Eleuda
de Carvalho
A consistência da geléia
(Fortaleza, Ceará, 02 Abril de 2005)
''Leve um homem e um boi ao
matadouro. O que berrar mais na hora do perigo é o homem, nem que
seja o boi''
Torquato Neto
Enfim, o poeta, jornalista, letrista,
ator etc etc Torquato Neto mostra-se de corpo inteiro. Ou quase. Em
dois volumes. Neste, de subtítulo ''Geléia Geral'', estão reunidos
os artigos que ele escreveu no Jornal dos Sports, Correio da Manhã e
Última Hora, entre 67 e 72. Um recorte do Brasil, de dentro dos
subterrâneos (entre a repressão e a loucura). Ou: da polpa até o
caroço.
No Jornal dos Sports, Torquato
escreveu sobre música, em particular. De março a setembro de 1967.
Tinha 23 anos. Ler Torquato é dar um mergulho na agitação
tropicalista, no olho do furacão do Cinema Novo, e abrir feridas
cicatrizadas desde a anistia. Mas, por enquanto, o clima ainda
estava ameno e Gilberto Gil finaliza seu primeiro LP, Louvação, tema
da segunda coluna. Complementada por notinhas. Numa delas, Torquato
lenha Wilson Simonal, cantor de rock (?), ''aquele obsoleto gênero
rebolativo''.
Afora a crítica de música, adianta
lançamentos, mete o sarrafo nas ''sociedades arrecadadoras''. E
denuncia apropriações indébitas. Veja: Sérgio Mendes nos Estados
Unidos (onde está até hoje), faz sucesso com ''Tristeza de amar'',
de Geraldo Vandré e Luiz Roberto, mas o crédito é de um tal
Maximilian Sanchez. Por aqui, Paulo Diniz toca em toda rádio ''O
chorão'', de Edson Melo e Luiz Kler. ''Essa eu manjo: chama-se
'Don't you know', é de Millie Small e Tony Thomas. Tenho o disco e
mostro a quem interessar''. Este é Torquato Neto, boneco! Vai
encarar?
Em junho de 71, escreveu, aos sábados,
a coluna Plug, no Correio da Manhã. O tema é, principalmente,
cinema. Descreve Glauber Rocha, filmando numa rua poeirenta em Roma,
uma cena pra Godard. Na cena seguinte, o cineasta baiano já está na
África, filmando O Leão de Sete Cabeças. Cinema terceiro mundo.
Torquato Neto inverte os planos: ''uma câmera na mão e uma tese à
guisa de desculpa'', atira.
No jornal Última Hora, de Samuel
Weiner, Torquato meteu a colher em Geléia Geral, de agosto de 71 a
março de 72. À crítica soma-se a poesia, fragmentos de romances,
pedaços de sua vida, os cacos de sua mente atormentada. Governo
Médici. Repressão no auge. Torquato desafia o coro dos contentes.
''Ligue o rádio, ponha discos, veja a paisagem, sinta o drama... o
lado de fora é frio. O lado de fora é fogo''. De Glauber: ''Eu quero
que o cinema seja feito por todo mundo''. Ode ao superoito, por
Torquato: ''pode ser o fino. É fácil de manejar. Barato. Cinema é
muito chato. O quente é filmar''.
Apresenta novidades, a música de Zé
Rodrix e Ruy Maurity, o pop udigrúdi dos Novos Baianos, as bandas
Som Imaginário e A Bolha. Chegando nas lojas, o LP do The Who,
''quente'', e o Pink Floyd. No teatro, sugere ''Hoje é dia de
rock'', de Zé Vicente. Em outra coluna, título bizarro, provocativo:
''Brasil, terra de exus''. É que seu Sete da Lira esteve nos
programas de Flávio Cavalcanti e Chacrinha. Ao vivo. As senhoras
católicas não gostaram nem um pouco. Médici toma providências.
Censura prévia. ''Já pensaram a Buzina em videotape? A Discoteca
arrumadinha? A censura agora é total na televisão do Brasil''.
Quer saber? A poesia salva. ''Escute,
meu chapa: um poeta não se faz com versos. É o risco. Difícil é não
cortar o cabelo quando a barra pesa. E fiquem sabendo: quem não se
arrisca não pode berrar''. ''Ponha a boca no mundo: assim não é
possível. Atenção para o refrão: tudo é perigoso etc''. Era de
Aquário. ''Isso tem mesmo alguma importância? Se correr o bicho
pega. Se ficar o bicho come''. E publica a profecia de Isaías sobre
a destruição de Jerusalém.
Do Nordeste. ''Hora do Almoço'', de
Belchior, ''fazendo um sucesso dos mais bacaninhas''. Sessão pipoca
com espanto: ''Foi liberado com apenas dois cortes o filme novo do
Zé do Caixão. Bom e barato. O homem é gênio''. De Nova York, Hélio
Oiticica escreve pra Geléia: ''Estou ouvindo Ângela Maria cantando
Adelino Moreira''.
A barra, cada vez mais pesada. ''A
morte ataca''. ''Incontrolável perseguição de que Chico Buarque é
vítima, hoje em dia, pelo obscurantismo deste país milongueiro.
Timidez agora é má vontade? Por quê?''.
Geléia para o Dia de Finados.
''Thiago, meu filho, continua crescendo e reparando''. Na outra
linha, a queixa: ''abaixo a psiquiatria dos salões e dos hospícios.
A psiquiatria é repressiva''. Ele que o diga. Ele, que roeu o duro e
amargo do caroço. Lucidez demais também é loucura. ''Quem asfixia a
música popular brasileira? Além da indústria fonográfica. Don e
Ravel. O sucesso dessa gente asfixia. A parada de sucesso não sabe
de nada''.
Ele já deu a partida. Acenou um lenço
branco. Cifrou adeuses nas páginas do jornal. ''Quando estiver
assim, não me apareça. Cresça e desapareça da minha frente, Thiago,
meu filho''. E: ''Miedo de perder-te, adiós amor que já me voy, e
muito em breve eu parto mesmo... Faz quatro noites que não durmo.
Meu coração despedaçado não aguenta mais. Até que a morte me separe
e reintegre''. E: ''quero porque quero o meu baião da solidão. Estou
cansado''. E tchau.
Leia
a obra de Torquato Neto
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