Enéas Athanázio
A estradinha
Sentei no banco
gasto da velha estação ferroviária e espraiei o olhar pela vila onde
passei muitos anos da infância feliz. Para trás estavam as ruas
tortas em que se alinhavam velhas casas; à direita se avistavam as
ruínas da antiga madeireira, a indústria que devorou as matas da
região; à esquerda, menores do que eu imaginava, ficavam os morros
misteriosos onde, como diziam nos meus tempos de criança, viviam até
bugres e onças pintadas. Mas à minha frente se estendia a paisagem
que mais me dizia à saudade. Naquela campina plana, com o capim ralo
queimado da geada inclemente, começava a estradinha que ligava minha
vila ao lugarejo onde morava meu amigo Téo, um dos tantos que o
tempo levou. Era uma estrada de poucos quilômetros, com o chão
vermelho batido pelo caminhão velho que puxava madeira, cortando a
mataria fechada, subindo e descendo as quebradas do terreno. Caminho
pobre, onde quase ninguém passava, e cujos únicos ruídos eram o
canto dos pássaros e o grito de algum bicho.Para mim, porém, aquela
estradinha era a porta da aventura e da liberdade – era tudo.
Por ela eu saía
nas explorações solitárias do mato próximo e, mais tarde, com a
espingarda nas costas, para algumas caçadas inofensivas. Por ela eu
partia para acampar na companhia dos amigos, curvado ao peso da
mochila. Mais crescido, já metido a homem, a estradinha servia para
minhas andanças a cavalo e as corridas na bicicleta que ganhei de
minha avó, a única da vila. Também era por ali que eu rumava para os
primeiros bailes, nos sítios ou nas casas-de-festa das capelas,
quando até arranjei uma namorada, caboclinha simplória e acanhada
que também sumiu no tempo. Era ainda por ali, na fase da leitura
apaixonada, que eu rumava para a casa de Téo, com quem trocava
livros e revistas.
Bem cedinho, mal
engolido o café, eu enfrentava o frio e partia decidido. Quase
sempre a pé, com o maço de leituras em baixo do braço, esticava o
passo nas curvas sem fim, a batida dos saltos provocando um som cavo
no chão vidrado. Nem saía da vila e me punha a cantar e assobiar,
talvez para espantar o medo, a voz reboando nas canhadas e o eco
respondendo longe. Às vezes treinava mesmo uns discursos e
declamações para uma platéia invisível. Nessas visitas ao Téo
acontecia encontrar por ali, pastando à vontade, o Rosilho, um
cavalo muito velho que pertencia à minha família. Não servia mais
para o serviço e fôra largado ao deus-dará. Muito barrigudo e de
lombo agudo como facão, era o retrato da mansidão. Submisso sempre a
meus caprichos infantis, muito eu tinha brincado com ele.
Eu então o
montava em pelo, sem pelego e sem freio, e o colocava na estrada.
Bufando e rebolando, o pobre me levava até a vizinhança do povoado
do meu amigo, onde eu o largava, com um tapa amistoso no lombo. À
noitinha, quando retornava, eu o encontrava quase no mesmo lugar,
pastando em silêncio. Parecia que me esperava. Eu montava de novo e,
entre bufos, ele me levava de volta. Para compensá-lo, eu lhe dava
um trato de milho e alfafa e servia-lhe água fresca. Com olhos
imensos e plácidos, parecia agradecer. Depois, em passos curtos, sem
pressa, retomava a liberdade duramente conquistada e cruzava a
campina.
Chegando em
casa, nem descansado do passeio, eu já imaginava novas andanças pela
estradinha. A estradinha que ficou para sempre na minha lembrança
como o caminho livre do sonho e da fantasia.
Premiado no
Concurso Nacional Monteiro Lobato promovido pela Academia Brasileira
de Literatura Infantil e Juvenil (S. Paulo – 1990).
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