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Jornal do Conto

 

 

Enéas Athanázio


 

Como casei com a filha do Coronel

 

E agora?

Meu carrinho, que os amigos apelidaram de “Gentileza”, está enterrado até os eixos no barral vermelho. O motor esquenta, fede a borracha dos pneus, ele se sacode todo, mas não avança um centímetro.

Com muito jeito consigo sair e pular para o capim da beira da estrada. Mesmo assim, enterro as botas na barreira, respingo a roupa, fico sujo como um porco. Olho para os lados e vejo o verde dos campos, o silêncio onde só se ouve o grito de pássaros ou o berro de algum boi extraviado. E o sol descambando no horizonte, com a noite chegando ligeiro.

Tinha viajado quatrocentos quilômetros, tudo correra bem, mas agora estava ali, atolado até a goela. Eu me dirigia à Fazenda do Coronel para pedir a filha, minha namorada, em casamento. Era humilhante, mas tinha que fazer a pé o resto do caminho. Por sorte estava perto e comecei a andar.

Quando me aproximei da casa, pela noitinha, a cachorrada fez uma acoação que me gelou a alma.

“Sou eu!” – gritei de longe, pronto para trepar pela cerca de rachões da mangueira.

Uma fala áspera acalmou as feras e respondeu para mim:

“Chegue sem medo! Não mordem!”

Meio ressabiado, fui chegando, e um moço me cumprimentou com as pontas dos dedos. Ele me observava, estranhando minha sujeira, e me levou para dentro. Aliviado, sentei no banco da cozinha-de-chão e esperei a namorada. Quando apareceu, num vestido de bolinhas vermelhas, expliquei o desastre e ela me acalmou, dizendo que mandariam tirar do atolador o meu pobre carrinho. Ria com os dentes branquinhos, parecia feliz por me ver, mesmo imundo daquele jeito.

Numa gamela grande eu me livrei do barro mais grosso, depois me atirei numa janta de revirado de feijão, bolinhos da graxa, leite e queijo, sem dúvida muito apropriada para a noite. Na luz das velas eu cismava que todos me olhavam enviezado, dum jeito meio hostil, e quase nem me falavam.

Puxei a namorada para uma prosa na escada de fora e ali, sentados nos degraus de pinho, ficamos um pouco sob a luz do luar, claro como o dia. Mas eu tinha a sensação de ser vigiado e não tardou que chamassem a moça para dentro.

Num quarto do sóte eu me enterrei na s cobertas de pena e dormi que nem uma pedra. O Coronel não apareceu.
 


 

No outro dia, muito cedo, uma junta de bois arrastou a “Gentileza” como brinquedo, livrando-a do barro mole. Num canto do galpão um piazote lavou o carrinho e ele voltou a ficar brilhante.Tomei camargo na mangueira, depois me barbeei, lavei e troquei de roupa. Com as pernas tremendo, meio bambas, estava pronto para enfrentar o fazendeiro.

Sentei na sala, onde ganhei café numa canequinha com a colher dentro. Estava pelando e foi um custo engolir. Esperei, esperei, mas nada do homem aparecer.Escutei zumzum de conversas e, captando meias frases daqui e dali, entendi que o Coronel não conseguia se virar na cama e levantar. Muito gordo, deitou de mau jeito e ficou entalado. Com a ajuda do mulherio doméstico ele se arrumou e saiu da cama.

Mas não aparecia onde eu estava. Impaciente, começando a suar, apesar do frio, peguei a andar pela sala e pelo corredor. Num repente, olhei pela vidraça quadriculada do quarto e avistei o Coronel. Sem camisa, parado na frente do espelho, raspava a barba rala e aparava o bigode. Acertava o fio da navalha no assentador de couro macio e aos poucos tirava o sabão do rosto. Tudo numa calma sem fim, como se tivesse todo o tempo do mundo. Agoniado, eu já estava a ponto de sumir dali, quando ele apareceu.

Cumprimentou dum modo meio seco, fez as perguntas do costume e ficou me olhando como se esperasse alguma coisa. Eu me enchi de coragem, disse o que pretendia. O homem silenciou, estudou-me com olhar agudo, depois sentenciou:

“O senhor tem fraca presença. Não sei se terá meios de casar com minha filha...”

Não entendi, fiquei meio aparvalhado, olhando para ele.

“É tradição no campo – continuou o Coronel – cobrar um dote do noivo. Isso é um costume que vem das gerações de dantes.”

Sem acreditar no que ouvia, procurei descobrir sinais de riso na fisionomia pálida à minha frente. Mas estava impassível, nem as pontas negras do bigode se moviam e os olhos nada revelavam. Dei, então, uma de macho e fiz a bravata que foi minha perdição.

“Muito bem! – disse eu. – Diga lá o que deseja!”

Sem alterar a fala, sem mudar a face ou a posição na cadeira, ele me achatou:

“O senhor tem que me dar um milhão de cruzeiros e um carneiro bem gordo para a festa.”

Senti calafrios.

E agora? Eu andava lavando cachorro com guanxuma, onde iria arranjar um dinheirão daqueles?
 


 

A tensão daqueles dias me atacou a barriga. Tive cólicas e coisas do gênero. Para visitar a “casinha” – privada tosca – tinha que cruzar o pátio da frente, grande e vazio. E ali dois inimigos ferozes espreitavam, como se desejassem me expulsar da Fazenda. O primeiro era o Tigre, velho cão policial, que rosnava e arreganhava a dentuça até que eu voltasse para a casa. Enquanto ocupava a tal “casinha”, por minutos que fosse, ele andava em volta dela, rosnando e fungando pelas frestas da madeira. Mais de uma vez julguei ouvir risinhos para os lados da cozinha. Divertiam-se à minha custa!

O outro inimigo era um imenso peru bravo que habitava o pátio, onde imperava soberano, pelo menos até o próximo Natal. Tão logo me via, a fera expelia coléricos gluglus e investia contra mim de bicadas e esporadas. Para vencer o deserto que ele e o cachorro vigiavam, tinha que me armar de uma vara que guardava em baixo da escada e que, às vezes, desaparecia por mistério.

Nunca me senti tão ridículo!

No dia seguinte, convidado pela namorada, visitamos a Fazenda vizinha. Destinaram-me uma velha mula preta, de trote seco, lerda e de queixo duro. Por mais que lhe chegasse os calcanhares na barriga e usasse o tala sem piedade, a miserável não andava, e fui ficando para trás, para trás, para trás. Minha namorada e a irmã, esquecidas de mim, afastaram-se nos carreiros do campo até me perderem de vista.

Acabei concluindo que não chegaria nunca. Apeei do animal, fui puxando pelo freio a velha mula. E assim até a Fazenda, onde apareci andando. Seria meu destino chegar a pé?

Os cachorros latiram e as pessoas da casa deram boas risadas à custa de minha grotesca figura de puxador de mula. Como não podia sumir pelo chão, como minhoca, ri com elas – é claro que um riso amarelo.

Naquela noite dormi mal, tive pesadelos, vi visagens e assombrações. Havia passos no corredor, gemidos não localizados, choros indistintos e o vento assobiando sem cessar nas frinchas da janela.

Decidi partir muito cedo.
 


 

Madrugada ainda, eu punha a “Gentileza” na estrada e abalava da Fazenda numa nuvem de poeira. Na porteira, com o vestido de bolinhas, a namorada abanava choramingando, certa de que eu nunca arranjaria aquela dinheirama. Mas ela não me conhecia, não sabia do que eu era capaz!

Viajei direto para a Capital, parando apenas para comer e abastecer. Assim que cheguei, fui à procura do amigo Joachim, alemão rico e bem relacionado, e lhe contei o meu drama. O safado ficou de arranjar um emprego, mas desapareceu de vista e eu decidi agir por conta própria.

Na pensão, sugeriram que me empregasse como lavador de cadáveres do Hospital Geral, zelador de mictórios públicos ou faxineiro das baias do Jockey Club. Todas ocupações rendosas, indicadas para pessoas ambiciosas e de estômago forte. Mas não tive coragem.

Contentei-me com uma vaga de apanhador de papel para reciclagem, que consistia em catar papéis jogados nas ruas, desde que não estivessem muito sujos, colocar em sacos e entregar no entreposto da Companhia. O serviço me fazia sentir ecológico, pois cada saco de papel entregue salvava uma árvore do corte. Como trabalhava à noite, arranjei alguns bicos para a tarde: fui entregador de pães numa panificadora, levantador de paus de bolão na Sociedade Teuto-Brasileira e outros menores, de que nem me lembro mais. Trabalhei como um maluco, fiquei pesando 51 quilos – fazia uma refeição diária – e vivia triste, solitário. Consolava-me a lembrança da namorada, com seu sorriso de dentes brancos.

Mas eu me realizei mesmo como lavador de louça do International Terminus Hotel, pertencente a uma das maiores redes hoteleiras do mundo. Minha técnica se aprimorou de tal forma que atingi a perfeição. Com pouquíssima água e o mínimo de material, lavava com rapidez a montanha de pratos, copos, talheres e panelas. Concentrava-me no serviço, quase sem falar, e os acidentes rareavam. O chefe da cozinha nunca se cansava de me elogiar para o gerente:

“Ele é perfeito! – exclamava com gestos algo suspeitos. – Deixa tudo es-te-ri-li-za-do...”

Nesse emprego conheci pessoas célebres, que se hospedavam no hotel, como a cantora Emilinha Borba, de quem ganhei um autógrafo, o advogado Leopoldo Heitor, famoso pela suspeita de ter matado sua cliente, a “socialite” tcheca Dana de Teffé, políticos como Carlos Lacerda, Juarez Távora e Jânio Quadros, de quem ainda guardo um bilhetinho. Conheci também o rei da Etiópia, Haillé Salassié, destronado enquanto andava por aqui, mas que recuperou o trono assim que voltou a seu país, e o escritor Fernando Sabino, bem novo na época, que me ofereceu um exemplar autografado de “O Encontro Marcado”, cujos trechos eu lia para o pessoal da cozinha.

Enquanto isso, minhas gordurinhas também voltavam (comíamos do bom e do melhor) e minha conta crescia no banco. Quase atingia o valor necessário quando veio a reforma monetária que suprimiu três zeros e meu dinheiro se reduziu a uns reles mil cruzeiros. Naquela noite perdi o controle, saí do sério. Tomei um violento porre de “Cuba Libre” no Itapoá, barzinho próximo ao hotel, vaguei pelas ruas, fiz um discurso oposicionista muito inflamado na Praça da Estação e acabei dormindo num banco do zoológico, coberto com jornal.

Meu sonho foi adiado, parecia inatingível. Os colegas de serviço me animaram e recomecei tudo. Um dia, por fim, juntei pouco mais de um milhão de cruzeiros (novos...) e poderia enfrentar o Coronel de cabeça erguida. Coloquei o milhão numa pasta preta, em montinhos de notas estalando de novas. Com o que sobrou comprei roupas e o carneiro cara-preta mais roliço e lanudo que existia. Mandei lavar e polir a “Gentileza”, acomodei no banco de trás o carneiro, maneado e envolto em plásticos para não fazer sujeira e rumei para a Fazenda.

Dessa vez cheguei pisando firme, falando grosso, exigindo a presença imediata do fazendeiro. Com a pasta preta numa das mãos, puxando o carneiro com a outra, atravessei destemido o deserto do pátio, indiferente aos “inimigos”, e me postei na porta. Surpreso, assustado, o Coronel compreendeu de pronto que eu tinha vencido o desafio. Abriu-se numa risada e falou com a maior calma deste mundo:

“Eu não quero o seu dinheiro. Já tenho o bastante! Fique com ele para começar a vida.”

Como eu fizesse cara de perfeito idiota, ele explicou:

“Foi um desafio que fiz para ver se o senhor merecia minha filha. Mas o senhor não carecia levar tão a sério...”

Toda a família estava por trás dele, com os olhos pregados em mim. Ele fez uma pausa, riu de novo e fez um gesto bem largo:

“Entre, meu genro. A casa é sua!”
 


 

Depois da festa embarquei minha mulher na “Gentileza” e partimos para a nova morada. O banco traseiro do carrinho ficou cheio de presentes até o forro. Bem em cima, numa caixa de papelão, ia um ferro de passar, desses pesadões. Cada vez que eu freava ele corria para a frente e batia na nuca de minha mulher. Deve ser por isso que até hoje ela se queixa de dores de cabeça. Tenho certeza de que não lhe dei outro motivo.