Florisvaldo
Mattos.
florismattos@e-net.com.br
"Fabricantes de desigualdades
[A Tarde, 5 agosto de 2000
Caderno Cultural]
O Brasil cultural, mais
precisamente o literário, continua jogando torto; não para
o lado esquerdo, como sua seleção de futebol, com Rivaldo,
Alex & Cia., mas geograficamente para o Centro—Sul, onde se afunila
o jogo do reconhecimento em arte e literatura. É o velho truque,
com que o poder, em todas as suas esferas, se esforça para travar,
desde os tempos da Colônia, potencialidades internas que não
rezem pela cartilha da dominação, a que deram prosseguimento,
primeiro as elites do Império, depois o caudilhismo da República
(velha e nova) e, hoje, os enfatuados do neoliberalismo globalizado.
Há alguns dias, respondendo
a uma pergunta de Tatiana Lima, em entrevista para o Caderno 2, de A Tarde,
a propósito de meu recente livro Mares Anoitecidos (Imago Editora,
2000), que na sua parte inicial tece conjeturas epico-líricas relacionadas
com a dramática passagem dos holandeses pela Bahia em 1624—1625,
resposta não publicada por limitações de espaço,
cifrei idéias batendo em tecla regionalista, ainda um dos pontos
nevrálgicos da realidade nacional. Perguntava-me ela, argutamente,
“como seria para os brasileiros uma vitória dos holandeses, nas
circunstâncias da época?”
Reproduzo aqui literalmente,
por sua pertinência, a resposta: “Os poemas não sugerem nem
autorizam tal conclusão, apesar do viés de clara simpatia
para com os derrotados, um traço de compaixão, que sempre
ocorre em tais circunstâncias, através dos tempos, a depender
do ânimo dos vencidos. De mim mesmo, considero que, naquele momento,
o século XVII, embora ficássemos menos sentimentais, e certo
de que nenhuma forma de colonialismo serve, o domínio holandês
teria levado o Brasil a um desenvolvimento mais rápido e menos desigual,
tomando como exemplo o que os flamengos realizaram depois no Nordeste,
que os portugueses praticamente abandonariam, já no século
seguinte, ao transferirem a capital da Colônia da Bahia para o Rio
de Janeiro. É lícito supor que, com eles, viriam trabalho
assalariado, liberdade religiosa e integração com o novo
espírito europeu, de que certamente decorreria o livre trânsito
de idéias e mercadorias. O atraso econômico nordestino tem,
na minha ótica, muito a ver com o desfecho da presença dos
holandeses no Brasil do século XVII. Sabendo-se que a vitória
é creditada aos espanhóis, parece que o português colonialista
tomou raiva do Nordeste.”
Essas considerações
e digressões vêm a propósito da leitura de um longo
artigo publicado no caderno Mais!, da Folha de S. Paulo (domingo, 23.7.2000),
de autoria da conhecida crítica literária e pesquisadora
da Fundação Casa de Rui Barbosa (RJ) Flora Süssekind,
com um balanço da produção cultural brasileira, principalmente
literária e plástica, do último decênio, em
que flagra “uma espécie de variação sistemática
de escala”, manifesta tanto em exercícios de expansão e compressão,
quanto de narrativização da lírica, de um lado, e
de miniaturização narrativa, de outro, e também na
retomada de gêneros, em que se destacam o conto mínimo, na
prosa de ficção, ou o poema em prosa e a seqüência
poética, no campo da lírica, tensões enunciativas
e procedimentos esses que “se converteriam em premissas dominantes da experiência
literária contemporânea”.
Alongando-se em malha de
rigor conceitual que denuncia erudição e competência
analítica e expositiva, a escritora flagra variáveis de medição
(mais tendente à desmedida) em produtos de atividade artística
criativa e, para sustentação de suas teses e argumentos,
com incursões inclusive pelo terreno das artes plásticas
em voga (Cildo Meireles, Leda Catunda, Eduardo Sued, Afonso Tostes, Nuno
Ramos, entre outros), do teatro (José Celso Martinez Corrêa,
Gerald Thomas) e do cinema (Eduardo Coutinho), arrola uma série
de autores e obras, que ela considera de nítida vigência sobretudo
no último decênio, que comprovam as hipóteses de sua
pesquisa; em alguns casos nomes já consagrados (Dalton Trevisan,
Rubem Fonseca, João Gilberto Noll, Silviano Santiago, Modesto Carone,
entre prosadores), enquanto na poesia se alinham, entre tantos sobre os
quais se lançam, atualmente, faróis na ansiosa busca de um
substituto para João Cabral de Melo Neto, nomes da estatura dos
irmãos Campos, Haroldo e Augusto, de José Paulo Paes e Paulo
Henriques Brito; em outros casos, nomes que vêm alcançando
notoriedade na medida da disponibilidade de espaços cativos em importantes
jornais e revistas, e em outros ainda, nomes quase desconhecidos, fora
dos círculos de movimentação de greis, corriolas e
congregações geracionais e burocráticas. Enfim, abarca
um variado campo em que se desdobram miríades de atitudes máximas
e mínimas, como sejam a novela e o conto miniaturizado, na prosa,
enquanto um movimento inverso de expansão, em substituição
aos poemas brevíssimos da década anterior, marca a expressão
lírica na poesia, como traço distintivo da produção
literária e artística dos últimos anos.
O que fragiliza a brilhante
arquitetura do enfoque de Flora Süssekind (não a seriedade
e qualidade de suas premissas e argumentos, diga-se) é o vezo que
preside à trajetória de sua navegação cultural.
A impressão que resulta é que, fora do eixo Rio—São
Paulo, daquela estrita chapa geográfica onde fulge e ressoa a cultura
brasileira, podendo-se formar um triângulo com a inclusão
de Minas Gerais, ou um losango, se a geometria tende a absorver o Rio Grande
do Sul, a literatura e a arte do último decênio se resumem
ao espaço sobre que incide o intenso brilho daquele sol; o resto
é escuridão. Deduz-se que ali ocorrem sucessivos big-bangs,
produzindo miríades de astros, cada qual mais luminoso. Parece existir
uma linha divisória (uma cortina de ferro, talvez), ao norte da
qual não se produz nem se transmite civilização; nada,
nada que possa atualmente resultar em paradigma, algo digno de atenção
e menção, em matéria de criação e beleza
artística.
Sob a designação
de “O que ler”, Süssekind lista nada menos que 42 autores e respectivas
obras, todos habitantes da iluminada geografia sulina, sendo a única
exceção, ao que suponho, o nordestino Ariano Suassuna, com
seus Auto da Compadecida e A Pena e a Lei, que jamais poderá ser
considerado um autor dos anos 90. E mais: todos editados no Sul, 16 deles
pela editora paulista Companhia das Letras (sintomático), ao que
se deduz, com tal matemática, que a crítica brasileira só
abre sua janela para a um espaço dolorosamente limitado, a denunciar
inteiro desconhecimento do que se produz no restante do País, em
arte e literatura. Mais grave ainda é o enigma que emerge de tal
enfoque, referente a autores e artistas de outras regiões que, vivendo
no Rio ou em São Paulo, ali escrevendo ou fazendo arte, publicando
ou expondo obras, estão fora da canônica e específica
lista, embora de sua vigência cultural ninguém tenha dúvida.
É o caso (só
para citar baianos) de escritores, como o indiscutível João
Ubaldo Ribeiro, de quem não se podem esquecer os desdobramentos,
expandindo-se em refigurações e ressurreições,
de personagens em seu consagrado Viva o Povo Brasileiro; de Sonia Coutinho,
com a redução não só psicológica como
em matéria de extensão de discurso, e variações
outras, em contos e novelas; de Marcos Santarrita, cuja ficção
reflui a dramaticidade psicológica anterior e se estende com avanços
narrativos em clave histórica; de Muniz Sodré, que transfere
para o campo da criação literária as sempre menosprezadas
simbologias da cultura afro-brasileira, entre outros, que atuam no Centro—Sul,
tal como o escultor e gravador Emanuel Araújo, em cuja obra escultórica
ocorrem também desdobramentos e reafirmações de elementos
simbólicos de decifração e inspiração
afro, desde que se mudou para São Paulo, onde hoje dirige a Pinacoteca
do Estado. Mesmo os que exercitam uma salubre preocupação
com a fama (Antônio Torres) não freqüentam as listas
de qualificação e reconhecimento. Trata-se de situação
que deve ocorrer com escritores e artistas de outros estados, do Norte—Nordeste
e, talvez, do Centro—Oeste, como também outros muitos esquecidos
do próprio Centro—Sul e Sul do Brasil, que estão sendo omitidos,
a exemplo do Chico Buarque ficcionista (Estorvo).
Parece claro que a tensão
enunciativa e a geminação entre econômico e cultural,
articuladas com processos centrados na atual crise sistêmica brasileira,
intensificadas e disseminadas amplamente, grávidas de agonia intelectual
e social, insegurança individual e coletiva, e de outros fatores
e causas, até econômicos, a incidirem na poesia, na prosa
literária e na obra de escritores e artistas de várias linguagens
contemporâneos, através de escalas variadas, não se
ausentam da obra de criadores que produzem e publicam fora daquela geografia
iluminada, onde residem e agem os que se cobrem de louros e para os quais
não se regateiam aplausos, mesmo que de claque.
Não sei o que pode
ocorrer em outros estados a Norte—Nordeste, sendo mais apropriado que historiadores
de literatura e críticos literários esclareçam, mas
será no mínimo uma distração, em relação
a criadores regionais, o olímpico desconhecimento de desdobramentos
poéticos e ficcionais e de múltiplas figurações
e espelhamentos patentes na obra do paraense Vicente Cecim, que durante
algum tempo atuou na Bahia. O mesmo acontece em se tratando de autores
baianos, de clara vigência no espaço da década, mas
ainda habitantes da periferia cultural, tais como os poetas Ruy Espinheira
Filho, consagrado lírico, cujos poemas se expandem e se comprimem,
em sucessivas escalas de auto-reflexão e escavações
na memória de tempo vivido e vivente; o feirense Antônio Brasileiro,
voz também lírica, expansiva, mas alheia às inflexões
do mercado, que se propaga numa desmedida de acentos enunciativos e proliferação
de falas, sugerindo algo a desdobrar-se indefinidamente em idéias
e formas; os travamentos discursivos e as minimalizações
e rarefações líricas da poesia de outro feirense,
Roberval Pereyr; a dicção antilírica e o debochado
diálogo com as convenções formais da estética
literária, explícitos em sonetos e outras formas poéticas
no quase estreante Cajazeira Ramos; o sensual e tenso enunciado lírico
feminil com que Myriam Fraga expressa heterogeneidades do ambiente natural
e do meio social, de seres e coisas, através de um suceder de imagens
enxutas, contritas, permeando versos ou mesmo poemas em prosa, em vestes
de crônica. O enraizamento e desenraizamento que povoam a contística
do grapiúna Hélio Pólvora, com suas evocações
épicas e dramáticas, em registro contínuo de figurações
e desfigurações, a desdobrar-se sobre uma tensa realidade
social, iluminadas por uma escrita impecável.
Nas artes plásticas,
sobressai, entre outras, a caudal urbana da arte pública de Bel
Borba, cujas formas invadem espaços, escalam encostas e muros, numa
intensa e extensa militância de figurações, com que
lirismo juvenil e sátira bem-humorada interferem para neutralizar
tumultos e agressividades do trânsito, aparentada com o muralismo
escrachante de um Basquiat, um Keith Hearing, um Sigmar Polke, um Julian
Schnabel, e outros da grei plástica internacional contemporânea.
A arte info-plástico-poética de Juarez Paraíso, descobrindo,
redescobrindo e desdobrando visualizações e refigurações
e plasmando formas abstratas no espaço virtual. E, de outra parte,
mas num mesmo crescendo, que dizer das variações de escalas
visuais, restauradoras de tempo, espaço, formas, perfis, gestos
e semblantes, que vem já há algum tempo revelando e fixando
a arte fotográfica de Mário Cravo Neto, Aristides Alves e
Maria Sampaio, em exposições públicas, em álbuns
e livros? E do teatro de Paulo Dourado, que retira dos sombrios arquivos
da história regional tragédias coletivas e as salva, propagando-as
em cenas vivas como um eco das ruas, levadas em praça pública,
como o foram a do malogro dos “alfaiates” revolucionários de 1798
e a que exumou para incrédulos olhos urbanos o cru desenlace místico
e rural da guerra de Canudos? Tudo isso e muito mais é desmedida,
de pensamento e método, mas acontece — infelizmente, neste caso
— que todos são baianos, nordestinos, logo periféricos.
Claro que a exposição
e as análises de Flora Süssekind possuem mérito, na
medida em que, através de um corte sincrônico, procura auscultar
o estado geral e o funcionamento de um corpo vivo, mas enfermo, que é
a cultura brasileira na atualidade. Não estão em jogo seriedade
profissional e capacidade crítica da autora, ambas já de
muito agregadas a sua biografia. Os questionamentos se dirigem, sim, para
a distorção e o efeito discriminatório de tal método
de exclusão, que compromete seu enfoque, assemelhando-o ao de certos
organizadores de antologias nacionais de poesia ou prosa de ficção,
ou de salões e bienais de artes plásticas, que selecionam
nomes e obras sem verdadeiramente estarem a par da real produção
cultural dos estados envolvidos, desinformação que, no mínimo,
desmerece a função crítica. Süssekind, nesse
ponto, apenas segue uma ignominiosa tradição, mas ela própria
atesta sinceridade, sugerindo apenas suposição e tráfego
em campo incerto, pantanoso, ao iniciar seu texto com a palavra “talvez”,
o que lhe fornece um álibi de exercício prospectivo.
Há de se reconhecer,
no entanto, que tal discriminação perdura não apenas
devido ao olhar vesgo da crítica, mas também em certa medida
pelo sorrateiro desempenho de uma espécie de quinta-colunismo instalado
nas regiões, que corrobora com tais atitudes e métodos nacionalmente
perniciosos, contribuindo para reforçar o preconceito e a desigualdade,
simplesmente em busca de obter um lugar, mínimo que seja, debaixo
daquele ofuscante sol, na dessolidarizante filosofia do salve-se-quem-puder,
tão velha como as portas de Tebas. E de sua contraface, o tenebroso
silêncio que se estabelece em torno de livros, aqui publicados anualmente,
e são hoje muitos.
Sei que os juízos
alinhavados acima correm o risco de ser encarados como expressões
de ressentimento, bairrismo ou provincianismo, como sói acontecer
estrategicamente no plano da cultura nacional. Que seja, mas já
é chegada a hora de se dar um sonoro BASTA! a essa postura zarolha. |