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Eleuda de Carvalho


 


Poesia da vida cotidiana

O Povo, Fortaleza, Ceará, Brasil
17 de julho de 2006


 


O Vida & Arte publica, a partir de hoje, uma série sobre os dez livros indicados ao vestibular da UFC. Para começar, Poesias Incompletas, obra que reúne a produção poética de Antônio Girão Barroso, um dos fundadores do grupo Clã. Dispensando a rima e incorporando o cotidiano, Girão bem representa o impacto do modernismo nas letras cearenses


 

Quando Antônio Girão Barroso nasceu, no antigo Brejo Seco, hoje Araripe, no Cariri do Ceará, o mundo estava em pé de guerra. Era o ano de 1914, e por estas bandas o clima também se apresentava belicoso, com a jagunçada do Padre Cícero Romão Batista botando pra correr Franco Rabelo, o presidente da província (como então se chamavam os governadores de estado). Quando Antônio Girão Barroso começou a escrever poesia, a barra continuava pesada - pelo menos por este Brasil, sob a mão forte de Getúlio Vargas, na década de 30. Eram poemas já influenciados pelos jovens que viveram a Semana de Arte Moderna de 22, que desbancou a musa parnasiana de Olavo Bilac para a entrada triunfal da poética sem métrica nem rima.

Mas Antônio Girão Barroso não se conteve na poesia. Escreveu contos, foi crítico de artes e repórter (muitas vezes assinando as matérias como Antônio Santos). Formou-se advogado e foi doutor em Ciências Econômicas. Fez parte da Academia Cearense de Letras e, antes, nos idos de 40, ajudou a criar uma agremiação que fez história: o grupo Clã, que reuniu escritores, artistas, intelectuais. Do Clã - originalmente Clube de Literatura e Arte - fizeram parte o artista plástico Aloísio Medeiros; Antônio Martins Filho - o fundador da Universidade Federal do Ceará (UFC); o poeta Artur Eduardo Benevides; o literato Braga Montenegro; o dramaturgo Eduardo Campos; os cronistas Fran Martins e Milton Dias; os contistas João Clímaco Bezerra e Moreira Campos, entre muitos outros. O Clã produziu uma revista literária, encartada no jornal O POVO, Maracajá, ousada na forma e no conteúdo.

Em 1938, Girão Barroso publica o primeiro livro, Alguns poemas. Em 1946, é editado Os hóspedes, e em 1950 sai outra seleção de versos em Novos poemas. Participa, em 1965, da Antologia de poetas cearenses contemporâneos. Em parceria com Cláudio Martins e Otacílio Colares, publica, em 1968, Trinta poemas para ajudar. No início dos anos 70 sai outro livro de poemas, Universos, e em 78 escreve um volume de história e crítica literária, Modernismo e concretismo no Ceará. Na década de 80, sai o livro Dois tempos (miscelânia em parceria com Inácio Almeida). Antônio Girão Barroso faleceu em Fortaleza, em 1990. Quatro anos depois sai o póstumo Poesias Incompletas, este que agora é indicado ao vestibular da UFC.

Poesias Incompletas faz uma retrospectiva da produção literária de Antônio Girão Barroso, começando com Alguns poemas (de 1938). Estação do Trem é dedicado ao poeta Manoel Bandeira - que, vê-se, tem influência preponderante na poesia de Barroso. O poema sugere o trem em movimento, a partir do refrão "Pacatu-bê-a-bá", e pinta o cenário das paradas nos lugarejos, o magote de gente oferecendo produtos aos passageiros: "banana seca é o pau que rola", diz um verso, de delicioso extrato corriqueiro e banal. Há leveza, nestes versos iniciais, e resquícios românticos, parnasianos e simbolistas - mas a escrita do poeta é, sim, moderna.

Ainda deste primeiro livro, um certo desencanto existencial ("a vida todinha/ eu passo dizendo/ me acudam me acudam"), e a consciência do tempo que passa (como no poema Inútil dizer), além de recordações da infância sertaneja - em Menino, o pedido na procissão para Nossa Senhora: "faça de mim um homem bem-bom". E, claro, há o amor e suas inquietudes, num recorte pró-feminino: "todas as mulheres são iguais/ e os homens também". A influência de Bandeira e Drummond fica explícita em Canção do noivo aflito, um rondó para a noiva "raquitinha" que morreu - "minha noiva não vá não/ senão me jogo no mar". E em versos de sutil densidade lírica, como no poema Imagem simples: "eu também espero pelo sol que é você".

Vemos ainda o poeta e sua consciência do mundo, um olhar sobre a cidade e os homens calados, que "espreitam o bonde das onze e cinco". Em Único poema proletário, Antônio Girão Barroso dá forma estética ao "drama cotidiano da fábrica de tecidos". E a uma cena praiana no Pirambu. Em Nihil, o poeta deseja não pensar em nada, "ser apenas um animal que pobremente se alimenta". Mas, adiante, diz: "a vida me convida/ a de novo mover minha imaginação". A segunda parte do livro traz poemas de Os hóspedes, publicado em 1946. O que ressalta é o sentimento da solidão, a angústia derramando-se no papel branco, mas há o sonho de um mundo melhor. Em Moscou, por exemplo, onde "então ouviremos falar do mago Lenine".

Mas o poeta finca versos é na esquina de sua rua, espia os arrabaldes, a chuva (sinônimo da esperança), derrete-se de amor: "meu coração, bate devagar/ pode bater devagarinzinho", diz em Poeta moderno arranja namorada. Mas a lírica não empana o drama real da vida, e por isso ele registra o sofrimento do sertanejo, em mais um momento de seca e retirada: "os pobres sofrem, Maria, porque às vezes/ falta-lhes a água e sobra-lhes o sol". Em Novos poemas (de 1950), o poeta ainda louva o amor, mesmo sem rimas, o "que é difícil, mano!", e canta loa à mulher latino-americana, "dançando rumba e valsa/ num mundo de cinema pintura e organdis". Há até, no Soneto de bodas, uma experiência de poema concreto com o nome da amada, Hermelinda.

Em Trinta poemas para ajudar, de 1964, nenhum deles tem título. O poeta Antônio Girão Barroso está em sua melhor forma. Há, aqui, ecos de surrealismo: "a eurritmia do verso/ e o fragor das batalhas/ o cardume de peixes/ e a donzela morta/ o moço suicida/ (num punho de rede)/ e o laço de fita". Em Poesia (simultânea) com o sol e a lua, a mescla da quadrinha popular com o espírito jocoso cearense resulta num quase hai kai: "o sol é lindo/ como um limão/ A lua é uma grande traficante". De Universos, publicado em 1972, a metalinguagem do poema Obrigado, poesia - "porque posso carregar fantasmas a tiracolo". E mais experiências concretistas.

Em Os dias preguiçosos, um poema decantando a semana, o belo ócio e a leitura dos jornais: "as manchetes nos alimentam mais do que o pão/ porém quando chega no fim do dia/ vemos que havia muita coisa errada nas manchetes". E arremata: "a filosofia é esta, conversar é bom e beber é melhor". No Último poema, a profissão de fé do poeta, seu compromisso primordial - com "o homem e sua vida/ sua sobrevida/ sua suada subvida". O livro Poesias Incompletas faz parte da coleção Literatura no Vestibular, publicação UFC/CCV. Cada um dos volumes traz, na capa, uma obra do acervo do Mauc - Museu de Arte da UFC. Ilustrando o livro de Antônio Girão Barroso, um óleo sobre tela de José Fernandes (Cais do Porto II). Na próxima semana, Moça com flor na boca, do cronista Airton Monte.


SERVIÇO

Poesias Incompletas - de Antônio Girão Barroso. Coleção Literatura no Vestibular, publicação CCV/UFC. À venda na loja das Edições UFC e nas livrarias Livro Técnico. R$ 12,00.
 



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19/07/2006