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Miguel Sanches Neto


Livros do limbo

in Gazeta do Paraná
13.10.1999

 

Qual o motivo? É que já li tanta poesia ruim publicada pela Sette Letras que estas leituras anteriores me estragaram para qualquer outra coisa veiculada por esta casa alugada para autores afoitos.


 

Seria possível exercer a crítica mesmo sem ter lido um livro?

Contrariando o princípio básico do crítico, mas nem por isso deixando de exercer plenamente tal ofício, é possível pensar uma maneira às avessas de avaliar uma obra. julgando-a levianamente, ou de forma mais precisa, intuitivamente, sem sequer abri-la. Em todas as estantes (e quanto maiores elas forem, mais dramática é a situação) abundam os livros não lidos, deixados de lado por angústia, por mera desistência, por esquecimento ou mesmo por uma compreensão de que não é chegada a hora propícia, quando ele se colará à nossa vida, desencadeando a urgência da leitura.

Inquilinos de um limbo, estes livros vivem no abandono da estante uma solidão que muitas vezes sentimos em nosso convívio com os homens. Fazemos a faxina na biblioteca e doamos tudo que já não nos diz mais nada, mas eles sobrevivem a este acerto de contas. Sobrevivem no meio do caminho entre nosso desprezo e nosso interesse. São talvez reservas para uma hora de insônia, um momento súbito de euforia, uma crise liquidatória. De vez em quando, demoramos um pouco com um deles nas mãos, estudamos a capa, depois aquela rápida passada pelas orelhas e, esgotado o ímpeto fugaz, abandonamos o volume num canto qualquer, na esperança de trombar com ele num outro instante de maior entusiasmo.

Mesmo correndo o risco de ser tomado como alguém que se fechou para o século XX (do qual estamos sentindo a saudade mais lusitana), confesso que ainda não tive a pachorra de ler Ulisses, de Joyce. "Pecado, pecado sem perdão!", bradam as sacerdotisas intransigentes do grande gênio.

Tenho esta falha irreparável em minha formação. Não sou digno de sequer me pronunciar na frente dos grandes apóstolos da modernidade. Eu, o pior coroinha, aquele que não dá a mínima para os rituais da igreja e se extasia com a luz que entra pelos vitrais, ignorando as imagens sacras, resplandecentes em sua espiritualidade. Eu, o último dos estagiários nesta grande empresa burocrática do saber. Eu, a pulga digna apenas das imediações do orifício oloroso do grande cachorro do conhecimento. Eu, meus senhores, confesso contrito: não sou digno de me postar aos pés das altezas que já leram Ulisses e outros produtos bizarros de nossa modernidade. Mas o livro, imponente, continua em minha estante, me ameaçando com seu catatau de invencionices.

Se não li esta bíblia da modernidade, gastei alguns minutos com o verbete "Ulisses", do Dicionário de mitos literários, organizado por Pierre Brunel (José Olympio, 1997), de onde tirei toda a minha ciência sobre o tema.

E já que estou no campo da religião, confesso também que não consegui ler, ainda, A mulher que escreveu a Bíblia, (Cia das Letras, 1999) de Moacyr Scliar, apesar de ser um grande admirador do ficcionista gaúcho. O mais grave é que não tive a iniciativa nem de percorrer as orelhas. Apenas folheei suas páginas (sem forçar a cola e a costura), sentindo-me fora dele. O que me incomoda nesta obra é a sua subserviência aos temas da moda, aos conceitos postos em voga pelo centro cultural desta era midiática. Descubro agora, é o tipo do livro que provavelmente revela (surpresa!) apenas aquilo que já está dito no título, que quem escreveu a Bíblia foi uma mulher. Portanto, quem lê o título leu o livro.

Mas os livros que menos leio são os de poemas (logo eu que cometo as mais cabeludas perversões poéticas). Estou, há meses, com a coletânea Vidro e ferro (Sette Letras, 1999), de Davino Ribeiro de Sena, na mesa de trabalho. Não ousei ler ao menos um poema, olho o volume quase todo negro e não tenho coragem de trincar a sua casca em busca da polpa luminosa. Qual o motivo? É que já li tanta poesia ruim publicada pela Sette Letras que estas leituras anteriores me estragaram para qualquer outra coisa veiculada por esta casa alugada para autores afoitos.

Também deixei de ler, embora o tenha folheado rapidamente, Alguns outros poemas (Bertrand Brasil, 1998), de Gonçalo de Barros Carvalho e Mello Mourão (Uffa!). O motivo de meu medo não foi só a disposição ingenuamente revolucionária dos versos e a pretensão do nome quilométrico do autor, mas principalmente a foto do dito na quarta capa. É isso mesmo, a foto me distanciou do livro. O autor está em uma pose endurecida, camisa com colarinho abotoado e os olhos fixos na lente. É uma poesia em linha reta que a foto sinaliza, uma poesia sem molejo, sem requebro, sem o balanço que as coisas vivas têm. (Por sorte, esta coluna não sai com minha foto, o que daria motivos mil para ilações muito mais sérias).

Encantado por um título, Me alugo para sonhar (Casa Jorge Editorial, 1997), de Gabriel García Márquez, resultado de uma oficina de roteiro, não consegui ler nada do livro, apesar das várias tentativas. Há algo de cansativo na opção de reproduzir literalmente os diálogos entre os participantes da oficina que não me encoraja a freqüentá-la. É impossível que exista interesse em tudo que foi dito pelo grupo, mesmo que este seja comandado pelo grande García Márquez ­ de quem eu já havia abandonado Notícias de um seqüestro (Record, 1996) por simples falta de tesão pelo relato jornalístico que se parece com um mar horizontalmente extenso e verticalmente raso.

Ainda não consegui ir adiante num livro cujo título também me fascinou: Balada da infância perdida, de Antônio Torres (Record, 1999). O autor é tão modernamente requintado na construção da narrativa que acabei descobrindo um grande erro de construção: ele não escreve o livro com o espírito do infante que ele foi, mas com o do adolescente que se acha genial e quer mostrar isso a toda hora. Para evitar outros enganos, seria preciso rebatizar o livro como Balada da adolescência exibida.

Mas nem todos os livros abandonados o foram por deflação de entusiasmo. Há aqueles que mesmo me encantando por centenas de páginas, ficaram por concluir, não havendo nenhum motivo claro para isso. Não sei, por exemplo, a razão exata de não ter lido as últimas 50 páginas das comoventes memórias de Frank McCourt (As cinzas de Ângela, Objetiva, 1997). Talvez tenha sido o fato de ter lido boa parte do grosso volume nas cadeiras duras de um hospital, aguardando a recuperação de minha filha, numa leitura feita com pouca luz e tendo como fundo sonoro tosses e choros. Era minha menina que eu via nos irmãos de McCourt, mortos na tenra infância numa Irlanda úmida e pobre.

Talvez eu esteja apenas esperando que minha filha cresça, ficando mais resistente aos problemas pulmonares, para terminar este livro, cujo desfecho adiei, temeroso de um final que poderia ser o mesmo do qual eu fugia com todas as forças.
 



Miguel Sanches Neto, 2002
Página inicial de Miguel Sanches Neto

 

 

 

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Luciano Maia