Flora Sussekind
abicasaderuy@frb.br
"Escalas & ventríloquos
[São Paulo, domingo, 23 de julho
de 2000
in Folha de São Paulo, Caderno Mais!]
"Talvez se possa observar
a literatura brasileira produzida nos últimos anos não segundo
o consenso negativo dos balanços de fim de década, mas sob
a perspectiva tripla de uma crise de escala, de uma tensão enunciativa
e de uma geminação entre econômico e cultural que,
se não exclusivas do período, por conta de intensificação
e disseminação generalizadas, se converteriam em premissas
dominantes da experiência literária contemporânea. Chama
a atenção, nesse sentido, sobretudo no último decênio,
uma espécie de variação sistemática de escala,
manifesta tanto em exercícios, por vezes paradoxalmente concomitantes,
de expansão e compressão, quanto em movimentos de narrativização
da lírica, de um lado, e de miniaturização narrativa,
de outro, ou quanto na retomada de gêneros como a novela ou o conto
mínimo, no campo da prosa de ficção, ou como o poema
em prosa e a sequência poética, no da lírica. Variações
que teriam contraparte plástica em pinturas que se avolumam, trabalhos
bidimensionais que se projetam em direção ao espectador,
ou em figuras escultóricas transparentes, abertas, corroídas
internamente por fatias, vazios, parecendo fadadas, por seu turno, à
autodestruição, ao despedaçamento. Passagens de uma
dimensão a outra, múltiplas proporcionalidades, relações
variáveis de medição, reduções, ajustes
que parecem atribuir ao referente genérico, à proporção,
a função simultânea de modelos e avessos ativos no
interior dos processos de formalização a que se acham vinculados.
E que talvez possam mediar, ao mesmo tempo, via escalas móveis,
um exercício crítico de correspondências genéricas
(entre prosa em redução e poema em expansão), artísticas
(entre produção plástica e literária) e conjunturais
(entre cultura e economia).
Miniaturização,
narrativização
Quanto à miniaturização
na ficção brasileira contemporânea, ela é perceptível
desde a redução cada vez maior das "ministórias" de
Dalton Trevisan à opção formal pela "novela", por
exemplo, por Silviano Santiago em "Uma História de Família"
e "De Cócoras", por Jean-Claude Bernadet em "Aquele Rapaz", Modesto
Carone em "Resumo de Ana" e "Ciro", Zulmira Ribeiro Tavares, em "Jóias
de Família", Vítor Ramil, em "Pequod", Valêncio Xavier
em "Menino Mentido" e "Minha Mãe Morrendo"; desde as fábulas
de Carlos Felipe Saldanha às mínimas prosas incluídas
por Zulmira Ribeiro Tavares ou Vilma Arêas nas suas coletâneas
ou às microficções de João Gilberto Noll divulgadas
regularmente na Folha. Desde a experimentação rítmica
empreendida por Rubem Fonseca no seu retorno ao conto em "Romance Negro"
e "O Buraco na Parede" à rarefação das palavras, que
"vão indo" e "não voltam", no último texto de "Cortejo
de Abril", de Zulmira Ribeiro Tavares, numa espécie de problematização
direta, mas em escala reduzida, do seu próprio processo narrativo.
Exemplar, em termos de um
emprego crítico das mudanças de escala e da autonomização
de pequenos blocos narrativos, é a prosa de Modesto Carone. No seu
caso, ainda nos livros de contos dos anos 70-80 -"As Marcas do Real", "Aos
Pés de Matilda" e "Dias Melhores"-, variados exercícios de
aproximação e afastamento, oscilações entre
o gigantesco e o minúsculo, funcionavam como exposição
indireta do processo narratorial.
Pupilas, pêlos, rugas,
crânios, pés que adquirem proporções desmedidas,
de um lado; miniaturas, restrições de perspectiva, um mínimo
jardim de inverno, de outro lado, apontando para o explícito trabalho
de mensuração e regulação de distâncias
que funciona simultaneamente como recurso de autofiguração
para o narrador-protagonista e de conscientização -via instabilização-
do processo ficcional em curso. O que, no seu livro "Resumo de Ana", de
1998, díptico novelesco composto de duas breves histórias
de vida, se converteria em princípio de estruturação
interna. Pautado, nesse caso, pela rejeição da forma romanesca
mais vasta, contínua, em prol de "resumos", de quadros autônomos,
mas interligados por uma mesma voz narrativa, a do neto que fala da avó
Ana e do tio Ciro. A redução de escala própria ao
novelesco, a estruturação descontínua, contrastada,
intensificando, a partir de um foco narrativo aparentemente coeso (o do
narrador-memorialista), a visualização, ao contrário,
no seu método de composição, exatamente das heterogeneidades,
das variações de distância e de tom, das desestabilizações
de perspectiva e enquadramento temporal, que o orientam e acentuam o tensionamento
particularmente crítico que o define.
Movimento inverso, de expansão,
marcaria a expressão lírica. O que já se ensaiava
desde os anos 80, em parte como resposta à dominância dos
brevíssimos poemas-minuto e como desdobramento narrativo de uma
produção de caráter eminentemente expressivo como
a do decênio anterior. Lembre-se, nesse sentido, trecho da carta
enviada por Ana Cristina Cesar a Caio Fernando Abreu em 17 de novembro
de 1982: "Sabe que eu também acalento a sombra de um poema inteiro
interminável, tipo William Carlos Williams? Às vezes acrescento
um mote. Charles, até Chacal andam alongando seus versos. Waly Salomão,
na homenagem a Torquato, leu um belo poema longo bem beat". Indícios
de um alongamento trabalhado sob formas bastante diferenciadas na poesia
da década seguinte. Passando das séries poéticas -de
Sebastião Uchoa Leite (como a dos dez poemas-de-hospital que abrem
"A Ficção Vida"), Paulo Henriques Britto (como os "Sete Estudos
para a Mão Esquerda" ou os "Dez Exercícios para os Cinco
Dedos") ou Carlito Azevedo (como a sua sequência de banhistas, o
tríptico "Vieira da Silva" ou as "Variações Cabralinas")-
à retomada do poema longo por Haroldo de Campos em "Finismundo"
ou por Bernardo de Mendonça nas suas refigurações
de formas características da poética popular (a peleja, o
recitativo, o abc). Ou à reconceituação do poema em
prosa, cuja presença naprodução brasileira recente
passa por disseminação singular. Manifesta ora em textos
isolados no interior de alguns livros (como nos de Angela Melim, Duda Machado,
Rodrigo Garcia Lopes, Augusto Massi, Carlito Azevedo, João Moura
Jr.), ora como registro preferencial (vide Josely Vianna Baptista e Leonardo
Fróes), ora como notação auto-reflexiva, com funções
distintas, no interior de coletâneas dominadas por poemas em versos,
como as de Sebastião Uchoa Leite, Rubens Rodrigues Torres Filho,
Régis Bonvicino, Júlio Castañon Guimarães.
E, se um recurso como esse servia a José Paulo Paes em "Prosas",
por exemplo, sobretudo para exercitar um memorialismo a meia distância,
Sebastião Uchoa Leite, por sua vez, aproxima-se, por meio das suas
prosas, tanto de uma perspectiva descritiva, como nos "Informes" de "A
Ficção Vida", quanto do exercício com uma primeira
pessoa a tal ponto autodescritiva e "informe" que parece, por fim, ausentar-se
de um texto como "Worm Hole".
Por vezes, porém,
o que está em pauta é a tensão entre o emprego de
uma estrutura sintática linear, compacta, e de formas particulares
de supressão, de que é exemplar o exercício de interrupção
empregado pelo próprio Sebastião Uchoa Leite em "Memória
das Sensações 1 e 2". Ou a retirada de acentos e nomes (vide
"Apesar do Cheiro" e "Tirando o" em "Regis Hotel"), o apagamento do nexo
causal (vide as enumerações de "Nesta Noite", em "33 Poemas"),
trabalhados por Régis Bonvicino. Já em "Corpografia", de
Josely Vianna Baptista, vocabulário e sinais de pontuação
correntes se deixam invadir por brancos e pausas que, num diálogo
constante com fotos de corpos e vistas, ao mesmo tempo, figuram e desfiguram,
de dentro, cada texto, num duplo movimento de auto-engendramento e destruição
da forma, característico a um gênero marcado simultaneamente
pela desconfiança de leis formais prévias e por um formato
ditado por sua própria lógica interna. E funcionando de modo
verdadeiramente exemplar, nesse sentido, o caráter autodefinitório
pelo avesso, ao longo de dez mínimas páginas, de um texto
como "NÃO", de Augusto de Campos.
Variação de
escala que não se limitaria, porém, ao terreno literário.
Adotando-se uma perspectiva panorâmica, seria o caso de assinalar,
nessa linha, então, a título de amostragem, tanto os exercícios
em formato reduzido, expostos no Rio de Janeiro em 1999, por um artista
como Eduardo Sued, em geral voltado para telas de maiores dimensões,
quanto o movimento, em direção oposta, de José Bechara,
passando de seus trabalhos com telas relativamente pequenas, conhecido
como "Anjos", ao emprego, como suporte, de imensas lonas usadas de caminhão,
sobre as quais aplica camadas ferruginosas de diferentes espessuras. Tanto
as formas expansivas, a escala monumental das esculturas com toras de madeira,
expostas na Pinacoteca do Estado de São Paulo em 1998 e 1999, e
realizadas por Elisa Bracher, quanto as séries de pinturas em telas
de cerca de três metros de largura, exibidas em março de 2000
no Paço Imperial (Rio de Janeiro) por Afonso Tostes. Ou, ainda,
tanto o desdobramento, por parte de Monica Barki, das suas pinturas em
acrílico, mimetizando padronagens têxteis, numa sucessão
de trouxas independentes de roupa; quanto o adensamento, operado por Leda
Catunda, na década de 90, da superfície pictórica,
por meio de sistemáticas sobreposições de vestidos,
toalhas, camisetas, meias e tecidos almofadados e costurados uns aos outros.
Tensões entre expansão e redução, superfície
e volume, bi e tridimensionalidade, que seriam trabalhadas de modo particularmente
consequente, mas distinto, nos métodos artísticos de Nuno
Ramos e Angelo Venosa. Na produção do primeiro, o transbordamento
de materiais e relevos de todo tipo, as crostas, os encaixes, resíduos,
o espessamento, o desfocamento do quadro, que cresce em direção
ao espectador; na do segundo, o diálogo com o pictórico,
a frontalidade, o vazamento interno -fatias, pontos, transparências-,
como se, nas esculturas de Venosa, seu princípio serial convertesse
o espaço, os vazios, simultaneamente em fator de dinâmica
construtiva e de uma auto-rarefação potencial. Regiões
limítrofes, entre o pictórico e o escultórico, nas
quais, não parecendo haver lugar para linguagens exclusivas, não
à toa referências à escrita (no trabalho de Venosa,
peças de cera e dente, dispostas em linha, sobre a parede, com pequenos
intervalos regulares; no caso de Nuno Ramos, o emprego de letras ampliadas,
de palavras em parafina sobre placas de vidro, de textos em braile) funcionariam,
nos dois casos, como contraparte reflexiva, noutro registro, das tensões
características à própria prática artística.
E como indicadoras, ainda, dessas miniaturizações e expansões
que se afiguram dominantes noutro território, o da escrita literária
propriamente dita.
Questões de escala
e de valor
Há, pois, a reiterada
exposição de uma situação de "desmedida". O
que, se enfatiza, em áreas diversas, o caráter problemático
da forma e da própria prática cultural, nessa situação
histórica específica, parece dialogar, de perto, igualmente,
com a experiência contemporânea da financeirização
da economia, da dessolidarização nacional, do esvaziamento
estatal, da inserção brasileira num mercado global marcado
por uma instabilidade sistêmica. Lançando-se, assim, para
o primeiro plano, no panorama cultural atual, por meio da ênfase
na dificuldade de determinar a própria dimensão, a discussão
das simbologias do valor e a reconceitualização da forma
a partir exatamente de seus fatores de instabilização, de
suas relações de escala, de suas equivalências com
alguns dos mecanismos dominantes do mercado financeiro.
Se, de 1964 a 1984, pois,
durante as duas décadas de autoritarismo militar, os traços
mais característicos da práxis de resistência cultural
brasileira pareciam ser a solidariedade interna antitotalitária,
a inserção obrigatória na esfera política,
com o propósito de fortalecimento da sociedade civil e das instituições
democráticas; desde o restabelecimento de eleições
e de um regime liberal-democrático no país e, sobretudo depois
da aplicação sistemática de programas de estabilização
econômica, sustentados pelo continuísmo político (patente
na reeleição de Fernando Henrique Cardoso), pela busca de
consensos partidários (tornando praticamente simbióticos
PSDB, PFL e PMDB) e pela globalização passiva da economia,
passa-se a viver, mesmo entre os setores mais críticos da sociedade
brasileira, sob uma despolitização generalizada e diretamente
proporcional à disseminação de uma financeirização
todo-poderosa -a invocação recorrente das leis do mercado
e de uma espécie de "livro mercantil do mundo", apontando para a
sua onipresença autoritária, acoplada à experiência
neoliberal. E a problematização do valor, da idéia
mesma de estabilização, presente nessa sucessão de
escalas móveis da prática artística dos últimos
anos, parecendo evidenciar, exatamente, esse traço autoritário
embutido, de modo aparentemente menos cruento do que no período
militar, mas acentuado, dominante, no quadro brasileiro atual.
O enlace crítico com
o paradigma econômico-financeiro não é, no entanto,
por si só, explicação suficiente para essas reduções
e ampliações, para esses problemas estruturais de dimensionamento
e formalização na cultura brasileira recente. Pois, em certo
sentido, essa instabilização da medida, da escala, a rigor,
se conjugaria até melhor à situação inflacionária
explícita anterior ao Plano Real, no Brasil, na qual o valor, mesmo
dos alimentos e objetos mais corriqueiros, parecia alterar-se quase cotidianamente.
E, sob outro ponto de vista, essa dificuldade de formalização,
como analisa Rodrigo Naves, em "A Forma Difícil" (livro não
à toa divulgado nesse período), não seria também
exclusiva do momento atual, mostrando-se necessária a especificação
dos nexos próprios às questões de escala contemporâneas.
Moeda sem substância
A passagem de uma moeda
de difícil conversão, porém, para outra mais maleável
à conversão universal, mas sem qualquer substância,
e cujo câmbio passaria a se apoiar artificialmente numa perda acelerada
de reservas, parece hiperpotencializar, a seu modo, não só
a sensação de desmaterialização do dinheiro,
já característica à situação inflacionária,
mas também a convivência com a ausência de garantias
e medidas ideais de valor e a dependência crescente de mercados financeiros
desregulados e de uma economia baseada em maleabilidades estruturais. Não
sendo de estranhar, nesse sentido, por um lado, esforços de estabilização
diretamente proporcionais a tais desmaterializações e instabilidades
estruturais. Daí uma espécie de nostalgia igualmente estrutural,
manifesta na vida literária recente pela reafirmação
dos cânones, do valor de culto dos "grandes nomes e obras", expresso
exemplarmente no nome de publicações como "Cult" ou "Bravo!",
ou no caráter comemorativo (de eventos, centenários, mortes)
dos suplementos de cultura dos jornais de maior distribuição
do país, pelo retorno estratégico a uma poética baseada
em valores artesanais cultos (vide Bruno Tolentino) ou populares-arcaizantes
(vide Ariano Suassuna) supostamente meta-históricos, a um exercício
crítico pautado numa espécie de liberdade individual sem
outras fronteiras (éticas, acadêmicas ou ideológicas)
além das do mercado, das impostas pelo movimento editorial, exemplarmente
manifesta em artigo publicado na revista "Veja" de 25 de junho deste ano,
em defesa do impressionismo, do comentário opiniático, de
um modelo de interferência intelectual pautado, a rigor, no jornalismo
literário brasileiro dos anos 40, mas, de fato, na transformação,
em curso, das páginas de cultura em simples "guias de consumo".
Sintonias perversas
Não sendo de estranhar,
por outro lado, ainda no âmbito literário, sintonias e exposições
curiosamente perversas desse quadro de financeirização generalizada.
De que é exemplar a propositada desmaterialização
da trama narrativa, convertida em jogo amoroso por Bernardo Carvalho, em
"Medo de Sade", em jogo de truco ou xadrez por José Roberto Torero,
no seu relato em torno da Guerra do Paraguai, em truque de mágica
por Valêncio Xavier, em "13 Mistérios + O Mistério
da Porta Aberta", em roleta por Carlos Felipe Saldanha, no seu "Oraklo
do Conde Arpad". Ou a ausência de qualquer "substância estável"
de personagens em sintomática sintonia com as transformações
no conceito de valor, com as práticas financeiras de representação,
processo de que são exemplares o fluxo de figuras-cliché
em "Sexo", de André Sant'Anna, os personagens-variáveis de
"As Iniciais", de Bernardo Carvalho, o José Maria/Maria José
de "Subsolo Infinito", de Nélson de Oliveira, a Ana C. do "Teatro",
de Bernardo Carvalho, e o irmão que vira mulher, mas sempre mantendo
o cheiro de macho, em "A Céu Aberto", de João Gilberto Noll.
Chegando-se mesmo, por vezes, a explicitar ironicamente um inviável
ponto de fuga desses exercícios de desmaterialização.
"Descoberto e abortado plano de destruir o sistema financeiro do país",
lê-se, a certa altura, em "Medo de Sade".
Pois, se o quadro inflacionário
já forçava a convivência direta com certa onipresença
do dinheiro na vida social -"o dinheiro está, de modo devastador,
no centro de todos os interesses vitais", "impõe-se em toda conversação",
dizia Benjamin sobre a inflação alemã-, a relativa
estabilização monetária -mesmo quando "relações
estabilizadas" são "a miséria estabilizada", como se lê
em "Rua de Mão Única"- parece envolver igualmente um tipo
peculiar de insegurança ligada à possibilidade de despossessão,
mesmo do mínimo obtido. Daí, de certo modo, o vigor do gênero
policial na literatura brasileira recente. Tratando-se, nesse caso, porém,
de instabilidade de ordem patrimonial bastante distinta da que é
configurada propositadamente pelas variações de escala, com
função auto-reflexiva, da arte e da literatura brasileiras
contemporâneas, expansões e reduções geminadas
criticamente aos próprios princípios de formalização
e organização que as orientam. Daí, por outro lado,
o desconforto narrativo que parece acompanhar por vezes a prática
dessas ficções em torno de uma insegurança endêmica,
de uma criminalização sistemática das questões
sociais, como é o caso de romances policiais de grande sucesso comercial,
como os de Rubem Fonseca e Patrícia Melo. O que os compele à
produção de uma espécie de sub-relato legitimador
(ou capaz de criar um efeito de cumplicidade junto ao leitor), em meio
à trama central, de que são exemplares os desdobramentos
metadiscursivos de "E do Meio do Mundo Prostituto..." ou "Elogio da Mentira".
Ou que, por vezes, parece sugerir guinadas de ponto de vista, como a que
orienta a fala sem culpa dos protagonistas de "Monstro", de Sérgio
Sant'Anna, e "O Matador", de Patrícia Melo. O que não invalidaria,
porém, que também símbolos patrimoniais, papel-moeda,
operações bancárias tivessem se convertido em motivos
poderosos para o trabalho artístico desde o período de alta
inflação na economia brasileira. Daí os trabalhos
de Meireles, Waltércio Caldas ou Jac Leirner, voltados, no Brasil
dos anos 70 e 80, tanto para as relações entre produto artístico
e a forma financeira moderna da mercadoria, entre dinheiro, representação
e valor, como já foi assinalado por Marc Shell num dos seus estudos
sobre arte e moeda, quanto para a própria funcionalidade dos sistemas
de medida e dimensionamento que orientam a prática e a percepção
artística. Parecendo exemplar, nessa linha, um trabalho como "Eppur
si Muove" (1991), de Meireles, na verdade uma série de ações
bancárias, envolvendo extrema perversidade cambial e flutuação
de valor, por meio das quais se tratava de realizar 12 câmbios sucessivos,
em moedas diferentes, tomando como ponto de partida mil dólares
canadenses. Operações ao final das quais a quantia inicial
acabaria se reduzindo a US$ 4 e alguns centavos, guardados em pequenos
cofres transparentes com formato de porquinho. Fora da referência
financeira simulada, porém, são particularmente significativas,
no trabalho de Cildo Meireles, sobretudo das últimas décadas,
a quantidade e a variedade de materializações de questões
de valor, peso, tamanho, medida. É o que assinalam "Glove Trotter",
também de 1991, uma coleção de bolas de cores e tamanhos
variados recoberta pela mesma vasta malha, ou "Fontes", em que se estabelece
um desdobramento de tensões entre diferentes instrumentos e medidas
-réguas de carpintaria penduradas, relógios nas paredes,
números soltos no chão- e entre conceitos e referentes diversos
-as noções de espaço e de tempo-, por meio dos quais
se parece simultaneamente expor e desestabilizar os processos de quantificação
e dimensionamento e a própria operação de mensuração
postos em jogo nessa instalação de 1992. Sublinhando-se,
desse modo, tanto uma espécie de "desmedida" semelhante à
dos desdobramentos de orientação e proporcionalidade quanto
a tensão enunciativa (entre exposição e desestabilização)
que caracterizariam a literatura brasileira na virada do século
20.
Tensão enunciativa
Se, do ponto de vista dos
processos de formalização, produziu-se, então, uma
desproporcionalidade sistemática, sua contraparte, do ponto de vista
da dicção, parece ter sido um ventriloquismo acentuado. O
que, no terreno da lírica, se manifestaria por meio de uma utilização
recorrente, com funções distintas, do monólogo dramático,
das teatralizações internas do poema.
É nesse sentido que
apontava, ainda em 1990, um poema como "cançãonoturnadabaleia",
de Augusto de Campos, no qual, em diálogo inequívoco com
o albatroz baudelairiano, o poeta se autofigurava como Moby Dick, e ao
próprio poema como instância dupla, tensão entre negro
e branco, voz e visualidade, voz lírica e voz ficcional, forma poética
e método dramático.
É
em direção conservadora que se pode entender a imposição
editorial do modelo da vasta narrativa histórica à prosa
brasileira recente, passando do caráter de quase roteiro de "Agosto",
de Rubem Fonseca, ao anedótico de Jô Soares
|
É, nesse sentido,
igualmente, que se pode compreender o exercício de escuta, o dar
voz ao outro, que caracteriza a proliferação de vozes heterogêneas,
antagônicas, em que se converte a escrita poética de Francisco
Alvim. Ou a tensão entre expressão lírica e enredo
policialesco, entre soneto e contrabando, em "Até Segunda Ordem",
de Paulo Henriques Britto, ou entre forma convencional e dicção
antilírica nos sonetos recentes de Glauco Mattoso. Ou as composições
em eco, de Lu Menezes, nas quais espelhamentos mútuos, homofonias,
assonâncias, analogias, sublinham não apenas sucessivas diferenciações
a princípio imperceptíveis, mas um tensionamento simultâneo
entre fala e voz, entre sucessivas figurações e subtrações
da voz lírica.
Ventriloquismo
Esse princípio dramático
não ficaria restrito, porém, a essas divisões líricas
da voz. E o ventriloquismo -explicitado no título "Ventriloquist"
de espetáculo recente, em que se sucedem dublagens, clonagens de
figuras reconhecíveis da mídia, repetição,
a três vozes, de trechos da "Valsa nº 6"- se converteria em
elemento estrutural do método cênico de Gerald Thomas, por
exemplo. Tensão enunciativa presente, mas trabalhada de modo distinto,
na dramaturgia de José Celso Martinez Corrêa, como observa
Luiz Fernando Ramos, na sua análise de "Cacilda", ao sublinhar aí
a expansão da rubrica, o contraste entre indicação
cênica e parte dialogada, por meio do qual se figura, indiretamente,
o adensamento do campo conceitual em que se move o encenador.
Problematização
da locução perceptível também no uso de legendas,
interferências e nas alterações estratégicas
de volume adotadas por Bia Lessa na sua versão de "As Três
Irmãs", na passagem de um registro ficcional para o discursivo no
método performático de Denise Stoklos, na oposição
entre relato corrido e ações físicas fragmentárias
que orienta um espetáculo como "Bugiaria", de Moacir Chaves. Desdobramento
vocal que seria estrutural, igualmente, num filme como "Santo Forte", de
Eduardo Coutinho, em que o que está em questão é o
servir-se de voz ou corpo a um outro, que pode ser a pombagira, uma reencarnação
qualquer, uma figura familiar que volta para dizer alguma coisa, um santo,
um exu. Ou, no ainda no terreno literário, são exemplares
dessas cisões numa só voz, ou desses exercícios de
duplicação problemática, desde os personagens e narradores-dobradiça
de Silviano Santiago (retomados em "Viagem ao México") ao contraste
entre monólogo interior e imagens de televisão que orienta
"Amor", de André Sant'Anna, da composição em dípticos
contrastantes, como em "Teatro" e "Medo de Sade", de Bernardo Carvalho,
ao tensionamento da própria dicção entre um movimento
de expansão serial ("As Banhistas") e de intensificação
rítmico-imagética interna ("Sob a Noite Física") que
tem marcado o trabalho poético recente de Carlito Azevedo, das sucessivas
figurações da morte autoral de Valêncio Xavier ou dos
epitáfios de José Paulo Paes, ao livro enviado num caixão,
como foi o caso do "Decálogo da Classe Média", de Sebastião
Nunes, ou à dissecação da máquina de escrever
em "Cortejo de Abril", de Zulmira Ribeiro Tavares. Desdobramentos ficcionais,
variações de acento, auto-supressões que parecem apontar
para uma espécie de figuração intelectual agônica,
de desconfiança sistemática da própria legitimidade,
da possibilidade de consideração não mercantil da
atividade literária ou da interação crítica
com leitores-consumidores. Figuração pouco complacente, mas
particularmente tensa, passível, portanto, de movimento, de historicização.
De armar, como sugere Beatriz Sarlo, "uma perspectiva para ver" essa "deriva
organizada do mercado". Mas, se esses desdobramentos da voz, miniaturizações
narrativas, narrativizações do poema e variações
plásticas de escala podem funcionar, portanto, no sentido da intensificação
de uma autoconscientização da própria prática
artística, assim como de suas "inserções em circuitos
ideológicos" (para empregar expressão de Cildo Meireles),
de suas relações com os modelos financeiros, com a instabilidade
e a volubilidade dos mercados econômicos, com o conservadorismo político
mascarado de política de estabilização, esses mesmos
processos podem, no entanto, dar lugar a respostas bastante distintas,
movidas, por vezes, por um pânico de "catástrofe iminente",
semelhante ao do período inflacionário alemão descrito
por Benjamin, solidificando, dessa maneira, no plano cultural, mecanismos
de estabilização conservadora semelhantes aos que têm
justificado a globalização autoritária e o continuísmo
governamental na história latino-americana recente.
Imposição
editorial
É em direção
conservadora semelhante que se pode entender, por exemplo, a imposição
editorial do modelo bem-sucedido da vasta narrativa histórica à
prosa brasileira recente, passando da erudição histórico-epistemológica
de Isaias Pessotti à pesquisa bem documentada de João Silvério
Trevisan, do caráter de quase roteiro de "Agosto", de Rubem Fonseca,
ao anedótico de Jô Soares. Ou certa disseminação
aforística, lapidar, em várias áreas culturais. Das
receitas de bem viver, enunciadas em tom oracular, nos livros de Paulo
Coelho, ao frasismo que tomou conta desde os jornais aos livros de poemas,
como os mais recentes de Manuel de Barros. Enquadramento histórico
e redução ao sentencioso que funcionam como tentativas de
reorientação estabilizadora para os dimensionamentos problemáticos,
instabilizações, expansões, compressões, e
para certa "desmedida" metódica, convertidos, via variações
recorrentes de escala, distância e processos de mensuração,
em fator constitutivo de uma intensificação autocrítica
da prática cultural no panorama brasileiro contemporâneo". |