Edna
Menezes
A imagem poética de Silva Muzi
“E eu me crio com um traço da pena
Mestre do Mundo, Homem ilimitado.”
(Pierre Albert-Birot)
Para um crítico literário julgar uma obra poética há a necessidade
de ser severo, às vezes até apresentando, segundo Bachelard, às
avessas um complexo que o uso excessivo depreciou a ponto de entrar
para o vocábulo dos homens de Estado. Afirma ele que, o crítico
literário, assim como o professor de retórica, sempre sabendo,
sempre julgando, fazem muito bem um simplexo de superioridade (1988)
Não obstante às observações rigorosas de Bachelard, cabe ao crítico
literário o papel de analisar e julgar conforme sua formação e seu
gosto pessoal. E nesse ponto revela-se o leitor que não só
desempenha seu poder de criticar, mas também de apreciar e reviver
suas tentações de ser poeta. Esta assimilação está em nós, leitores
apaixonados pela literatura e quando a página lida é bela demais, o
desejo renasce.
Nessa perspectiva de crítico-leitor coloco-me, sem pretensões
herméticas, a olhar alguns poemas do livro “O Deserto de um Homem”,
obra do poeta Silva Muzi. O poeta que é mineiro de Montes Claros e
reside em Brasília, é autor de dois livros, este em questão e ainda,
“Introspecções Poéticas”.
Parece-me que analisar a obra desse poeta como um todo é arriscar-se
a cair no vácuo nebuloso do noturno, no labirinto da palavra de
poeta jovem, voltado para as abissais profundidades do inconsciente
de um ser atormentado pelas imagens. Portanto, para analisar, ou
criticar essa poesia se faz necessário ir longe, descer tão
profundamente até alcançar as ressonâncias sentimentais com que,
mais ou menos ricamente – quer essa riqueza esteja em nós ou no
poema – se forja a palavra poética.
Dessa forma o ideal é buscar isolar as palavras através de sua
transubjetividade, e tentar compreendê-las através das suas próprias
imagens, buscando, assim sua essência, levando em conta a partida da
imagem na consciência individual e singular do poeta.
A palavra de Silva Muzi, em sua simplicidade, não precisa de um
saber para ser lida, basta apenas ao leitor, o preparo para receber
a dádiva de uma consciência ingênua, em sua expressão em linguagem
jovem, como, por exemplo, quando ele diz “Uma cor fria/É uma lâmina
que corta...”, aproximando assim, sua imagem poética às imagens
poéticas do poeta-cantor Cazuza, que ao dizer “meu cartão de crédito
é uma navalha” uniu à sua poética as palavras sociais do poeta João
Cabral de Melo Neto. E assim Silva Muzi completa o fio da poesia no
tempo, fazendo eclodir os dois poetas em apenas um verso, ou em
apenas uma imagem grandiosa.
Nessa tentativa de dar continuidade ao fio dourado da eterna poesia,
Silva Muzi resgata também o estilo de Gregório de Matos, não por sua
sátira velada, mas em seu estilo estético de retorno da última
palavra de um verso no início do subseqüente, assim, no poema
“Segredos da Solidão”, a retomada se faz de forma a marcar o eterno
retorno do tempo. O tempo da poesia e o tempo do homem, pois,
segundo Anatol Rosenfeld (1972), o homem não está para o tempo, o
homem é o tempo. Portanto, na palavra poética de Silva Muzi o tempo
se fragmenta e suas imagens se remetem a uma atemporalidade que faz
indefinido o passado, o presente e o futuro. E, assim como Fernando
Pessoa, faz do passado o presente, do presente o passado, e do
futuro o presente e o passado em um mesmo magma. Isso é perceptível
quando o poeta escreve “Ontem tive tantas lembranças! /Ontem eu
chorei e cultivei saudades, /Ontem eu era o ontem/Um homem e um
passado”. Rompendo totalmente, nesses versos, o diáfano véu do tempo
e deixando brotar a imagem homogênea da palavra.
Se fosse preciso procurar por onde o poeta Silva Muzi faz explodir
suas imagens poéticas talvez devêssemos buscar uma palavra um pouco
em desuso, que se chama alma. Para ler a imagem desse poeta é
preciso que o ledor se lance no centro do Ser, no coração, no ponto
em que tudo se origina e toma sentido: eis o espaço ocupado pela
palavra esquecida ou reprovada, a alma. A alma do Ser no mundo,
tomando aqui o conceito de Ser do filósofo Heiddegar.
Observa-se que nos poemas de Silva Muzi manifestam-se forças que não
passam pelos circuitos do saber, pois se trava, através de suas
palavras-imagens, uma dialética da inspiração e do talento, que vão
formando os matizes poéticos a partir do devaneio até sua execução
final. Nesse ponto, no poema “Na tela da TV”, há alguns versos
“Olhando um mundo/De cópias. [...] De presença sem cor, [...]/Que
reflete o vazio...” que, por si só, dizem que o devaneio é uma
instância psíquica que, freqüentemente, se confunde com o sonho, mas
que, por se tratar de devaneio poético, frui não só de si próprio,
mas prepara imagens íntimas para o deleite poético de outras almas.
Nesse contexto, diante das imagens elaboradas pelo poeta é possível
dizer que, mesmo dentro de sua noite poética, sua palavra possui uma
luz interior, aquela luz que a visão interior conhece e traduz ao
mundo exterior como um reflexo da alma, descrito por Pierre-Jean
Jouvre como a alma inaugurando uma forma. E assim, a poesia aparece
no verso de Silva Muzi como um fenômeno da vida efêmera da
expressão.
Portanto, ao iniciar esse ensaio falando a respeito do crítico
literário a intenção é, exatamente, dizer que a menor reflexão
crítica, se elaborada com descuido, a respeito desse poeta pode
estancar esse impulso criador que se coloca a serviço da alma e
desvenda o primitivismo da imaginação e do sentimento.
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