Eduardo Diatahy B. de Menezes
A
''catástrofe'' sem retorno de René Thom
O sociólogo Eduardo
Diatahy B. de Menezes presta homenagem ao matemático francês René
Thom, que morreu em outubro do ano passado, aos 79 anos. René Thom
foi autor da teoria da catástrofe, fundamental para a teoria da
complexidade
[04 Fevereiro]
O derradeiro número da Revista
Latino-americana de Psicopatologia Fundamental traz lúcido artigo do
psicanalista Juan Manuel R. Penagos, que demonstra, pela vida e obra
do matemático alemão Georg Cantor (nascido porém em S. Petersburgo,
Rússia), a relação entre sua produção matemática e o surgimento de
sua psicose. Sabemos que, além de genial criador da teoria dos
conjuntos e a dos números transfinitos, ele, como Nietzsche, passou
seus últimos anos num manicômio. Bertrand Russell também relata que,
após o longo esforço de produção, com Whitehead, do célebre
Principia Mathematica, sentiu-se tão abalado mentalmente que passou
anos a cuidar de coisas mais pedestres. O caso de John Nash (Nobel,
1994) parece ainda mais trágico.
Todavia, quero mais aqui é fornecer
uma nota de admiração por outro genial matemático, só que este
mergulhado no profundo empenho de compreender o real em suas formas
e transformações. Competente em seu campo, mas distanciando-se da
esquizofrenia de puras axiomáticas e formalizações (ele dizia com
humor que sua última demonstração rigorosa fora sua defesa de Tese),
este grande espírito do século XX, filósofo da ciência e humanista
de largo horizonte, tinha os olhos, a mente e os sentimentos
voltados para formulação de modelos teóricos que dessem conta de
aporias fundantes das matemáticas e o inelutável vínculo destas com
a realidade. René Thom morreu em 25 de outubro do ano passado, aos
79 anos, em Bures-sur-Yvette (Essonne), perto de Paris.
Compreende-se que nossa imprensa não
saiba como penetrar no cercado dos matemáticos: de fato, o único
registro que vi a respeito foi pífia notícia d'O Globo, no dia 31
daquele mês, a ''informar'' ser ele considerado o pai da teoria das
catástrofes, ''modelos para estudo de fenômenos sociais sem relação
aparente'' (sic) aplicáveis em biologia, física, lingüística e
psicologia. No espaço que me resta, tentarei dizer algo menos banal.
Como Cuvier, ele nasceu
em Montbéliard (França), a 2 de setembro de 1923. De suas muitas
entrevistas, há uma saída em livro (de Jacques Nimier:
Entretiens avec des Mathématiciens, ed. Institut de
recherche sur l'enseignement des mathématiques de Lyon, 1989), onde
revela sua precoce vocação matemática, pois aos 11 anos, momento em
que meninos dessa idade ainda se ocupam em jogar bila, ele transpõe
os teoremas conhecidos da geometria de R3 para a de R4 e diz ter
tido já então razoável intuição do espaço a quatro dimensões
(comprimento, largura, altura e tempo). Concluída sua formação
secundária em meio aos percalços da II Grande Guerra, migra para
Paris, ocupada pelos nazistas, e entra para a Escola Normal Superior
(1943), com a idéia de estudar filosofia da ciência, mas é
encaminhado para a matemática, concluindo sua formação aos 23 anos.
Em seguida, acompanha o curso de seu mestre Henri Cartan, na
Universidade de Estrasburgo e se orienta para a topologia algébrica,
já então ocupando um posto de pesquisador do CNRS (espécie de CNPq
francês), e termina seu doutorado na Faculdade de Ciências de Paris,
cinco anos mais tarde. Como bolsista, realiza estudos no Graduate
College de Princeton (USA). É nomeado (1953) professor adjunto em
Grenoble e no ano seguinte ensina na Faculdade de Ciências de
Estrasburgo até 1963, quando ascende a professor permanente do
Instituto de Altos Estudos Científicos (IHES) de Bures-sur-Yvette
até 1988, ao tornar-se professor emérito sem descontinuar sua
atividade. Por seus trabalhos em topologia diferencial, em
particular a teoria do cobordismo (estudo das bordas), é laureado
com a Medalha Fields em 1958, o equivalente ao Nobel dos
matemáticos. No final dos anos 60, começa a sistematizar o que veio
a ser conhecido como teoria das catástrofes elementares e publica em
1972 os resultados desses trabalhos no seu Stabilité Structurelle et
MorphogenŠse, que o faz conhecido de um público maior. Em 1976,
torna-se membro da Academia de Ciências da França e mais tarde da
Academia Americana de Artes e Ciências.
A noção matemática de catástrofe nada
tem a ver com a conotação trágica de senso comum. No curso Enrico
Fermi que deu na Escola Normal Superior de Pisa (1970) e que compõe
os 5 capítulos iniciais de boa coleção de textos seus (ModŠles
Mathématiques de la MorphogenŠse, Paris, UGE, 1974), assinala que
''a realidade se nos apresenta como fenômenos cujas formas são
percebidas por suas descontinuidades qualitativas'', para logo
indagar: por qual processo o espírito chega a postular a permanência
de um mesmo ser por trás da infinita variedade de seus aspectos? Daí
nascem árduas questões de natureza fisiológica e filosófica. Ora, se
toda ciência é o estudo de uma fenomenologia e se fenômeno é aquilo
que se manifesta num espaço, há assim uma precedência da vista sobre
outros sentidos. Cita então a malícia epistemológica de Heráclito:
''Se o universo fosse só fumaça, nós conheceríamos pelas narinas.' E
acrescenta mais adiante este verso do poema ''A Serpente'', de P.
Valéry: ''... o universo não passa de um defeito / Na pureza do
Não-ser!', para enfim sustentar que a ciência nasce do dia em que
erros, fracassos, desagradáveis surpresas nos levam a olhar o real
mais de perto.
Em 1977, explora os
desdobramentos de sua concepção em seu Stabilité Structurelle
et MorphogenŠse - essai d'une théorie générale des modŠles
(Paris: Interédition). Em obra posterior, Paraboles &
Catastrophes - entretiens sur mathématique, science et philosophie
(Paris, Flammarion, 1983 (há tradução portuguesa em
Publicações D. Quixote, Lisboa, 1985), busca esclarecer
mediante tais discussões os procedimentos hermenêuticos
(''parábolas'') que podem tornar inteligíveis fenômenos de
descontinuidade (''catástrofes'') que surgem de modo brusco e
imprevisível em sistemas de aparência estável (erupção de um vulcão,
o desabamento de uma falésia, conflitos sociais ou psicológicos
etc.). Ele se encaminha assim na direção do que chamará de uma
semiofísica.
Mas o que faz o encanto desse
matemático, antigo latinista e helenista, é que ultrapassa seu
platonismo inicial rumo ao aristotelismo da maturidade, que o leva a
conceber sua teoria das catástrofes como tentativa de explicar as
formas (por exemplo: a simetria bilateral dos vertebrados, a
embriologia, etc.) em sua singularidade, em sua gênese e nos
conflitos que lhe dão origem, bem como pela formulação de modelos
que compreendam as mutações imprevistas que alteram sua relativa
estabilidade. Exemplo simples é o resfriamento da água que a
transforma em cristais de gelo. Eis por que se volta para a física,
a geologia, a biologia, a semiótica, a psicologia, a poesia, etc, na
busca de uma teoria mais geral que possa explicar catástrofes tais
como rebeliões prisionais, quebra da Bolsa, terremotos e rupturas no
equilíbrio de coletividades, não como destruição, mas em sua dupla
função de estruturar transformações dos seres e de manter a
continuidade necessária à compreensão, já que o conflito é o pai de
todas as coisas e qualquer que seja a forma esta nasce do confronto
de forças antagônicas. Quando sublinha que a distinção
'contínuo/descontínuo' está na base de nossa percepção do mundo, é
que pretende acentuar o qualitativo, visto que o que deve ser
considerado como o fim essencial da atividade teórica do cientista é
a simplificação da descrição, a redução do arbitrário desse
procedimento, desiderato que tem evidentes relações com a
causalidade e o determinismo. Ninguém sabe porém de fato se a
natureza é determinada ou não, nem é fácil distinguir entre
descrição e explicação: a clássica lei da gravitação de Newton é uma
descrição ou explicação? Todavia, o acordo que se observa
freqüentemente, em várias disciplinas, entre uma morfologia empírica
e uma estrutura matemática levanta um dos problemas clássicos da
filosofia das Ciências. E o modelo das catástrofes fornece um meio
de explicar a presença das estruturas, justificando dinamicamente
sua aparição e sua estabilidade, bem como permite compreender a
autonomia estrutural de cada nível de organização. Ele reivindica
assim uma ontologia para a ciência. Não nutre admiração pela
filosofia analítica (o Wittgenstein da segunda fase), e dizia: ''Se
tivesse que escolher entre rigor e significação, não hesitaria por
esta.'
Evidentemente, sua obra
e concepções, na medida de sua divulgação, suscitaram enormes
polêmicas e refutações, sem que isso tenha impedido a ampla
influência que exerceu sobre o pensamento contemporâneo, mesmo em
áreas como a lingüística e o imaginário (teoria da literatura, da
narrativa, etc.), para mencionar domínios mais distantes de sua
especialização. Deste sábio que introduziu a arte e a poesia na
ciência, era tal a riqueza de idéias, que cativou não só cientistas
mas ainda artistas, como um Salvador Dali, que o homenageou numa
tela de 1983 e asseverou que ''não é possível encontrar uma noção
mais estética que a recente Teoria das Catástrofes de René Thom, que
se aplica tanto à geometria do umbigo parabólico como à deriva dos
continentes''; ou, treze anos mais tarde, a homenagem que lhe presta
o compositor Pascal Dusapin. Ele deixa uma obra monumental,
numerosos registros de rádio e uma entrevista filmada por Jean-Luc
Godard em 1976. O IHES, instituição a que deu o melhor de si até
antes da doença que o abateu, coligiu seus artigos e livros num
total de 8.000 páginas, que serão gravadas em CD-Rom para difusão
por subscrição.
Lamento pessoalmente a perda desse
espírito instigante e criativo, que declarava em sua socrática
ironia: ''A importância da New Mathematics reside principalmente no
fato de que nos faz pensar na diferença entre o disco e o círculo.'
E ele completava noutro texto: ''O verdadeiro problema que o ensino
das matemáticas deve enfrentar não é a questão do rigor, mas o
problema da construção do sentido, da justificação ontológica dos
objetos matemáticos. (...) e seria bom lembrar a nossos colegas que
é uma lei de nossa sociedade que as coisas importantes não são
aquelas de que aí se fala; em nosso tempo, mais ainda do que no
tempo de Nietzsche, as idéias novas chegam a passo de tartaruga.'
Eduardo Diatahy B. de Menezes é professor titular de
Sociologia da UFC e da UECE, membro do Instituto Histórico do Ceará
e da Academia Cearense de Letras.
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