Eleuda de Carvalho
Um gato vadio espreita a cidade
24 de julho de 2006
Moça com Flor na Boca, do escritor Airton Monte, reúne cerca de 60
crônicas do autor, publicadas de segunda a sexta aqui no Vida &
Arte. A cidade, os amigos, as mulheres, os bares, a boemia e as
idiossincrasias do cronista são os temas mais recorrentes do livro,
que faz parte dos dez indicados ao vestibular da UFC
Psiquiatra que morre de medo de
médico. E é fumante inveterado. O cinquentão que persiste em manter
um coração adolescente, desassossegado. Um homem apaixonado por sua
esposa, e mesmo assim ardendo em desejos despudorados diante da
mulher que passa, anônima e bela. O cara que se diz suburbano, mesmo
morando no pedaço mais turístico da cidade - cidade que ele também
não cansa de cantar, em sua prosa cotidiana. O escritor aferrado à
máquina de datilografia, desdenhando as facilidades do computador. O
poeta que, embora romântico e lírico confesso, ousa cuspir no prato
em que comeu. É assim, idiossincrático, às vezes suave, outras
tantas rude, politicamente incorreto, sentimental demais - o
escritor Airton Monte, autor de Moça com flor na boca, uma das dez
obras indicadas ao vestibular da UFC. O livro é uma seleta das
melhores crônicas dele, publicadas, de segunda a sexta, aqui no Vida
& Arte. Na capa, uma obra do acervo do Museu de Arte da UFC - Mauc,
uma rendeira enigmática de Aldemir Martins.
Airton Monte estreou em livro com O
Grande Pânico (contos), publicado em 1979. Em 80, saiu um livro de
poemas, Memórias de botequim. Na mesma década lançou mais dois, de
narrativas curtas, Homem não chora e Alba sanguínea. Para a coleção
Terra Bárbara, das Edições Demócrito Rocha, escreveu o perfil do
jornalista Rogaciano Leite Filho. Dos 60 e poucos textos reunidos em
Moça com flor na boca, a maioria foi publicada entre 2000 e 2004,
uma ou outra crônica do fim dos anos 90. A crônica é um gênero
literário e jornalístico, ao mesmo tempo. A crônica se alimenta do
cotidiano, da notícia, da vida, mesmo, transfigurada pelo estilo e a
estética do escritor. Mas também carrega em si a urgência da
redação, a obrigatoriedade de um texto novo todo dia, e daí que é
muito natural a recorrência dos temas e até mesmo de alguns clichês,
quando o autor alinha frases corriqueiras em dias de pouca
inspiração.
A crônica que dá título também inicia
o livro. Na madrugada, o escritor insone faz um passeio mental pela
cidade amada, enquanto o anônimo galo anuncia a nova manhã. A
presença da mulher, a amada, a mulher que passa, imaginária ou real,
é uma constante. Na alegria, na tristeza. Ele mesmo diz, em A
imprescindível, sobre a presença feminina, "sempre a me acompanhar,
protetora". Até o mar é mulher, escreve em outro texto. A única
nomeada é a esposa, Sônia, que ele chama de "santa" (talvez por
aturar o boêmio inveterado, a louvar a beleza feminina em todos os
tempos e modos, reconhece). Há, ainda, a presença suave da moça de
azul celeste, cabelo ao vento, flutuando entre as mesas do boteco
familiar. E uma enigmática mulher de preto levando pela mão, noite
adentro, um menino espantado.
Mas a cidade também se transmuta
fêmea, para deleite do cronista, "romântico animal bucólico".
Fortaleza é Iracema e musa amada, sob o olhar lírico do escritor,
que se finge um outro para estranhar a cidade, e vê-la "com olhos de
turista". Mas ao encantamento sobrevém a consciência aguda de algo
que se perdeu. E então só lhe resta beber "pelos botecos, pra
esquecer desses garotos com cara de velho". Porque muitas vezes o
cronista se percebe "um sonhador cansado com a utopia da
fraternidade universal" e se define, num aparente desdém: "Sou
somente um sujeitinho medíocre que sonha e sonha". A Beira Mar, o
"vetusto Solar dos Monte" (a casa paterna), o bar do Tururu, o
Estoril, o Cais Bar - lugares que são talvez um porto seguro nesta
Fortaleza que o cronista, muitas vezes, não reconhece mais.
Na crônica cabem o amor, o sonho, a
solidão, a cidade, os amigos, a janela de estimação, o gato gordo do
telhado, tardes de domingo, casais de namorados, o medo da morte, o
sonho, o pesadelo. A vida e a morte. O preconceito e o futebol:
"Todo bom goleiro ou é doido ou é veado", escreve, em Os goleiros. E
se retrata, adiante, porque o goleiro "traz no corpo asas embutidas
e dentro do campo, afora a bola, é o único que voa". Ele, torcedor
do Botafogo, porque é o mesmo time de preferência do pai. Aliás, a
família, em particular a figura paterna ("o autor dos meus dias"), é
outra constante na sua prosa cotidiana. Assim como os amigos, o
Augusto Viana, o Soares Feitosa, o Alano Freitas, o Moita, o Garçom
do Tururu - volta e meia batendo ponto sobre a folha branca ao
telecoteco da decantada "underwood" de estimação.
Algumas crônicas, poucas, são na
verdade contos, ou esboços de. É o caso da engraçada O doutor e a
jumentinha e também Telefone, retratos, escorpião. Outras, poucas
também, pecam pelo desgaste e caquexia das imagens, como, por
exemplo, em De concavidades e reentrâncias, na qual o escritor,
língua ferina ao despejar petardos contra a abundância de poetas da
cidade, escreve uma frase como a horrenda "desvirginam os líquidos
côncavos das cavernas". Mas o erotismo implícito e explícito de sua
prosa também tem momentos de rara beleza, como se vê em Crônica
surrealista, em que ele compara assim uma relação sexual - "a
decifração do corpo no alfabeto da vertigem". Ou em Um gosto de
infância, quando ele fala da "anarquia geométrica das atas". E
ainda, numa das mais bonitas crônicas do livro, Auroras dentro de
mim, quando diz: "Claro que o dia estava lindo, eu estava eu. Isso
não posso negar, mas daqui a dez minutos, juro que não sei". Na
próxima semana, Aves de Arribação, uma novela do escritor Antônio
Sales, criador da famosa Padaria Espiritual.
SERVIÇO
Moça com flor na boca - Crônicas de Airton Monte. Coleção
Literatura no Vestibular, publicação CCV/UFC. À venda na livraria da
UFC (na av. da Universidade, ao lado da Reitoria da UFC) e livrarias
Livro Técnico. R$ 11,00.
TRECHO
Quando quero me perder de vista, ando
por minha cidade com olhos de turista. Torno-me assim um ilustre
desconhecido caminhando por uma estranha Loura Desposada do Sol, que
nem loura é, mas morena jambo feito Iracema.
Nessas raras ocasiões de
distanciamento, não mais a chamo de Cidadezinha, mas Rainha do
Ignoto, aquela que não conheço, a distante, a longínqua de mim e não
é minha cidade de qualquer ponto de vista.
No centro, deserdados da infância,
meninos cheirando cola, se anestesiando de tudo que os cerca e os
isola de nós, cidadões comuns. Nos apartamentos classe média,
meninas cheirando cocaína, herdeiros dourados do supérfluo.
E eu, transido de remorsos inúteis,
cúmplice do descaso, bebendo pelos botecos pra esquecer desses
garotos com cara de velho, cheios de ódio por tudo e por todos,
inclusive de mim e de sua inútil revolta, suas transgressões
inúteis.
Feito um Jonas suburbano, vou sendo
lentamente engolido por essa baleia equatorial, atlântica. No
entanto, sei que a cidade faminta, voraz, sabe sou meio indigesto e
me regurgita e me devolve a mim, Odisseu urbano.
Enquanto fujo, lépido e fagueiro,
desse encontro cara a cara com a cidade, sinto-me apenas um sonhador
cansado com a utopia da fraternidade universal. De besta, creio ser
ainda a alma de um homem do tamanho exato de seus sonhos, o que
absolutamente não significa que sou um grande homem.
(...)
Tristes dos se conformam com o pão e o
circo, dos que se resignam, se amofinam vendo a banda passar e nada
ousam, nada fazem, nada mais anseiam que a ilusória segurança dos
bens materiais e pensam que o policial da esquina virá em seu
socorro.
Coitados dos que acreditam piamente
que a experiência sempre vence o inesperado e que Deus continua
sendo brasileiro. Comigo não, violão. Comigo o negócio é diferente,
o buraco é mais em cima, bem do lado esquerdo do peito. Porque, como
Maiakovski, sou todo coração, ponto final ou reticência.
Extraído da crônica De
Palavra em Palavra, pg. 27
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