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Jornal do Conto

 

 

Emanuel Medeiros Vieira


 

Só: No mundo

 

Para Roberto Motta,
in memoriam

 

Ela só deveria ter 20 anos.

—“Não tenho ninguém no mundo”, falou.

Eu bebia água numa fonte que ficava numa gruta, na saída da cidade. Era final de tarde. Periferia, poeira, terra batida, estrada vicinal que, indo em frente, desembocaria na rodovia maior.

Olhei-a. Eu estava indo embora da cidade. De tudo. Porque ela falava assim comigo? Nunca a havia visto. Só agora: morena, nariz grande, olhos negros, magra, tamanho médio, vestido humilde mas digno, estampado. Andava com chinelo. O olhar dos outros é o que sempre mais me impressiona. Mas ali, o que nunca poderia esquecer, era o seu ar de súplica. Ela não repetiu a afirmação, mas era como se eu ouvisse ainda: não tenho ninguém no mundo. Ela me olhava, pedinte, os olhos negros ansiosos me fixando. Entre tantos mortais neste mundo, ela me escolhera. E o escolhido era alguém que estava indo embora, alguém que não era fugitivo da Justiça nem da Polícia. Eu só queria ir embora, andar, mais andar, até o infinito, sair, deixar tudo. Eu só parara, quando ela chegou, para tomar um pouco d’água. E iria seguir adiante, sempre adiante. Deixava para trás tudo o que houvera antes daquele momento. Ela esperava a resposta. Como um eco, eu ouvia suas palavras: “Não tenho ninguém no mundo.” Enxuguei a boca, ofereci um pouco de água. Ela aceitou. E só agora a vi mais detalhadamente: era bonita, tão morena, quase mulata, o ar era de súplica, mas não subserviente. Ela olhava nos olhos, ela sabia o que queria. Se eu dissesse não, não insistiria.

— “Eu estou indo embora. Não sei para onde.”

— “Eu não tenho ninguém no mundo”, insistiu.

Escutei o canto de um pássaro, o ronco de um caminhão ao longe, enquanto a noite chegava.

— “Eu quero ir com o senhor.”

Eu tinha o triplo de sua idade. Poderia ter dito: por que eu? Não tenho nada com isso, não a conheço, não sei de onde vem. Nada: não perguntei seu nome, local de nascimento, idade, filiação. Um caminhão encheu a estrada de poeira. Eu monologuei, reiterativo: vou cair no mundo, pegar a estrada. E seguimos. Alguém que deixava tudo para trás num crepúsculo de abril, no ocaso de sua vida, e uma moça de 20 anos que não tinha ninguém no mundo. A estrada estava na nossa frente. O primeiro passo foi meu. Ela esperou alguns segundos e me seguiu, um pouquinho atrás. Como dois retirantes, não da seca, dois entes que poderiam ser pai e filha, dois estranhos neste mundo: e sorrimos um para o outro.

 

 

 


 

30.06.2005