Eleuda de Carvalho

Um Poeta Absurdo
                
 
      Magro e branco, com seu belo bigode cáqui, fumando cachimbo com um ar de lorde sertanejo. Foi assim que eu vi o advogado, folclorista, jornalista e poeta Orlando Tejo, natural de Campina Grande (PB). Apaixonou-se pela cantoria menino, quando também começou a trabalhar na Rádio Caturité.  

      Com o AI-5, em 68-69, suas colunas nos jornais de João Pessoa e Recife tinham que vir sem assinatura. Mas ele sobreviveu. Enquanto isso, pesquisava. Principalmente, a vida e obra do esdrúxulo Zé Limeira, ``tropicalista rude, que trouxe a vocação do fantástico. O único surrealista bárbaro perdido nos sertões do Nordeste.''  

      A primeira edição do livro Zé Limeira, poeta do absurdo saiu, depois de muita novela, em 1980. A nona está sendo preparada para começo de junho. A décima, pela Ateliê Editorial de São Paulo, será o volume dois da ``Coleção Confederada'', do pessoal do jornal O Pão.  

      Quem me apresentou os versos estrambóticos desse tal de Zé Limeira foi meu parceiro de Rádio Universitária, José Rômulo Mesquita Martins. Pois fomos, num fim de manhã, a uma cantoria quase, no sugestivo Rostro Hermoso. E tome poligamia! 
 

Vida & Arte - Poeta Orlando Tejo, como foi seu encontro com Zé Limeira, o Poeta do Absurdo? 
  
Tejo - (Tosse, limpa a garganta e acende o cachimbo) Aí foi uma coisa interessante, as coisas espontâneas da vida. Estava na época com 15 anos, mas já era piolho de cantoria desde os 13. Vou passando por uma rua, a rua dos antigos cabarés da cidade, de tardezinha, passeando. E ouço uma voz inusitada, eu e um companheiro, a gente se aproximando dessa voz. Tinha uma viola no meio. Aí houve o alumbramento: a figura mais estranha que eu já vi no mundo. Tinha um cantador normal, que chamava-se Cícero Vieira, mais conhecido como Mocó, e o outro era o próprio Zé Limeira. O primeiro momento foi de susto. Naquela época, 1950, o sujeito com uma viola psicodélica, verde, azul, amarela, branca, de toda cor, as 12 clavículas tinham três, 4 fitas multicores, compridas, penduradas, quase 30 fitas. E a ventania que entrava no bar ia fazendo aquele moinho, as fitas por cima dele, como bandeirolas ao vento. Com óculos bem escuros, isso era de tardezinha, paletó azul e um lenço vermelho amarrado no pescoço. Fazia um nó aqui, muito grande, e um anel desses de feira, pendurado no nó. E nos dedos, negócio de 15 ou mais anéis, pedras de todas as cores. Era um espetáculo visual. 

V&A - Parecia mais um cantor de rock... 

Tejo - Era mais avançado ainda! Mas isso não era nada, antes de se ouvir a voz dele. Tonitruante, uma voz de barítono possante mesmo, uma coisa assim que faria inveja a Nelson Gonçalves. Depois disso tudo, vinha o surrealismo dele, uma coisa totalmente inusitada na cantoria. A cantoria, que já tinha bem cem anos, vinha naquela mansidão, toda arrumadinha, todo mundo cantando bem certinho, e chega esse camarada e desmantela tudo, a cantoria saiu do trilho. Ele inventou uma estrada, por dentro dessa outra, que só quem viajava era ele. 

Zé Rômulo - Mas a cantoria dele era sempre daquele jeito, ou ele fazia um baião normal? 

Tejo - Ele não tinha nada normal, era daquele jeito mesmo. A gente dizia: - Você é um cantor diferente? Ele: - Mas como, um cantor diferente? Tenho dois pés, duas mãos! 

V&A - E o que ficou registrado do poeta Zé Limeira, da voz dele? Você tem alguma gravação? 

Tejo - Tinha. Tem e não tem... Só acompanhei Zé Limeira quatro anos, de 50 a 54, quando ele morreu. Ia muito a Campina Grande, gostava muito de Campina. Como todos os cantadores, porque era um centro de encontro desta categoria. Comecei a decorar um bocado de coisa, eu tinha uma memória até privilegiada, antigamente. Perdi uns 99%. Além de ter decorado alguma coisa, houve algumas gravações. Que era um milagre, uma gravação naqueles anos de 50. A primeira foi nessa mesma rua (do seu primeiro encontro com Zé Limeira). Consegui um gravador da Rádio Caturité, um bichão quadrado, deste tamanho assim. Ia ser num determinado salão, mas não tinha tomada de corrente, a gente foi pra outro. Isto foi oito dias depois da morte de Getúlio (Vargas). Esta cantoria foi fantástica. Perdeu-se um bocado porque a fita ninguém sabia manejar, e grande parte da cantoria se perdeu. Danado é que depois se perdeu toda, eu transcrevi o que podia e está no livro. Tem outra fita, de Cajazeiras, que Nestor Rolim, meu amigo, gravou todinha, esta cantoria de Zé Limeira e Zé Alves Sobrinho, na fazenda Melancias. Transcreveu, ficou de me dar a fita, depois se esqueceu, e foi ficando por isso mesmo. Tinha uma também, de Lagoa Seca. Mas era um gravador de um agrônomo que não morava lá. De forma que a voz dele se perdeu, não ficou nenhum registro, é uma pena.  

V&A - Com tão poucas referências, ele é personagem permanente na cultura popular. Até um dos grupos mais novos do Movimento Mangue-Bit, de Recife, o Mestre Ambrósio, no primeiro disco faz uma homenagem, ``Se Zé Limeira sambasse maracatu''. A que você credita este sucesso do Poeta do Absurdo? 

Tejo - Ele mandou pra mim, o CD. Patativa me mandou, há uns dois meses, um negócio muito interessante, ``O encontro de Patativa do Assaré com a alma de Zé Limeira'', um galope-a-beira-mar. Tenho impressão que ele será presente sempre. Ele não forçou a barra, era legítimo. Saiu do Teixeira, nasceu e morreu lá. Teixeira foi onde nasceu a cantoria nordestina. Lá, que já era pertinho do céu, ele foi direto. Morreu em estado de graça, tinha pecado não. Nesse dia, estava comemorando o aniversário da esposa, dona Bela. Estava no terreiro da fazendinha dele, com um cantador chamado Bentevi, um alagoano. Quando foi às 3 horas da manhã, a viola caiu para um lado, ele caiu pra outro, fulminado por um colapso. Morreu cantando beira-mar. Eu não estava lá, mas me disseram. 

V&A - Além de Zé Limeira, poeta do absurdo, que já vai pra décima edição, o que você tem feito mais? Poesia, jornalismo, novas publicações? 

Tejo - Já está no prelo em Brasília, pra sair agora em junho, As noites do Alvorada (via-crucis do Caboclo Misterioso). É o homem que vendeu a Vale do Rio Doce. Esse livro vai ser lançado lá e vai ter impacto grande, porque é meio forte. São 50 sonetos, não sei se o pé-do-ouvido dele vai suportar. Eu não me lembro desses sonetos direito, mas tem um que diz, deixa eu ver, peraí: ``Você sonha ser um dos imortais/ e é só distante sonho de quem sonha/ pois, sem saber sonhar, vira um pamonha/ um alvo de chacota e coisas mais./ Catando glórias internacionais/ você quase matou-nos de vergonha/ ao receber um título em Bolonha/ sob protestos intelectuais./ O Brasil quer um presidente justo/ que não cause vergonha, fome ou susto/ que a Constituição não manche ou fira./ E que não nutra camarilha infame/ com um gordo desse à frente, que vexame!/ Mas não sei se é verdade ou se é mentira.'' Porque todo soneto termina assim, ``mas não sei se é mentira ou se é verdade'', e o próximo, ``não sei se é verdade ou se é mentira''. O mote é esse. 

V&A - Pegando o mote. Tem algumas pessoas que dizem que o Zé Limeira nunca existiu, foi uma invenção sua com o cantador Otacílio Batista do Pajeú. É verdade ou é mentira? 

Tejo - (Ri). Existiu mesmo. Mas, nesses anos todos, são tantas interrogações que às vezes eu digo: mas será que eu estava equivocado? Será que aquilo que eu vi não era Zé Limeira? E de vez em quando chega um cabra, - ah, não existiu. Mas existiu, tenho certeza. Aquele caboclo era realmente Zé Limeira. E não havia ninguém melhor. Onde ele passava, o que era de criança saía atrás. Se ele atraía as crianças é porque era puro, não era? Só andava a pé, andava 60 quilômetros por dia. No matulão levava a viola, rapadura, farinha, zinebra, carne seca, pesava bem 40 quilos. Mas ele era muito forte, aquele andar de puro sangue. 

ZR - Você lembra dos poemas de Zé Limeira? Ele fez muita sextilha com temas da Bíblia. 

Tejo - Lembro. Quando ele incursiona pelo Novo Testamento, diz coisas muito interessantes. Por exemplo: ``Jesus nasceu em Belém/ conseguiu sair dali/ passou por Tamataí/ por Guarabira também./ Nessa viagem de trem/ foi parar num entrocamento./ Não encontrando aposento/ dormiu na casa de um cabo/ jantou cuscus com quiabo/ diz o Novo Testamento''. E esse: ``Pedro Álvares Cabral/ inventor do telefone/ começou tocar trombone/ na Volta de Zé Leal./ Mas como tocava mal/ arranjou dois instrumento/ daí chegou um sargento/ querendo enrabar os três./ Quem tem razão é o freguês/ diz o Novo Testamento''. Inventava aquilo na hora. Tenho impressão que deve ter sido um dos poucos, um dos três homens livres que pisaram a Terra. Era sempre procurado pelos cantadores, porque a bandeja dele era abençoada. A bandeja, é a norma, é sempre dividida pelos dois. Só que os 50% dele não era mais  dele. Pra viajar, não precisava de nada, só o matulão e as pernas e a vontade de chegar lá pra cantar.

 
         Colaborou José Rômulo Mesquita Martins, produtor e apresentador do programa
                                                            ``Reouvindo o Nordeste'', da Rádio Universitária FM
                                                                       

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 Página atualizada  por  Alisson de Castro,  Jornal de Poesia,  26  de Março de 1998