Eduardo Diatahy B. de Menezes
A
propósito do "caipirato":
A síndrome de
Herodes
Num de seus inúmeros momentos de
lucidez, Karl Marx se questionava indiretamente acerca do valor do
modelo explicativo de que ele próprio fora o grande difusor, a
saber, quando se indagava, como faz na Introdução Geral à Crítica da
Economia Política (Grundrisse, 1857), a respeito
do crescimento da arte neste termos: «sabe-se que certas épocas de
floração artística não estão de modo algum relacionadas com a
evolução geral da sociedade, nem portanto com o desenvolvimento da
base material, que é como a ossatura de sua organização. Por exemplo
os Gregos comparados aos modernos, ou ainda Shakespeare. (...) Mas a
dificuldade não reside em compreender que a arte grega e a epopéia
estão ligadas a certas formas do desenvolvimento social. A
dificuldade está em que elas nos conferem ainda hoje uma fruição
estética e que, sob certos aspectos, elas nos servem de norma e
constituem um modelo inacessível.»[1]
Estas e outras reflexões
atropelavam-se no meu espírito ao rever, no domingo 17/12/95, eu
diria quase em estado de transe, o extraordinário desempenho de
crianças e adolescentes que faziam o Balé Jangurussu, representação
dramática do quotidiano dos catadores do hoje célebre aterro
sanitário do Jangurussu, na periferia de Fortaleza. Sei que não são
coisas propriamente comparáveis, mas em matéria de desfrute
artístico a analogia que me ocorria por associação livre era com
algo tão belo quanto a versão cinematográfica que fez Bergman da
Flauta Mágica de Mozart. São duas experiências semelhantes na sua
inexcedível grandeza estética. A diferença radical entre os dois
espetáculos é de natureza mais profunda e consiste em que o talento
do diretor sueco se exerce sobre os séculos de densidade cultural
européia, ao passo que a refinada criação de Dora Andrade e
colaboradores se faz por sobre séculos de miséria, transfigurada em
beleza. Com efeito, como é possível extrair de tal penúria de
condições materiais daqueles meninos e meninas também catadores de
lixo tanto encanto, tanta harmonia e tanto ritmo?
Assim, não posso estar de acordo com
o saudoso mestre João Ribeiro, que asseverava: «O que caracterisa a
revolução intellectual do nosso tempo é a preeminencia que se
concede ás forças minimas e infinitesimaes, porém prodigiosas em
numero, que realisam o Universo. Já passou a época dos heroes,
demiurgos e reis para a historia, das catastrophes para a geologia ?
hoje é o atomo aqui, ali o infusorio, acolá a vil plebe e a multidão
dos pequeninos que definem, explicam e governam o mundo.»[2] Para
mim permanece pulsando esse espírito demiúrgico que se apodera do
artista, criador de mundos novos, levando-o a extrair grandeza da
pequenez e beleza da hediondez, em que podem se transformar seres
humanos! Esse anseio que mora no coração do homem desde que Prometeu
entregou-lhe o fogo sagrado e que o leva a aspirar à transcendência,
à superação de sua condição. Esse espírito não é outro senão o
veneno da serpente do mito fundante: «e sereis como deuses». Essa
pulsão erótica é talvez a única força capaz de propiciar alguma
perenidade à nossa fugacidade e finitude.
Naquele morno entardecer de domingo,
no Parque do Cocó, deixava eu fluir o rio das idéias no ritmo das
sensações estéticas, ao mesmo tempo que vira, antes, Ângela Linhares
e companheiros a nos dar uma demonstração desse generoso e fecundo
projeto que é «Um canto em cada canto». E vinha à lembrança a
defesa, há cerca de três meses, de sua bela dissertação de Mestrado
que tive a alegria de orientar ? O Tortuoso e Doce Caminho da
Sensibilidade ?, na qual expõe com agudeza e paixão as etapas e os
fundamentos dessa experiência riquíssima de educação pela arte com
“meninos de rua”. Mas veio-me também a recordação de uma conversa
que ela manteve, algum tempo antes, quando uma sua colega paulista
comentara a respeito da exposição que ela lhe fizera desse trabalho:
«É uma pena, disse a colega, pois quem vai ler isso de uma
nordestina?!»
E como lembrança puxa lembrança,
evoquei então o lamento de Alexandre Herculano: «Escrever em
português é escrever a portas fechadas!» De fato, quem nos lerá a
nós, paulistas, portugueses ou nordestinos?!
Mas Carolina Michaëlis de Vasconcelos
assegura que no período quinhentista, da grande expansão lusitana,
aprendia-se português na Alemanha para ler Camões e outros grandes
espíritos de Portugal; assim como Harri Meier aponta a influência d’
Os Lusíadas no romantismo alemão. Demais, fico a imaginar que
recepção universal teria tido a literatura infantil de um gênio
nessa arte como Monteiro Lobato, se tivesse escrito na língua de um
desses países que dominam o ciclo civilizatório de que ainda não
saímos. Recordo, além disso, com que espanto e entusiasmo me falava
um colega francês da descoberta que fizera da riqueza ficcional de
Jorge Luis Borges. E ressalte-se que estava a lê-lo em tradução
francesa e não como Freud, que aprendeu o espanhol para apanhar no
original o espírito e a grandeza do D. Quixote.
Esses e outros muitos exemplos que
ainda poderia mencionar suscitam a questão das graves
discriminações, do desdém ou do desconhecimento que atuam no
processo de avaliação e consagração a que estão sujeitos produtos e
produtores no campo dos saberes e das artes. Segundo quais critérios
funcionam tais processos que pretendem estimar o valor das obras?
Tudo parece fazer crer que aí também,
no universo da cultura, opera estranha e perversa Lei de Newton,
segundo a qual o reconhecimento e o mérito ou louvor se dão na razão
direta da semelhança entre os pares e na razão inversa do quadrado
das distâncias em relação aos tradicionais centros de consagração.
Estes, no nosso caso, encontram-se no pólo situado entre Rio e São
Paulo, desde que para aí se deslocou a região motora que concentra
poder e forças econômicas dominantes de nosso sistema produtivo e
político. Historicamente, isso se deu grosso modo a partir de 1870,
ponto de inflexão de grandes transformações na paisagem
socioeconômica do país. É óbvio que já vinha de antes a função da
Corte, no Império, como centro polarizador de nosso universo
cultural. Mas, é sobretudo desde então que esse eixo se tornou a
nossa principal instância de consagração. E quem habitar distante
daí, por mais talento que possua, por melhores obras que produza,
terá poucas chances de ter seu mérito reconhecido, salvo se
submeter-se aos rituais de iniciação das confrarias que constituem a
república dos sábios: reciprocar favores com os que detêm o poder no
campo intelectual, permutar elogios na liturgia das citações,
efetuar alianças com eventuais mandarins da área, mesmo em
detrimento de antigas lealdades; enfim, lograr publicar em editoras
ou periódicos que eles controlam e obter acesso aos meios de
divulgação e publicidade, etc. Sem isso, morre inédito ou esquecido,
mesmo que sejam geniais os seus manuscritos ou obras de outro
gênero. Ou então deverá consolar-se com a pálida glória de obscuras
edições de sua província; e morrer na, quase sempre, vã esperança
que um dia, por acaso, será redescoberto.
Por destorcida semântica, é
“nacional” tudo aquilo que ocorra naqueles centros dominantes e é
“provinciano”, em sentido pejorativo, tudo quanto se produza fora
desse círculo. Um estudante piauiense que elabore boa tese sobre um
movimento sindical ou outro problema qualquer, terá que
obrigatoriamente ajuntar ao seu título um qualificativo espacial
restritivo, para demarcar a fronteira geocultural de seu estudo. Já
um universitário paulista que realize pesquisa semelhante, em
Osasco, por exemplo, poderá tranqüilamente intitulá-la: O Movimento
Sindical no Brasil.
Todavia, Mário de Andrade, já nos
inícios do modernismo, tinha aguda sensibilidade para criticar em
Sérgio Milliet isso que chamava de paulistismo, ou seja, o
privilegiar aquilo que se produzia em sua província em detrimento
das demais. Mas esse fato que estou procurando caracterizar aqui não
é privativo nem exclusivo do Brasil. Em geral, países de alta
centralização política e cultural, como a França, por exemplo,
padecem da mesma enfermidade, pois Paris fagocita e discrimina as
demais províncias. E, em escala mais ampla, o nosso mandarinato
cultural também sofre por estar distante e não ser reconhecido ou
citado em Oxford, Moscou, Berlim, New York, Paris ou Londres.
Mas é hora de encerrar essas
reflexões lastimáveis e dizer das razões que me levaram a denominar
esse fenômeno de síndrome de Herodes e a escolher essa insígnia como
título do artigo. Algum leitor apressado talvez conclua pela
influência desses tempos natalinos. Sou porém forçado a confessar
que é antigo para mim esse termo e que essa constitui velha
reflexão, já que também padeço a nefasta influência dessa moléstia
de nossa ordem cultural e acadêmica. Portanto, antes que alguém mais
se inquiete com a delonga, explico-a sumariamente a modo de
parábola:
Narra a tradição ? mais ou menos
concorde com os relatos de Mateus e Lucas, porém sem suporte em
autores profanos ? que Herodes, temeroso com os rumores de que
nascera uma criança destinada a ser o rei messiânico dos Judeus,
manda vir à sua presença os Magos que por ali passavam em demanda do
referido menino, e lhes interroga sobre o seu paradeiro. Ao ouvir
deles a informação de que esse Messias nascera em Belém, minúscula
aldeia da Palestina, aquela altiva autoridade, que vivia numa corte
rodeado de helenistas, teria reagido com este comentário
depreciativo: «E, por ventura, algo de bom pode vir de Belém?!»
Fortaleza, 21 de Dezembro de 1995
*Professor Titular de Sociologia da Universidade
Federal do Ceará e membro do Instituto Histórico do Ceará.
[1] Cf.: Œuvres. Économie, t. I. “Bibliothèque de la
Pléiade”. Paris: Gallimard, 1965, pp. 265-266.
[2]Cf.: Paginas de Esthetica. Lisboa: Livraria Classica Editora de
A. M. Teixeira, 1905, p. 56.
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