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Jornal do Conto

 

 

Edna Menezes


 


O estranho visitante

 

 

Era um entardecer de vermelho ocaso na pequena currutela do interior de Mato Grosso. As ruas, se é que poderiam ser chamadas assim, sendas entre grotas seria mais adequado, tingiam-se de vermelho-pó ao menor movimento. Há tempos não chovia, a terra estava seca e poeirenta. Às vezes, surgia entre os carrapichos uma lagartixa com feição assustada, mas tratava logo de se proteger, enveredando novamente no capim. Das árvores o cantar tinido das cigarras formava um acorde de vida. A natureza ali era perfeita criação de Nosso Senhor.

Do quintal, que varríamos com afinco, minha mãe e eu avistamos ao longe um sinal de poeira, seria um redemoinho, não, com certeza estava se aproximando alguém a cavalo. Ficamos olhando, testa franzida, forçando as vistas. O cavaleiro se aproximou e quão foi minha alegria que rapidamente gritei aos meus irmãos.

_ Venham ver quem está chegando! É tio Quirino. E todos festejamos ao seu redor como pássaros desconjurando cobra.

Tio Quirino, que raramente aparecia, fez gracejos com todos. O sol se pôs, a noite negra cobriu toda a cidade. Dentro de casa, o fogo do fogão à lenha era agradável, e o cheiro da comida melhor ainda. Os adultos proseavam, parecia assunto perigoso, pois falavam em voz baixa. O tio contava sobre matadores de aluguel e uma tal lei de Mato Grosso. Apesar de não entender o teor da conversa, nada escapava aos meus ouvidos curiosos. Sentada em uma longa e confortável banqueta, eu esperava e observava. Após o jantar, enquanto mamãe lavava a louça, o tio continuava a conversa com papai, contava-lhe que estava a serviço e que iria para os lados de Cuiabá, capital do estado. Para meu pequeno conhecimento de mundo e naquele remoto tempo, o local me parecia de uma distância inimaginável. O tio dizia que sua missão duraria muitos dias e não tinha previsão da data de retorno. Nós, crianças, nos aproximamos do tio, na butuca de uma de suas mirabolantes histórias. Ele era grande contador de causos.

Percebendo a nossa ansiedade começou a serenata causística. Contou-nos histórias de fantasmas, aventuras em canaviais e até uma luta que travara com um lobisomem. Os causos eram assustadores, mas isso só fazia aumentar a admiração infantil que nutríamos por tio Quirino.

_ Chega de causos por hoje, hora de dormir!- Ralhava mamãe.

Naquela noite, dormi um sono atribulado, acordei com o cantar dos pássaros e o tio contador de causos já havia partido. A vida continuou normal: escola, brincadeiras de caça às cigarras, que diga-se de passagem era a que eu mais gostava, e longas tardes outonais varrendo as folhas secas caídas das árvores ao chão. Passados uns bem contados dois meses, e novamente em uma tarde empoeirada vimos o redemoinho no caminho, e logo ouvimos o tropel do cavalo, era o tio Quirino. Voltava de sua missão e parava para pouso na casa dos parentes. Apeou do cavalo, levou-o para os fundos do quintal, tirou o alforje da garupa e veio para dentro. Assim como da outra vez, o viajante foi muito bem vindo, mas algo estava diferente, pois, nós, as crianças ficamos muito curiosos com o novo cavalo do tio. Era um cavalo baio, de belo porte e muito impaciente. Mas não era só isso. Então, desta vez, não rodeamos o tio e sim o cavalo, este sim parecia estranho. Com meu espírito curioso, fiquei sentada no balanço de corda dependurado na velha mangueira, olhando para o cavalo e matutando. Investiguei o animal por todos os ângulos. Ele parecia um pouco cismado. De repente percebi algo. Que estranho! o tio não havia tirado toda a bagagem, restava um saco de estopa dependurado na sela. Dentro dele parecia ter uma bola, ou seria uma pedra, ou uma moranga, espécie de abóbora arredondada?. É, talvez fosse uma moranga que ele ganhou lá pelas bandas de Cuiabá. Naquela noite a reunião foi entusiasmada, o contador de causos usou e abusou de seu dom. Contou-nos sua incursão pelas terras ainda virgens do norte. Contou em detalhes sua aventura na caça de uma pepita de ouro que pesava quase um quilo, e por ele desencrustrada das grotas de Poconé. Contou-nos que cavou, cavou até encontrar, mas houve muita perseguição, muitas brigas, tiros e esfaqueamentos. Entusiasmada com o causo da pedra reluzente comentei:

_Então é ela que o Senhor traz no saco de estopa, lá no cavalo? Porque a deixou lá se ela é tão importante e responsável por tanta discórdia? Deve ser muito valiosa. Ele respondeu, um pouco desenxabido a princípio e brincalhão depois:

_Não pequena, lá no cavalo não é a pedra, esta eu perdi no meio da briga. E, no saco tem um segredo, não posso contar para crianças. Deixe de ser tão curiosa. Vou contar um causo que você vai gostar muito. Contam os antigos que lá pelas bandas do norte passou um homem com uma caderneta na mão. O homem só vestia roupas claras, anotava na caderneta tudo que via e ouvia e gostava muito de conversar com o povo da roça. Segundo eles o homem escrevia livros, era muito misterioso, não contava nada de sua vida e que era muito curioso, parecia um fugitivo, da lei ou do mundo, acho que era igual a você, queria conhecer e dar nome as coisas. Assim, ouvindo histórias e olhando o fogo tornar-se acinzentado, as horas foram se passando, e eu até me esqueci do cavalo, também, com tanta parlenda e causos engraçados, qualquer um se esquece de tudo. E como sempre ouvimos o velho refrão:

_ Chega de histórias por hoje. Cama para os menores! Era mamãe. Fomos dormir, mais uma vez o visitante me causou pesadelos. Em meus sonhos eu me via ao redor do cavalo de tio Quirino. Abria a saca de estopa e olhava, o que via me deixava horrorizada, era uma cena deveras assustadora. Lá dentro a cabeça de um ser humano, um homem, talvez. Os olhos esbugalhados e os cabelos desgrenhados. Enquanto isso, antes mesmo do nascente do sol o tio partia, como ele mesmo dizia, picava a mula. Com ele seu estranho fardo dependurado na garupa do cavalo. No dia seguinte, no quintal, só os comentários sobre os causos do tio. Ele demoraria para voltar. Em meu mundo de criança, totalmente esquecida dos pesadelos, tudo era novamente brincadeiras. Entretanto, não sabia eu que o meu sonho era o reflexo da realidade.