminondas, entediado,
dava grandes bocejos enquanto folheava páginas esquecidas. Seu
Eleutério cochilava na espreguiçadeira, por trás do balcão, o jornal
caído entre as pernas, a boca aberta, babando.
Além dos dois
andares, o prédio possuía um pequeno sótão, onde Epaminondas subia,
quando estava mais disposto, para fazer a limpeza. Numa dessas
vezes, notou que, num canto, havia uma pilha de livros, coisa que
nunca antes observara. Aproximou-se e começou a verificar os
títulos, manuseando com todo o cuidado as folhas amareladas. A
poeira fazia com que espirasse. Alguns livros estavam roídos pelas
traças, outros eram quase ilegíveis. Mas o que chamou mesmo a sua
atenção foi um manuscrito encadernado, datado do século XVII, vazado
em uma língua que lhe era completamente estranha. Um pequeno texto
em Português, que parecia servir de intróito, dizia ser a língua o
sumério, e que o felizardo capaz de traduzi-lo alcançaria a
imortalidade, assim como se tornaria imensamente rico.
Epaminondas era
um homem prático, nada sonhador, bem terra a terra. Riu com desdém
daquelas promessas mirabolantes. O absurdo do que lia levava-o a
crispar os lábios em um sorriso irônico. Porém, alguma coisa, que
ele não saberia explicar o que era, puxava-o para o manuscrito, como
o ímã faz com o ferro. Quando desceu do sótão, já estava determinado
a aprender o sumério, custasse o que custasse.
A partir deste
dia, a vida de Epaminondas mudou radicalmente. O que era fascinação
transformou-se em mania, obsessão, delírio. Tornou-se estudioso.
Consagrava todas as horas de lazer ao seu objetivo único.
Esqueceu-se de viver, absorveu-se e foi absorvido pelos caracteres
mágicos que o enfeitiçavam.
Foram anos a
fio de dedicação, em casa e na livraria. Era com impaciência que
atendia os fregueses cada vez mais raros. Comprou livros, pesquisou
na internet, fez contatos com sábios do outro lado do mundo. Assinou
revistas especializadas. À medida em que prosseguia naquela viagem
sem volta, os indícios de que o manuscrito dizia a verdade se
avolumavam. Citações milenares, pistas criptográficas, as peças do
imenso quebra-cabeças iam se encaixando. Seus olhos adestrados
passaram a ver, em coisas aparentemente desconexas, relações
profundas e sutis. No final de nove anos de estudos, sentiu que
estava a um passo de dar o grande salto, de penetrar enfim a grande
porta que guardava o Mistério.
Foi por esse
tempo que o Seu Eleutério morreu, exatamente ao meio-dia, sentado na
espreguiçadeira, o jornal dobrado nos joelhos. Como o velho fosse
viúvo, e não tivesse filhos ou parentes conhecidos, Epaminondas,
herdeiro presuntivo, organizou o velório. A casa do velho ficava num
bairro afastado, onde grandes árvores ladeavam as ruas largas,
enchendo de sombras e silvos os espaços da noite. Pôs-se a velar,
sozinho, o morto. Quase madrugada, a fome o levou a abandonar a
câmara mortuária, onde as velas tristes eram a sua única companhia.
Encaminhou-se a
uma churrascaria, onde fez um lanche breve, biscoitos e guaraná.
Pediu ainda um sanduíche, para fazer o desjejum, quando o dia
nascesse.
Ao voltar para
casa, o susto foi enorme. Rodeando o caixão, quatro de cada lado,
oito anciãos, vestidos de preto, murmuravam palavras estranhas em
uma língua extinta. E mais ainda aumentou seu espanto quando,
trêmulo e suando frio, viu o antigo patrão erguer-se e, lenta e
solenemente, pronunciar, com uma voz alta e cheia de vitalidade:
— Caríssimo
Epaminondas, é nossa obrigação agradecermos; o Segredo do Manuscrito
é nosso, meu e dos meus oito companheiros, há muitos milênios.
Realmente, ele nos dá a imortalidade e nos cumula de incalculáveis
riquezas. No entanto, tudo tem um preço. E o preço que o manuscrito
exige é o sangue de uma pessoa que por nove anos completos se
dedique à tarefa de decifrá-lo, vencendo todos os obstáculos e tendo
chegado às raias de desvendá-lo. De cem em cem anos repetimos este
ritual, e tantas vezes já o fizemos que perdi a conta.
Então
Epaminondas Pitágoras da Cunha sentiu que garras aduncas
rasgavam-lhe as vestes e a pele, e enquanto a escuridão se apossava
dos seus olhos, uma lâmina fria penetrou no seu ventre,
atingindo-lhe o coração, rasgando-lhe as vísceras, perfurando-lhe o
pulmão, ao som de litanias e imprecações sussurradas naquela língua
arcaica e quase que completamente esquecida.
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