Augusto Estellita Lins
Um grande amor e suas cenas mais
tocantes
— Paizinho, uma lesma.
Ele examinou o animalzinho correto e
econômico. Nada sobrante. Nada faltante. O corpo escuro e abaulado
em destaque no piso de cerâmica cinza-claro. Lento, correr para quê?
Outras espécies velozes, ágeis, se extinguiram. O código genético
das lesmas, geração depois de outra, se comprovava.
Ele não quis interromper a cadeia.
Carinhoso quase, com metículo passou uma folha de jornal por baixo
do corpo da lesma. Levou-a, equilibrada no tapete mágico da
imprensa, até o pequeno canteiro de grania onde aterrissou. Grudada
no papel, para soltá-la arriscaria a ferisse mortalmente. Um gesto
abrupto talvez a esmagasse.
Recortou o papel em volta dela,
reduzindo a aeronave a um minúsculo ultraleve.
— Paizinho, não vai matar a lesma?
“Claro que não, princesinha. Esta
lesminha tem o direito de viver.”
Ele abraçou carinhosamente a mimosa
criança, afogando-a numa cascata de beijos. Jandira respondeu
enforcando o paizinho num abraço apaixonado.
A empregada lava o coador do café.
Ele tomou banho, perfumou-se, vestiu a
farda, a braçadei¬ra da corporação, ajustou o coldre, colocou nele a
arma calibre 38, verificou a munição. Deu a partida no Fiat Uno e lá
se foi para o trabalho.
O trânsito difícil torna enervante uma
tarefa que poderia ser um prazer de dirigir. As filas e
engarrafamentos jogam o pensamento pro ar. De repente lembra coisas,
imagens fugazes, corrupios e rodopios da mente liberta por um
segundo. O cheiro do café fresco que o pai preparava cedinho quando
era menino. A mãe fazia o resto mas o café da manhã era a rotina do
pai.
Às vezes uma angustia enorme vem de
sopetão quando está de serviço e pensa em Princesa. O mundo está
cada vez pior. Meninas da idade dela já são bolinadas e mesmo
estupradas com violência. Os meninos de hoje são os assaltantes de
amanhã. Mataria quem tocasse nela. Primeiro capava o escroto do
estuprador, depois enfiava no rabo dele uma vara que ia sair pela
garganta, acabando com um tiro entre as sobrancelhas. Um dia ainda
era capaz de escalpelar um bandido desses e cortar fora a cabeça
como fizeram os cabras do bando de Lampião.
Cumprimentou os colegas. Foi direto ao
telefone.
— Oi, Princesa. Tá bom, não esqueço.
Chama a babá.
“Pronto, seu Jorge.”
— Ajuda ela na lição, tá? Só entrega
ao escolar se for o motorista de sempre, se for outro não deixa
levar ela.
“Tá certo seu Jorge. Jandira quer
falar.”
“Um beijo, paizinho.
“Um beijão, Princesa.”
Estava na hora da reunião de serviço.
No trajeto até a sala do delegado, observando e anotando as mil
formas de atitude social, recordou uma opinião exótica do Ricardo
Bauni (“por isto não quero servir em delegacia, só em gabinete, a
delegacia faz o jogo do bandido. o bandido é um verme, vive na
escória, no meio da sujeira, em conflito consigo mesmo. a glória do
bandido é entrar na delegacia. lá, ele é o herói, o astro, no
cenário que está montado para ele sentar no trono e virar página de
manchete”).
O delegado explicava como acabar com o
arrastão dos meninos de rua que aparecem correndo em grupos de vinte
ou trinta para furtar bolsas e jóias dos transeuntes. Expunha seus
métodos:
— Não vamos se iludir. Ninguém acaba
com menino de rua. A operação “limpa-trilho” é uma operação
pedagógica. Entenderam?
O copeiro circulou com uma bandeja
cheia de xicrinhas de café quente e forte.
(Nosso delegado é um diplomata)
(Aqui a gente tem até taifeiro com
cafezinho)
(Jorge chega e logo liga pra filhinha)
(Jorge é pai-e-mãe. A mulher deu a
lata nele, ele virou pai-mãe)
Dia nublado. Meninos de rua flanando,
cheirando cola, assaltando.
No semáforo, dois garotos, um
menorzinho, outro nem tanto, ameaçam a motorista com uma lâmina de
barbear encostada no pescoço dela. A senhora tinha cometido duas
imprudências, dirigir um Escort com o vidro aberto e parar no sinal
vermelho. Jorge fechou de um lado, o Pé-de-valsa do outro. Os
garotos não reagiram, adivinhando dois canos apontados com
bala-na-agulha. Não tremiam, se sentindo protegidos pelo estatuto do
menor.
“Leva pro barranco no Cerrito”.
Tiraram a roupa deles, amarraram pés e
mãos.
Nas suas alucinações, Jorge via a
princesa sendo estuprada por meninos de rua.
— Eu gosto de ver esses garotos nus
como animais. De roupa, eles até parecem gente.
(Eu sei que qualquer dia posso morrer.
Mas a única maneira de viver é assim, assaltando).
(Este menorzinho parece até homem mais
homem, olha o tamanho dele. E as pernas peludas).
Jorge começou a bater de soco,
braçada, sopapo, pernada. O primeiro a quebrar foram os dentes,
depois o nariz. (Este é por você, Princesa. Nunca um desses moleques
vai te molestar, eles vão acabar antes disso). A pele empolou, rubra
e solta em volta dos olhos. Ele já não via nada, devia estar cego,
com os globos afundados e arrebentados.
Enquanto isto, o menino maior de
altura estava dobrado ao meio, partido em dois. Talvez já tivessem
quebrado o ilíaco e algumas costelas. Pé-de-valsa puxou o canivete e
começou a espetar e retalhar a pele das costas, dos braços.
— Vamos cortar essa bunda ao meio.
Abriu as pernas do garoto. Cortou o
saco fora, capou o birro, deu um golpe fundo que quase separou as
pernas. “Mata eles ou mete vivo dentro do saco?”. Jorge empunhou a
arma. - Morto de vez é mais seguro. Um tiro em cada um, na nuca.
Enfiaram os presuntos no saco de plástico. Jogaram ribanceira
abaixo. (Eu te prometo, Princesa, não vai sobrar nenhum pra te fazer
mal). “Ei, Jorge, onde é que tu aprendeu a capar desse jeito?”.
— No tempo da ditadura, che. Capei
mais de mil. Só recebi elogios.
Deu uma risadinha.
— E nunca freguês nenhum reclamou do
serviço.
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