Emanuel Medeiros Vieira
Mãe na soleira da porta
Para Anderson Braga Horta
Tantas viagens interiores eu fiz.
Estou morrendo nesta cadeira de balanço. Junto com a casa que foi
vendida, amarelada, a grama alta, desfalecida goiabeira, pitangas
que colhia com a irmã Pérola. Galinheiros vazios. Estou ficando
cego, já não vejo aquela réstia de lua, vou deixar 34 páginas de um
finado romance (para os ratos cínicos).
Minha tribo: estão todos mortos e eu
quero ler-ler e os olhos me traem, queria até rir. Escurece, sim, eu
sei, escurece. O mano Thiago foi baleado numa zona da periferia,
bêbado, ouvindo um boêmio declamar Augusto dos Anjos. Me avisaram de
madrugada, velei-o, enterrando seu corpo às cinco da tarde, sol
caindo. Pérola resolveu ir embora, cigana, fugiu num navio que não
era mais pirata, mas um cargueiro, lavando pias, privadas,
banheiros, convés. Ela não queria uma vida acinzentada, mas o sonho,
foi colher seu desti¬no. Antes, quis ir embora num circo.
Restei eu, caindo, como a casa.
“Eu sempre quis ficar contigo,
Pérola”, disse para ela.
Era minha irmã, eu a amava, mas era um
amor interditado, clansdestino, ela me olhando com olhos piratas,
mordendo os lábios, eu acariciei seus cabelos que não eram pequenos.
Foi há meio século atrás. Melhor
assim, nunca mais a vi, não contemplar Pérola gorda, vetusta, com
varizes, ela que sempre foi uma beleza solta, cheirando a quintais e
suas árvores, descalça, vestidos de chita, seios pequenos. Eu tinha
15, ela 13 anos.
Sexagenário, sem autopiedade, tentando
rir, não fiz o romance (o projeto maior), apenas um longo capítulo.
O título: “Mãe na Soleira da Porta”.
O riso parece um outro fantasma nesta
noite cheia de presságio rio e rio. É uma gargalhada interior.
Minha mãe apareceu na soleira da
porta, olha para mim, eu es¬tou com um cobertor nos joelhos, na
cadeira de balanço.
Ela sorri, cabelos grisalhos, a velha
doçura quieta.
— “Vem, mãe”.
Ela me olha, serena, ainda nada diz,
eu insisto:
“Fiz um pão no fogão de lenha”. Não
era verdade, quase já não enxergava, por que menti?, eu queria ficar
com ela. Deus me perdoe, desejava que ela ficasse bem junto de mim,
agora lembrando de mais de 50 anos atrás, quando ela ralhava comigo
por causa das bagunças infantis. Depois segurava meus cabelos, eu
fechava os olhos.
— “Como está meu pai?”
— “Dedilhando o rosário, lendo a
Bíblia.”
— “E Thiago?”
Ela agora fica triste, ele era seu
filho, ela também o havia enterrado. Ele só tinha 19 anos, cabelos
curtos do Exército Nacional, baleado por um caixeiro viajante, ele
namorou uma das moças do bordel, e o caixeiro viajante a queria só
para si, ele soube, ele o matou.
— “Em breve eu me reencontrarei com
vocês”, eu digo.
— “Eu sei”, ela confirma.
— “E Pérola?”, agora é ela que
pergunta.
— “Nunca mais a vi, mãe, desde aquele
dia irremovível da minha memória, aquela cristalina manhã de maio,
ela foi ao porto e não voltou para a casa”.
— “Eu a amava, mãe”.
Amava Pérola, como a casa, o quintal,
aquele galo onipotente parecendo um príncipe, a goiabeira, o riacho,
o violino, manhãs de sol; as conchas de uma praia deserta.
— “Você terminou o romance, filho?”
— “Não, mãe, não consegui. Queria um
romance-catedral e sou apenas um cantor da decadência, um lírico
sentimental, mãe, não trágico, um lusitano/lânguido/brasileiro/negróide/pobre
índio dizimado.” Isso tudo, em verdade, eu não disse, só havia
falado, “não, não consegui mãe.” Não, não consegui por ter na minha
carne uma herança pesada e ambivalente (mas a frase me soa agora
como dispensável literatice). Não consegui porque me faltou talento,
disciplina. A ansiedade me derrotou.
Amanhã virá o novo proprietário da
casa, com o oficial de jus¬tiça, tecnocrata governamental,
certamente vão derrubar as últimas árvores, matar o último galo,
porteiros eletrônicos, armados, con¬domínios fechados. “Me leva
contigo, mãe, por que todos querem viver tanto?” Eu supliquei.
“Quero manhãs claras, quero circos,
piqueniques, pão feito em casa.”
— “Adeus, filho. Sua estrada ainda não
acabou, mas é logo ali.”
Ela sorri, eu queria tocá-la, mas ela
vai embora, e eu estava preso numa centenária cadeira de balanço,
ouvindo a l2ª badalada daquele relógio de parede que pertencera ao
meu avô, que era alquimista e um doce mágico amador. Não casei, há
mais de 50 anos amava Pérola, os vizinhos me chamavam de “aquele
velho bêbado” (ao que tinham razão), fumante inveterado de
mata-ratos, comedor de feijoada e de gorduras — é surpreendente que
ainda esteja vivo —, bebedor compulsivo de cana vagabunda,
dipsomaníaco inveterado, fecho meus pobres olhos, por si já quase
fechados e fico pensando naquela outra manhã de maio, antes de
Pérola partir no navio cargueiro, naquela manhã em que tomamos banho
num riacho perto de um bambuzal, atrás do quintal da nossa casa,
esta casa, subimos em goiabeiras e toquei nos seus cabelos,
cogito que foi o episódio mais significativo desta minha vida
sexagenária, a única coisa que realmente me emocionou — não,
“emocionou” é pouco, é mais que isso —, queria falar em algo
SAGRADO, MÍTICO, sim, afora a idéia malograda do romance, eu vejo
agora aquela límpida manhã, azul, as 34 páginas do romance, elas são
uma homenagem àquela menina que partiu no navio cargueiro, àquela
perdida (para sempre) manhã, eu queria me referir ao infinito, às
coisas belas, queria falar do que permanece, naquele dia de maio, no
riacho, eu a beijei no rosto, devagarinho, fui chegando perto da
boca, no começo ela não deixou, virou para o lado, dela escorreram
lágrimas soltas, mas ela sorria, estava linda de cabelos soltos, de
minha parte, como sempre, deve ter escorrido uma só, seca, famélica.
A mãe já partiu. O cobertor aquece o meu corpo, os ouvidos são bons,
tento me abraçar, eu mesmo, eu comigo, eu com meu corpo, balançando
a cadeira, cantarolando uma música de ninar que ouvi a primeira vez
há 55 anos atrás, esperando o final da estrada, “logo ali”,
anunciado por minha mãe, querendo ver como ficariam minha face e
meus olhos no minuto seguinte ao momento derradeiro.
(Brasília, maio de 1992)
* Conto premiado em concurso promovido pelo
Sindicato dos Eletricitários de Florianó¬polis, SC, 1992.
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