Enéas Athanázio
A liberdade fica longe
Faz anos que
minha casa é o mundo. Perdi a conta do tempo em que não estico o
esqueleto numa cama, quando muito uma tarimba escangalhada, dura,
cheia de muquirana. Se me arrependo? Pois até acho que não. Ficar
daquele jeito é que não dava, servindo de pára-choque dos recalques
do padrasto e das rezingas da mãe com as empregadas, todo santo dia.
Nem o caiporento entrava pela porta, azucrinado com os acontecidos
da rua, e desandava a me incomodar. Não me atacava de frente, não me
ofendia de cara; ele me judiava nas indiretas, me humilhava de
raspão, de atravessado - e gostava de fazer isso na frente dos
outros, o lazarento. Com a cara debochada, os olhos vermelhos
fuzilando de gozo, tirava dos cachorros para botar em cima de mim e
eu me sentia mais por baixo que os rabos dos mesmos cachorros. Por
que fazia isso, nem sei. Ressentimento de meu pai bem sucedido, de
meus avós ricos, de meus próprios teres. Não sei, mas tenho a
certeza de que me odiava. Esse ódio não chegava à agressão porque
tinha medo de minha reação e, com certeza, de meus parentes, se
passasse da conta. Covarde, mais de uma vez vi botar o rabo no meio
das pernas quando afrontado por qualquer pelepré. “Melhor um covarde
vivo que um valente morto” - ele filosofava. Eu não era nenhum
santinho, mas também não era demônio; minhas traquinagens foram as
comuns da idade, nada de gravidade. Sempre fui aluno remediado.
Fosse só isso, ainda vá lá; quem sabe eu agüentava. A gente vai
ficando curtido e não sente tanto as bordoadas. Mas acordar cedo,
todos os dias, ouvindo a voz da mãe ralhando com as crias da casa,
não dá. “Limpe bem aí!”, “Não enxerga o pó no canto, sua bisca?”,
“Faça isso, sua preguiçosa, tire aquilo, esfregue aqui!” - um nhenhenhém comprido e raivoso que não tinha fim. E as empregadas,
atarantadas, troteando num jeito bobo, para lá e para cá, vê vaca
assustada com estranhos na invernada. Naquela manhã fria, quando
abri os olhos no meu quarto do corredor e ouvi o trololó, senti que
não podia mais. Estava numa consumição que me cortava por dentro,
secando a alma. A idéia de garrar o mato, e para sempre, me pareceu
traição e fisgou meu coração de filho. Cobri a cabeça e tentei
esquecer. Mas qual! O trololó da velha não findava e, para
completar, o padrasto subiu da rua, já rezingando comigo, mesmo sem
me ver. Era demais, nenhum vivente tinha que agüentar aquilo!
Levantei, vesti umas roupas quentes, peguei o dinheirinho que tinha,
bagatela, e tomei o café requentado de sempre. Tanto a velha como o
padrasto parece que viram qualquer coisa diferente em mim e pegaram
a me xingar. Baixei a cabeça, engoli as ofensas e a comida,
esforçando-me para não verter uma lágrima, não dar esse gosto a
eles. Quando foram para os fundos, depois de se aliviarem em cima de
mim, desci a escada, estufei a camisa e saí para o mundo livre.
Nunca mais voltaria para aquele inferno! Paguei a um piá do peixeiro
para me levar de bote ao outro lado do rio e caí na estrada. Nem sei
contar, mas nunca senti alívio tão bom na vida. Estava solto neste
mundão!
Na outra margem, pela barranca, andei rio acima. Estiquei o passo e
logo varei os banhados que cercavam a cidade, irritando os
quero-queros que piavam raivosos. Com os sapatos encharcados, fui
entrando na capoeira inçada, afastando-me das raras pessoas que
andavam por ali, pescadores e areeiros esbodegados, que me olhavam
curiosos. Entrei num mato sujo, como cerca natural à beira d’água,
onde pinheiros, imbuias e erveiras se misturavam com manchas de
bracatinga, toiceiras de caratuva e mataria baixa. Por sorte, as
vacas criadas soltas abriram com os cascos fundos carreiros pelos
quais avancei sem parar. O silêncio pesado só se quebrava com o
grito agudo dos bentevis e cantos de pássaros invisíveis. Às vezes
se ouvia o ruído do rio batendo em alguma pedra ou pau deitado sobre
a corrente. Solidão maior não havia.
Andei e andei. Sentia as pernas doloridas quando alcancei um
descampado se abrindo para o rio e deparei com o Arroio Encarnado,
afluente do rio maior. Tinha bastante água naquela época de chuva e
tive que cruzá-lo mergulhado até a cintura, levando a trouxa de
roupas na cabeça. No outro lado, andei mais um tanto e avistei a
Ilha das Abelhas, pedreira que quase cruzava o rio. O problema foi
varar o canal, coisa que só pude fazer a nado, depois de jogar as
roupas para o outro lado, emboladas numa pedra. Já na margem oposta,
peguei a sentir fome, aquela sensação de estômago vazio grudado no
espinhaço. Lembrei que ali perto existia o bolicho de um polaco
chamado Malanski e para lá me toquei. Tudo eu conhecia de passadas
aventuras. Na bodega, enfrentando olhares suspeitos, comi algumas
bananas grandotas com pedaços de broa de centeio e café preto.
Deixei parte de meu dinheirinho e botei o pé na estrada, já pensando
onde passar a noite que chegaria cedo e fria.
Lembrei-me do sítio de minha mãe, não muito longe, e rumei para lá.
A casa da sede só era ocupada nas visitas da família, passava o ano
fechada; o casal de empregados morava em outra, mais para baixo. Eu
sabia como abrir uma janela de trás mas, com certeza, espantaria os
caseiros chegando a pé. A solução seria esperar a noite.
Ao anoitecer, no lusco-fusco, cruzei a ponte ferroviária sobre o Rio
Mingó, outro afluente, e avistei o sítio, com a casa amarela no topo
do coxilhão. A ponte não tinha soalho e cruzei pisando nos
dormentes, um por um, enxergando pelos vãos as águas negras lá em
baixo. Quando a noite se fechou, avancei para o sítio, entrando pela
cerca de arame farpado e torcendo para não ser visto. Um vulto se
moveu no gramado, dando uma leve barroada, mas logo veio ao meu
encontro, sacudindo o rabo pitoco. Era Boby, guapeca dos caseiros, e
eu o afaguei nas costas. Pé-por-pé fui até a janela, abri com
facilidade e pulei para dentro. Em pouco me deitava numa cama de
casal, com boas cobertas, e até pude ouvir um pouco de rádio, bem
baixinho, num velho aparelho de cabeceira. Dormi em paz até o
amanhecer.
Acordei com o gritedo da passarada nas árvores próximas. Uma réstia
de sol entrava pela ventarola da janela e avistei um fiapo de céu
azul. Notei movimento no galpão dos fundos, onde faziam a tirada do
leite. Permaneci tranqüilo porque sabia que os caseiros quase não
entravam na sede. Imaginei o que acontecia em casa, com a mãe e o
padrasto culpando um ao outro pelo meu sumiço. E a mãe, sempre
temerosa de escândalos, choramingando pelos cantos. “Que vão pensar
de nós? Que dirão de nós lá fora?” - repetiria convulsiva. Confesso
que essa idéia me deu um prazer quase lascivo...
Quando tudo silenciou, levantei e andei pela casa obscura. O chão de
pinho rangia aos meus passos. Encontrei minha velha mochila de couro
e nela coloquei roupas, um cobertorzinho pulgueiro, fósforos, velas
e um canivete mil usos. Encontrei também um velho chapéu mole, de
gabardine cinza, desses de juntar ovos no galinheiro. Com ele na
cabeça, saltei pela janela, fechando-a com cuidado, e saí para o
pátio.
Atravessando o pomar fechado, cuidei para não ser visto, e fui até a
morada dos caseiros, cuja porta ficava encostada; nem se davam o
trabalho de travar. Estavam na roça e a casa ficava só. Entrei na
cozinha e me fartei de leite fresco, pão de milho com mel crioulo e
pinhões cozidos. Tomei até o cafezinho da chicolateira que frigia no
fogão. Revistei as gavetas e fui embolsando notas e moedas que
encontrei - coisa pouca. Um dia seriam devolvidas com juros!
Satisfeito, saí pelos fundos, decidido a voltear pelo Morro Vermelho
e chegar outra vez à beira do grande rio sem que me vissem. Foi um
trecho penoso, vencendo a mataria tramada de cipós e o chão vermelho
de terra lisa e úmida. Chegando ao rio, recostei-me no porto onde as
lanchas faziam paragem e esperei. Não demorou muito e ouvi o
taque-taque do motor de uma delas. Lerda e grandona, a embarcação
achatada apontou na curva mas levou um tempão para chegar.
Tratava-se da lancha “Ouro Verde”, minha conhecida das andanças por
ali, carregada de fornecimento feito por encomenda nos armazéns da
cidade e que era entregue nas casas, fazendas e povoações
ribeirinhas. Pedi carona ao patrão e ele concedeu sem perguntas,
embora seus olhos revelassem perceber que eu estava fugindo.
Embarquei, acomodei a tralha e me ofereci para ajudar, mas pouco
tinha a fazer. Deram-me latas e panos para secar a água que o velho
casco de madeira fazia, mas, como fosse pouca, sem grande esforço eu
conservava tudo enxuto. Sobrando tempo, limpei o reduzido convés e a
coberta, arrumei os beliches e dei uma geral na cozinha. Meu
capricho agradou ao patrão e ele me ofereceu um cigarro de palha e
um trago de pinga forte para prevenir a constipação, mas um só,
porque me julgava muito piá para bebidas de homem. Pela tarde, com o
sol rachando, passei para o bote arrastado pela lancha, fiquei só de
cuecas, e sem largar do bote mergulhei nas águas frias do grande
rio, um rio que eu considerava meu, o “Amigo Velho”.
A tripulação, composta do patrão e dois embarcados, parecia ter
gostado de mim e me senti adotado. Na fala deles passei a ser o
“piá”. Admiravam-se da disposição com que eu fazia tudo que
mandavam, nem suspeitando do prazer que aquilo me causava. Já me
julgava um marujo da água doce, um lobo do rio...
E assim, entre paradas e arrancadas, a “OuroVerde” matraqueou rio
acima por três dias e três noites, até ancorar no destino final -
São Roque. Despedi-me da tripulação e, com um peso no coração, parti
para as ruas da pequena cidade portuária. Não foi difícil conseguir
comida e pouso em troca de algum serviço, mas logo me convenci de
que aquele não era o meu chão. Em poucos dias eu me apresentava ao
patrão da “Ouro Verde”, agora carregada de erva-mate, e matraqueava
por três dias e três noites até o lugar onde embarcara antes, perto
do sítio. O cheiro acre da erva cancheada ficou no meu nariz por
vários dias. O patrão e os embarcados me ofereceram uma vaga
permanente, mas a idéia de gastar o tempo subindo e descendo pelo
rio, mesmo que fosse o “Amigo Velho”, não me agradou. Despedi-me com
tristeza daqueles amigos e entrei no mato em busca do leito da
ferrovia.
Caminhando pelos trilhos eu me sentia seguro. O capoeirão alto que
crescia nas margens me defendia de olhares indiscretos e permitia
que me escondesse a qualquer aproximação. Depois de uma longa curva,
avistei a estação de Poço Preto, antigo entreposto de erva-mate,
agora desativado. O casarão de madeira-de-lei estava fechado há
muito tempo, cercado pelo mato. Os poucos trens que por ali
transitavam nem paravam em sua plataforma de pedra-ferro, outrora
movimentada e barulhenta.
Andei pela plataforma, com meus passos ecoando ao longe, circulei em
torno do prédio e descobri o jeito de abrir uma porta. Verifiquei o
térreo, onde ainda existiam alguns móveis, e subi ao sótão. Para o
lado norte havia imenso quarto com janelas de guilhotinas pelas
quais se avistava longe, inclusive um trecho do rio, casas e matos
afastados. Havia cama, mesa de cabeceira e armário, tudo de imbuia
de qualidade. Deveria ter sido, em melhores tempos, o dormitório do
telegrafista de plantão, e me lembrei do Germano, já falecido, com
uniforme e quepe azul-marinho, botões e alamares dourados,
manipulando o morse ou se esgoelando no seletivo.
Achei que aquele seria bom refúgio nas minhas paradas, entre idas e
vindas de futuro andarilho. Cortei no mato uma vassoura verde, varri
e limpei o quarto, depois passei pano molhado para abafar a poeira
acumulada. Abri as janelas para o ar puro e arrumei a cama o melhor
que pude. Tratei de me acomodar, pensando no desespero da mãe. Nessa
altura toda a cidade estaria sabendo de minha fuga. Ótimo!
Pelas dez horas passou o trem cargueiro rumo ao norte, martelando a
velha linha e fazendo trepidar o casarão. Pela janela do sótão
acompanhei a marcha do monstro iluminado invadindo a escuridão e
parecendo repetir:
- “Te pego, te pico,
Te boto no pinico!”
Tive uma noite sem sonhos e nenhum fantasma perturbou meu sono.
Despertei com o sol penetrando meu novo aposento pelos janelões. “
Bom dia, amigo sol, a casa é sua!” - saudei com um verso aprendido
na escola.
Ainda deitado, analisei minha situação. Deixei vestígios no sítio e
na morada dos caseiros, várias pessoas me viram na outra margem do
rio e o piá do peixeiro poderia ter falado. Com certeza sabiam mais
ou menos a direção que tomei. O padrasto não perderia jamais a
oportunidade de me pegar, mesmo à força, para humilhar-me como
nunca. Mas eu não lhe daria esse gosto, mesmo que tivesse que
evaporar! Concluí que para o sul não poderia voltar; a cidade
estaria em alerta e seria forçado a atravessá-la, mesmo transitando
pelos bairros distantes. O risco seria grande. Só me restava, assim,
o caminho do norte, e por ele seguiria numa longa viagem sem volta.
Arrumei a tralha, fechei a porta da estação e retomei os trilhos no
sentido norte, sempre para o norte, o norte, o norte...
Depois de uma boa puxada, alcancei a Turma Norte, aglomerado de
casas onde moravam os conservas da ferrovia. As construções
idênticas davam-lhe um ar de vila fantasma. Os homens no trecho, as
mulheres na roça e as crianças na escola. Testei a porta da casa
mais próxima, estava só encostada, fui entrando. Encontrei dois ovos
cozidos e pedaços de carne assada, pães de centeio e bolachas
confeitadas, daquelas feitas pelos polacos. Engoli tudo com uma
voracidade que me deixou envergonhado. Retomei o caminho, debitando
o pequeno furto por conta do João da Banha, ladrãozinho invisível
que perambulava pela estrada de ferro.
Os trilhos agora percorriam um imenso banhadal coberto de mato sujo
onde os sapos faziam coro. Não tardei a ver a ponte do Mingó, a
mesma que cruzara na noite da fuga, e que hoje atravessaria no
sentido oposto. Rio de barrancas muito elevadas, de água negras e
profundas, tinha fama de matador. Não foram poucos os que nele
sucumbiram, inclusive colegas de escola e pescadores conhecidos.
Varei a ponte com atenção, admirando a reforçada estrutura de aço, e
comecei a subir o cerrinho do outro lado, conhecido como Tira-Cisma,
local onde os trens avançavam devagar, quase parando, tão íngreme
era a subida. Mal terminei de subir, pondo os pulmões pela boca,
enxerguei o descampado onde ferrovia e rodovia correm paralelas, e
meus olhos se recusaram a acreditar no que viam. Em baixo de uma
árvore folhuda estavam dois carros estacionados, uma viatura
policial e a “rural” cinza de meu padrasto. Pela janela um braço
curto apontava para mim e reconheci minha mãe na hora. Houve gritos,
movimentação, e dois policiais fardados apareceram tangendo cães
farejadores. Todos se voltavam para meu lado e gritavam raivosos.
Larguei a mochila e desabalei para o mato, numa corrida desesperada,
levando no peito tudo que encontrava. Tinha consciência, apesar do
desespero, de que por ali iria dar no Mingó, justo onde as barrancas
eram mais empinadas, mas não me detive um instante e corri feito
louco. Entre o rio temeroso e o padrasto odiento, escolhi aquele. O
ruído dos policiais e os gritos diminuíram e eu me deparei, de
repente, com o rio correndo lá embaixo. Mesmo esperando, senti um
baque no coração quando vi a altura do barranco vermelho que descia
até a água. Mas não havia tempo para pensar, acelerei o passo e
saltei para o vácuo, encolhendo o corpo num mergulhão em forma de
“bomba”, como se dizia na escola. Por momentos me senti voando, como
se pairasse no ar, e as águas negras me receberam com uma batida
forte que senti nos pés e nas pernas. Vivi a estranha sensação de
que não parava de afundar mais e mais. Abri os braços, estirei o
corpo, percebi que estava inteiro. Bracejei com energia por baixo da
água, procurando me afastar do local, aproveitando a força da
corrente. Emergi, respirei fundo, mergulhei outra vez, e assim por
diversas vezes. Apesar das roupas me atrapalhando, calculei que
havia rodado bastante. Procurei um local onde o mato descia até a
margem e nadei para lá. Agarrado num tronco, apenas com a cabeça
para fora, assim permaneci um tempão. Senti-me gelado, batendo
queixo, com os dedos xuringados. Admirei-me com a quantidade de
lambaris e carás minúsculos que nadavam ao meu redor; creio que, se
estivesse nu, eles me atacariam. Quando julguei que havia escapado,
saí da água, tiritando, e entrei no mato. Estirei-me no chão,
exausto, e descansei. Depois tirei as roupas, fui torcendo peça por
peça, e tornando a vestir. Percebi então que a liberdade estava mais
longe do que eu imaginara. E o trem cargueiro noturno seria o
passaporte para ela.
Com indescritível ansiedade esperei a chegada da noite. Nunca o
tempo me pareceu tão lerdo. Andei para lá e para cá, afinando o
ouvido e observando. Tudo estava tranqüilo; meus perseguidores
pareciam ter desistido. As roupas secaram no meu corpo e analisei
minha deplorável aparência: sem chapéu e mochila, com as roupas
sujas e amarrotadas, eu devia parecer um mendigo. A barba ruiva
cobrindo o rosto reforçava a impressão de sujeira.
À medida que a noite se fechava, escura e pesada, comecei a sair do
mato e me aproximar do Tira-Cisma. Procurei o local onde o trem
passava mais devagar e me escondi atrás de algumas árvores para não
ser visto pelo maquinista. E ali fiquei, solitário e impaciente,
ouvindo os grilos e a saparia. Torci para que o trem não atrasasse,
o que acontecia com freqüência, e a composição tivesse vagões-baú
vazios que costumavam viajar de portas abertas. O tempo se arrastou
até que, enfim, ouvi o resfolegar pesado da locomotiva reduzindo a
marcha para entrar na ponte. Por instantes o holofote poderoso deu
vida à paisagem esmaecida, as rodas martelaram a ponte e o
maquinista acelerou para enfrentar o cerrinho. Lenta e firme, a
locomotiva passou rebocando - oh! meu Deus! oh! meu Deus! uma
curta fileira de vagões, vários deles vazios e ... de portas
abertas! Eu me aproximei, cuidando para não tropeçar nas pedras da
linha, armei o pulo do gato e saltei para dentro de um deles. Com o
coração aos pulos, eu me vi deitado no chão, na condição de
passageiro clandestino. Meio cambaleante, andei pelo vagão e
examinei as portas. Sem grande esforço fechei uma e tratei de tirar
o ferrolho da outra. Ser fechado ali dentro seria morte certa.
Procurei o canto da frente, escapando do vento, acomodei-me como
pude e dormi o sono das pedras.
Quando acordei o sol ia alto e o trem estava parado. Espiei pela
porta e identifiquei a maior cidade da região. Pela distância
vencida, o cargueiro teria viajado a noite toda e quase sem parar. O
movimento indicou que estávamos num pátio de manobras e outra
composição se formava. A posição de meu vagão parecia mostrar que
ele iria no caminho da Serra-Abaixo, no rumo do litoral, voltando,
com certeza, carregado de bananas. Aquele seria, pensei comigo, o
trem conhecido como “Banana” e isso me alegrou porque ninguém se
lembraria de me procurar para aqueles lados.
Eu tinha o corpo dolorido, as pernas e mãos lanhadas, e um ferimento
na perna, provável batida no pulo do embarque. A fome se revelava
numa fraqueza geral, num amolecimento, mas eu não podia me entregar
e tratei de ignorá-la. Fome e liberdade são velhas companheiras,
lembrei de ter lido em algum lugar.
Depois de avanços e recuos, bufos e apitos, o trem ficou pronto e
começou a rolar pela Serra-Abaixo. Levava vagões de madeira serrada,
alguns carros-tanques e outros que presumi carregados de cereais e
erva-mate, além de uns poucos vazios, entre os quais o meu.
À medida que viajávamos tudo mudava: a vegetação, o estilo das
construções, o solo arenoso, o sotaque das pessoas. O calor
aumentava e fui me livrando do casaco e da blusa. Pelas dez da
noite, mais morto que vivo, vi com alívio o trem encostar no porto
da velha cidade, aninhada numa ilha, - o fim da linha -, que eu só
conhecia de ouvir dizer. Avistei mastros de navios, guindastes e
luzes. Ouvi o barulho das ondas quebrando por perto e aspirei o
cheiro do mar. Trôpego e cambaleante, saltei do vagão, mal me
sustentando nas pernas bambas. Ao me ver, alguém gritou “Êh você! Êh
você!” mas não lhe dei atenção e caminhei vacilante para a rua mais
próxima, dessas vielas estreitas e recurvas, com casas baixas,
típicas da colonização portuguesa. Passei por vários botecos,
bodegões feios e sujos, nos quais não tive ânimo de entrar. Mais
para o começo da ruela, já pendendo para a cidade, deparei com o
“Âncora”, misto de bar e restaurante, com o nome e uma âncora
pintados na fachada encardida. Apenas um freguês estava sentado e
uma mulher loira, que devia ser a dona, fincava os cotovelos no
balcão. Entrei decidido, coloquei diante dela as notas amarrotadas e
as moedas que se salvaram.
– Quero comer tudo que isso puder pagar! - disse eu para a mulher
espantada. – E depressa!
Ela fez um muxoxo, contou o dinheiro e colocou no bolso do avental.
Em seguida entrou pela porta da cozinha e voltou trazendo um
“completo”, pratarra de comida de assustar. Sentei-me num canto,
baixei a cabeça e comi como cachorro esfomeado. A mulher e o freguês
me observavam, parecendo penalizados de minha situação. Adivinhavam
que eu não era nenhum marginal perigoso. Terminado o jantar,
enchi-me de coragem e perguntei se ela não teria alguma canto onde
eu pudesse dormir.
– Pagarei em serviço, amanhã - completei.
Ela riu, mostrando belos dentes, e respondeu:
– É, hoje você nem pode com as pernas...
Chamou-me para os fundos, apontando um quartinho com a porta para o
pátio. Embora estreito, tinha cama patente, cadeira de palhinha,
armário e pia com espelho na parede, onde contemplei minha cara
escalavrada e barbuda de muitos dias. Foi um choque! Livrei-me das
roupas sujas, fiquei apenas de cuecas, e me larguei na cama. Creio
que já dormia antes mesmo de deitar.
Amanheci refeito, mas o ferimento da perna incomodava, latejando.
Corri os olhos pelo “Âncora” e vi uma casa sem homem. Como tinha
contas a pagar, não esperei ordens e botei mãos à obra. Capinei,
rastelei e varri; com mangueira e escova lavei muros, paredes e
calçadas; empilhei tijolos e telhas; organizei o vasilhame nos
engradados. A patroa, cujo nome soube ser Vitória, postava-se à
porta, admirando minha disposição, e não tardou a me batizar -
“Serrano”. Lavei a casa do cachorro, guapeca simpático de nome
Tutuca, e o próprio, livrando-o de incômodos inquilinos e perebas.
Tangido pela corrente, levei-o a passear e o animalzinho entrava
numa euforia indescritível. Tornou-se meu amigo inseparável.
Nos dias seguintes passei uma demão de cal nas paredes e nos muros,
lavei janelas, lixei e pintei o balcão e as mesas do bar. Convenci
Vitória a trocar cortinas e lustres por peças artesanais adquiridas
no Mercado Central e a contratar um pintor para recuperar a fachada
encardida, as letras e o símbolo do “Âncora”. Instalamos lâmpadas
pelo lado de fora, dando-lhe aspecto menos soturno à noite. Melhorei
meu próprio quarto, adaptando uma mesinha improvisada para escrever
e, sobrando tempo, lavava a louça e limpava a cozinha. Só não
entrava nunca no quarto da patroa, localizado nos altos da garagem.
Como a perna tardasse a sarar, Vitória me levou no seu “fusca” ao
Posto de Saúde, onde me deram pomadas e comprimidos.
E assim fui ficando, ancorado no “Âncora”, agora o melhor bar do
porto. Livrei-me da barba, cultivei um bigode ruivo e deixei os
cabelos descerem aos ombros. Adotei as camisas leves, bermudas e
sandálias de couro, tudo comprado a baixo custo nas lojinhas do
Mercado. Passei a usar óculos escuros e me tornei irreconhecível.
Como diziam os fregueses do bar, gozando meu sotaque carregado nos
rr, transformei-me num “papa-siri da Serra”.
Nos dias de folga percorria a cidade, às vezes levando Tutuca,
admirando as antigas igrejas, construções centenárias, árvores
folhudas e, acima de tudo, as praias onde mergulhava, fazia
exercícios e me tisnava de sol. Conheci as ilhas e enseadas da baía
em passeios com pescadores e barqueiros. Explorei os morros que
cercavam a cidade e gostava de escalar o Costão, de cujo cimo descia
impressionante paredão rochoso que afundava no mar, chicoteado sem
descanso pelas ondas. Contemplando a imensidão do mar aberto,
sonhava em atravessá-lo até a África do Sul e a Namíbia, na velha e
misteriosa África Negra, imaginando-a à minha frente, longe ,
longe...
Nunca fui tão vigoroso.
Numa tarde de sábado, com chuvisco salpicando meu rosto e o vento
varrendo a ilha, entrei numa banca de revistas e descobri,
deslumbrado, um “sebo” anexo. Com meus escassos dinheiros, fui
comprando livros de gêneros e autores diversos, recaindo no “vício
antigo” da leitura, com o qual meu padrasto tanto implicava. Foi
nessa época que recomecei a escrever na mesinha de meu pobre
tugúrio, às vezes com dedos tão duros do serviço pesado que mal
seguravam a caneta. Mas a verdade é que encontrava naquilo um prazer
tão grande como não conhecia igual. Ali ficava por horas a fio,
escrevendo, corrigindo, reescrevendo, enquanto enchia blocos e
blocos com contos, crônicas e artigos. Parecia, enfim, ter
encontrado a vocação - eu me sentia um escritor.
Por essa época, escandalizada, Vitória descobriu que eu não possuía
documentos. Ficaram na mochila abandonada na fuga desabalada. Graças
a um policial habilidoso, indicado por ela, em breve eu portava nova
identidade. Para todos os efeitos, passei a ser Natan Zilef,
descendente de beduínos e nascido num remoto vilarejo do Oeste.
Tornei-me amigo dos estivadores, marujos, embarcados e toda a fauna
portuária, saboreando seus “causos” e registrando sua fala, depois
anotados em blocos na mesinha da parede. O comandante Xavier, do
Lóide Brasileiro, prometeu me levar à Namíbia em seu navio
cargueiro, inclusive a Luderitz, para conhecer o célebre porto e a
feira popular, considerada a maior do mundo, com mais de vinte
quilômetros de extensão, além de um passeio pelo tórrido deserto
daquele país. Mesmo sem data, registrei a promessa, certo de que a
viagem se realizaria. Não tinha pressa. Habituei-me ao som do mar, à
maresia, aos gritos das gaivotas e aos ruídos do porto. Entraram no
meu dia-a-dia.
Num domingo, depois de muito pensar, resolvi enviar uma crônica
sobre o “Âncora” ao jornal da cidade - “A Gazeta”. Passei o texto
pelo pente-fino, depois copiei em letras caprichadas e, no dia
seguinte, despachei pelo correio. O diretor não apenas publicou em
destaque como redigiu uma nota elogiosa, afirmando que surgia “um
novo escritor que revelava talento e prometia”. Foi a estréia de
Natan Zilef em letra de forma. Vitória ficou feliz por mim e pelo
“Âncora” e me tornei celebridade na região do cais.
Enviei ao jornal outros trabalhos, contos, crônicas, artigos, sempre
publicados com destaque. O diretor telefonou para o bar,
convidando-me a aparecer na redação, e me ofereceu uma coluna
permanente, o que aceitei com grande emoção. No dia da estréia do
novo colunista, para surpresa minha, Vitória ofereceu ao diretor e
alguns convidados um jantar por ela preparado no capricho, fato que
o jornal noticiou com detalhes na edição seguinte. A dona de pobre
bar de porto e o diretor do jornal provinciano foram os padrinhos
que eu nunca tivera.
Por sugestão dele, cheio de medo, enviei meu melhor conto ao
concurso de uma grande cidade próxima. Incrédulo, recebi meses
depois a notícia de que fôra premiado. Vestindo calças e calçando
sapatos novos, coisa que não fazia há muito tempo, compareci à
solenidade da premiação. Minhas pernas tremelicaram com violência
durante a caminhada pelo corredor do auditório quando fui chamado
para receber o cheque e o diploma. Vitória havia me levado no velho
“fusca” e acredito ter visto lágrimas furtivas nos seus olhos no
instante em que voltei para perto dela. “A Gazeta” noticiou tudo,
com detalhes e fotos. Na noite seguinte o “Âncora” se encheu de
amigos que foram me felicitar.
Desde então não cessei de enviar meus trabalhos a jornais e
revistas, onde eram quase sempre publicados. Recebi mais alguns
prêmios, maiores e menores, sem descuidar da coluna no jornal da
cidade, ao qual destinava o melhor que produzia. Meus blocos,
repletos de contos, crônicas, artigos, diários e notas, já guardavam
material suficiente para o primeiro livro. Aproximava-se o dia
doloroso em que, com o calhamaço sob o braço, eu bateria à porta das
editoras.
Enquanto isso, depois de cumpridas as obrigações no bar, eu lia e
estudava para aprender com os grandes. A biblioteca, quase toda
comprada no “sebo”, crescia sem parar, com os livros se amontoando
no canto de meu quarto e por baixo da cama. Observava o estilo, os
recursos e o modo de dizer dos consagrados, procurando fixar meu
próprio meio de expressão. Sentia que muito ainda faltava, mas
estava progredindo na luta árdua pelo domínio da palavra.
Pelas noites a dentro, escrevia e escrevia, tentando realizar o
melhor. Naquelas horas silenciosas, no quartinho acanhado,
compreendi que só através da literatura, produzindo uma grande obra,
eu alcançaria a liberdade que a vida não me dera. Sabia agora, de
experiência própria, que a liberdade ficava longe. Mas eu chegaria
lá!
B.Camboriú, julho de 1999.
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