Efer Cilas dos Santos Júnior
A Vida em Fichas
Se os juros
caírem, talvez não haja recessão no país... Se os juros caírem,
talvez não haja recessão no país... – repetia mentalmente
Auriculinus Silvério, enquanto corria em direção ao seu quarto e
sala em Copacabana, derrubando duas bancas de canetas falsas de
camelô e chutando, involuntariamente, dois malteses, para horror e
desespero de seus donos.
Ao abrir a porta
de sua casa foi direto a uma das fileiras de seus arquivos e retirou
a ficha em “Se” e, sofregamente, escreveu o que tinha na cabeça.
A sua sala era
cercada de arquivos de ferro, desses que se vê em escritórios
antigos, do chão ao teto, abarrotados de fichas, escritas pelo
próprio punho com frases como esta que ouvia nos lugares públicos.
Sua fraqueza
eram as frases que para ele encerravam algum serntido, que poderia
usar em suas próprias conversas depois. Anotava-as, cuidadosamente,
em seus papéis, e os lia sempre para nunca esquecer.
Desde pequeno
que tinha este “grande hábito” como cansava de chamar para si mesmo
o seu modo de agir.
Quando pequeno
era feio, desengonçado, fanho e tinha um nome que lhe era motivo de
chacota entre as outras crianças, que lhe fora dado por seu pai
devido às orelhas de abano que possuía; seu pai sempre fizera troça
dele, dando-lhe piparotes nas orelhas, deixando-as sempre doloridas.
Falava em tom de blague : “Ouça bem, Auriculinus !” toda vez que se
dirigia ao menino. Sua mãe totalmente dedicada ao marido e sonhando
com um pequeno Fred Bartholomew, decepcionou-se totalmente com a
criança e ficava impassível e até ria das zombarias do pai do
garoto.
Um dia,
Auriculinus estava no colégio e escutou dois coleguinhas ricos, um
filho de Deputado e o outro filho de comerciante conversarem:
- Meu pai disse
que este acidente com a Apolo 13 inviabilizará a corrida espacial e
a possível colonização da Lua.
- Sabe que o meu
disse a mesma coisa.
Foi o bastante
para Silvério guardar em sua mente este comentário durante todo o
dia e repeti-lo mentalmente nas aulas e nos exercícios de Educação
Física, nos quais era péssimo e também o “clown” da turma com seu
jeito desengonçado.
À noite,
percebeu que não tinha nem prestado atenção nas gozações de seus
colegas e se importado com os quase trinta e dois cascudos que
levara de diferentes meninos; não se magoara também com o riso e os
cochichos das meninas.
Na mesa de
jantar, o pai comentava com a mãe o caso triste da Apolo 13 e o
heróico salvamento de seus tripulantes, quando inesperadamente
Auriculinus disparou:
- Este acidente
com a Apolo 13 inviabilizará a corrida espacial e a possível
colonização da Lua.
O pai, atônito,
olhou para seu filho, até um segundo atrás um ser minúsculo e
desprezível, um Kharma pesado que o destino lhe pusera nos ombros.
- Ouviu isso
Mercedes? Ele disse a mesma coisa que o meu chefe...Começo a achar
que este garoto não é tão ruim quanto parece. Começo a achar que
deve ter qualidades afinal.
Pronto, começara
a busca frenética de Auriculinus por frases perdidas que as
recolhia, anotava, memorizava e arquivava para repeti-las quando a
ocasião se fazia propícia.
Aos poucos
percebeu que o mesmo efeito causado com o pai e a mãe que passaram a
olhá-lo com temor e respeito se repetia em todos os ambientes que
freqüentava : os colegas pararam de zombar dele, as meninas
(algumas, diga-se a verdade) passaram a suspirar quando ele falava e
até seus professores a vê-lo com admiração. Suas notas subiam, assim
como seu prestígio perante seus pares.
Com o fim do
colégio, optou por um concurso público, desses de múltipla escolha,
pura memória, e passou em quinto lugar para orgulho dos seus.
Passou também a
ser admirado por seus inúmeros colegas que o citavam como referência
absoluta e outros que o viam com desprezo e desconfiança. O número
dos primeiros era bem maior felizmente.
Cresceu e não
era mais pequeno e cheio de defeitos físicos: era agora adulto e
cheio dos mesmos defeitos ...
Tudo isso se
recordava sentado em seu pequeno apartamento, única herança de seus
pais, que morreram felizes de ter dado ao mundo tão precioso
rebento.
Estava,
entretanto, triste. Muito triste mesmo.
Começou a se
interessar por Beatriz, uma moça linda que trabalhava na mesma
repartição. Ela era culta, viajada, discreta e tinha dois olhos
negros de um brilho incomum, que parecia terem vida própria.
Ela conversava
com facilidade com as pessoas, pulando de um assunto a outro,
dominando todos; parecia saber tudo. Ela ouvia suas frases decoradas
e sua participação nas conversas com visível autocontrole e
expressão de quase piedade e um olhar que dizia tudo : “ sei quem é
você; sei a extensão de sua cultura”.
Ele já passara noites em seu arquivo buscando palavras bonitas que
tenha ouvido, palavras doces e penetrantes para repeti-las e
conseguir impressionar a garota, mas tudo em vâo; ela nem se
impressionara.
Passou a noite
em claro e foi ao trabalho na manhã seguinte, sonhador, pensando em
Bia sem parar um momento.
Quando chegou no trabalho, estava uma discussão sobre a situação
econômica do país que a todos preocupava e Bia era a mais inflamada
:
- Nunca vi um
país em que houvesse tanto desemprego, tantos profissionais
verdadeiramente qualificados sem uma boa colocação, ou
desempregados, ou em subempregos.
- Dê um exemplo-
disse Valentim, gordo e bonachão que se julgava o sabe-tudo, o mais
inteligente do escritório, o que bem era verdade, porque seu mundo
era tão pequeno que, neste mundo, ele deveria ser o maioral...
- Por exemplo,
eu. Sou uma historiadora e cientista social e estou aqui neste
emprego público carregando processos inúteis que nunca serão
resolvidos, única e exclusivamente por não ter oportunidade de coisa
melhor...
O silêncio se
fez com essa declaração e todos concordaram. Auriculinus achou que
era sua grande oportunidade :
- Se os juros
caírem, talvez não haja recessão no país... – disparou.
Todos o olharam
com uma expressão semelhante a de seu pai, como da primeira vez...
Beatriz olhou
para ele e disse:
- Tem razão Auri;
tem muita razão e para que isso aconteça cabe a nós também fazermos
nossa parte; compreendi a profundidade de sua afirmação.
Daí para o
namoro e o noivado foi um pulo, pois ambos eram solteiros e sozinhos
no mundo. Auriculinus relutava apenas em levá-la ao seu apartamento
e que ela visse seu enorme conjunto de fichários, mas não teve outro
jeito e acabou por apresentá-la a suas fichas, a que ela exclamou:
- Não acredito!
Você faz anotações dos livros que lê! Meu Deus é inacreditável a
quantidade de coisas que deve ter lido...
- Olhe, querida,
para falar a verdade não é só leitura, há muitas anotações de
pesquisa de campo que faço nas ruas.
Aquilo foi
demais para a já entusiasmada e excitada Beatriz. Auriculinus teve
sua primeira experiência sexual com a mulher que escolheu e como
sempre sonhou: no meio de suas fichas...
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