O professor e escritor
Paulo de Tarso Pardal
analisa a obra “Côdeas”, de
Carlos Augusto Viana, um dos
ganhadores do Prêmio Unifor
de Literatura
O título do livro de Carlos
Augusto Viana é, antes de
tudo, um achado. Côdea quer
dizer crosta, casca, parte
exterior; vem do latim
cutina, de cútis, pele,
invólucro; é do século XIV
sua origem. É um termo,
portanto, que é utilizado
para identificar a parte
exterior, mais superficial
das coisas, o que é
incoerente para a sua
poesia, pelo o nível de
sofisticação dos poemas - é
aqui que inicia o trabalho
do leitor.
O poema que leva esse título
descreve uma casa. É uma
descrição externa (côdea,
portanto), mas, na verdade,
é uma casa de lembranças,
cujos elementos descritos
estão vergados diante do
peso da angústia do passado.
Quando o leitor termina a
leitura, tem duas surpresas:
1) a casa imaginária está
desenhada em sua memória
(conseqüência da precisão
das descrições e do nível de
sugestividade); 2) na
construção sintática, não há
um só verbo, mas o leitor
consegue imaginar todas as
ações e o movimento que os
objetos poderiam ter feito,
apesar de tudo estar parado,
porque o poema é apenas uma
paisagem de recordações,
está no passado - é quase
uma natureza morta; deixa de
sê-lo porque esse poema é
uma evocação ao passado,
portanto, com um nível muito
mais profundo do que uma
simples descrição.
No primeiro momento,
justifica-se, pois o título;
num segundo, entra o leitor
com sua recriação e faz a
sua relembrança de uma
imaginária casa, cujo
desenho se forma também pelo
que está escrito, e,
essencialmente, pela memória
reconstruída de uma casa que
é de cada um. Este é o poder
da poesia, em particular, e
do texto, em geral.
Este poema, no entanto, é
dos mais simples do livro
Côdeas, a linguagem é das
mais referenciais, diretas,
e há poucas abstrações, como
´culpas de rabiscos
desidratados´, ´vento
cítrico´ e ´húmus da
memória´, expressões
poéticas das mais inventivas
(marca de Carlos Augusto
Viana), que fazem parte da
composição do imaginário das
lembranças. Com elas, o
leitor cria um novo nível de
significação para os objetos
descritos.
Outros poemas são quase
totalmente construídos com
imagens assim, abstratas,
plurissignificativas, e,
ainda outros, que resolvi
chamar de poemas-rasteira:
joga o leitor no chão:
quando menos se espera o
poema já foi, já passou:,
como, por exemplo, em ´A
encomenda´: ´O morto - /
indiferente às moscas e aos
lamento / mais ignora / os
que se iludem com o açúcar
das horas.´; ou, ainda, em
´Vida ´: Palavra servida
crua. / Talo / que se devora
/ de dentro para fora.´ É
isso o que este livro traz
de novo: a poesia comprimida
ao mínimo significante, para
atingir um máximo de
significado.
Côdeas, assim, é um livro
que acentua as
características gerais de
Carlos Augusto Viana (e já
podemos até falar em um
estilo particular de
linguagem) e traz novos
elementos: reciclagem e
atualização necessárias a
todo bom poeta.
Se nos livros anteriores,
tais como: Inscrições dos
lábios; A báscula do desejo,
havia um confessionalismo
mais tradicional, embora
mesclado com essa abstração
das imagens, agora, há uma
certa recorrência temática,
que mostra várias visões
sobre um mesmo objeto; há,
agora, algo de mistério em
muitos poemas; a reflexão e
o olhar atento sobre o mundo
e sobre as coisas do mundo
ganharam profundidade. A
visão é outra: tudo está
mais intenso e maduro. O
olhar contemplativo
transformou-se em olhar
construtor de um artista
plástico.
Dos temas recorrentes, a
casa, motivo apenas de
descritiva contemplação nos
livros anteriores, agora,
reveste-se de um olhar mais
perscrutador; há um narrador
mais perquiridor dos
meandros tanto daquilo que
lhe serve (ou serviu) de
abrigo, proteção, como da
angústia que a lembrança do
passado traz, embora a
evocação de uma memória
possa representar, também,
sabedoria. Este é o novo
movimento que Carlos Augusto
Viana dá à sua poesia. Nesse
sentido, os versos como um
todo desse livro, Côdeas,
dão bem a dimensão da
metamorfose por que está
passando o poeta. Assumindo
uma nova postura, ele se
recicla, rejuvenesce e pode
reconstruir-se. Este é o
novo movimento.
Há um forte apelo sensorial
nas imagens que da
reinvenção da casa advêm,
assim como ela representa,
em alguns poemas, uma perda
irreparável, como se cada
narrador tivesse em busca de
algo que já não exista, mas
que é preciso recordar, para
manter viva a memória de um
passado, daí a perda. É por
conta disso que o retrato da
casa está, quase sempre,
destruído pelo tempo - é a
consciência de que o passado
está em seu devido lugar,
com paredes corroídas, mas é
um tempo que fez e que ainda
faz parte do ser que o
evoca, daí a recorrência.
A linguagem de Carlos
Augusto Viana, desde o
primeiro livro, Primavera
empalhada, é formada por
grandes metáforas,
normalmente, através de
processos sinestésicos de
associações abstratas.
Sobre este aspecto, há um
poema muito esclarecedor e
que pode ser lido como
metalinguagem: ´Sub tegmine
fagi´: ´O que sou (...) são
emaranhados de líquidas
imagens´
A idéia destas imagens
mostra não só o nível de
abstração, como a
transitoriedade delas, da
sua amorfia, da total
ausência de forma, ou formas
em constante movimento, daí
o emaranhado delas. O
movimento neste sentido é
consciente. Os dois
primeiros versos do poema ´A
fome´ - ´Assim os alimentos
do poema:/ o que não se
conhece´ - dão os
fragmentários caminhos para
a compreensão da poética de
Carlos Augusto Viana. O
poema vem do desconhecido,
uma tese defendida por
muitos: Quintana, Drummond,
João Cabral et alii.
O poema, aliás, como
material de reflexão, é um
questionamento constante, e,
quando isso ocorre, o poeta
reitera o material de que
ele é composto: ´minhas mãos
se estendem/ à seiva viscosa
do nada.´ A matéria-prima do
poema, portanto, tem de ser
buscada em outro mundo, e o
leitor tem de reinventar o
poema, para entrar no
universo de silêncios desse
desconhecido mundo.
Normalmente, os metapoemas
falam da dificuldade de se
achar a matéria da poesia,
ou tentam defini-la através
de abstrações. Tudo se
encaminha para o
questionamento ou para o
nada, pois não há uma única
definição, ou não há uma
definição que possa
satisfazer um universo em
ebulição, como é o da
poesia. O importante desse
movimento reflexivo é a
consciência da imprecisão,
da vaguidade e da
sugestividade contida em que
cada definição. Com esse
movimento, o poeta inicia um
grande diálogo com o leitor,
chamando-o para o campo das
herméticas composições; é
uma maneira de convencer o
leitor de que a poesia que
ele está lendo é matéria
abstrata, vaga, sem
referenciais seguros do
mundo real, mas é poesia que
exige sua participação.
PERFIL
Quem é Carlos Augusto Viana
Carlos Augusto Viana,
nascido em Fortaleza, aos 22
de março de 1955,
(faz, hoje, portanto, 52
anos) é graduado em
Comunicação Social pela UFC
e mestre em Letras por essa
mesma Universidade. É
jornalista (editor de
Cultura e colunista deste
´Diário´) e
professor-assistente do
Curso de Letras da Uece,
lecionando, também,
Literatura Brasileira nos
Colégios Batista e 7 de
Setembro.
No entanto, não obstante
essa diversidade
profissional, inscreve seu
nome na História da Cultura
de nosso Estado como o
grande poeta de sua geração.
Em 2003, com o livro ´A
báscula do desejo´, foi o
vencedor do Prêmio Osmundo
Pontes. Agora, confirmando a
sua familiaridade com o
fazer poético, a habilidade
em estabelecer inusitadas
alianças entre as palavras,
acaba de vencer o I Prêmio
Unifor de Literatura, com o
livro de poemas ´Côdeas´.
Possuidor de um lirismo em
que se entrecruzam as teias
do passado e as do presente,
Carlos Augusto Viana, nesse
livro, em poemas
predominantemente curtos,
mas densos, com imagens
singularíssimas, em feixes
de melodias e sugestões,
conduz o leitor a um
encontro com o encantamento.
Dominando, com a mesma
habilidade, os versos
metrificados e os livres,
com um acentuado predomínio
destes sobre aqueles,
recorrendo, pois, a ritmos
múltiplos, sua poesia é,
sobretudo, uma superposição
de imagens.
É membro efetivo da Academia
Cearense de Letras;
membro-honorário da Academia
Fortalezense de Letras; e da
Sociedade Brasileira de
Médicos Escritores; integra,
também, a Associação
Brasileira dos Bibliófilos.
É autor dos seguintes
livros: ´Primavera
empalhada´; ´A báscula do
desejo´; ´Inscrições dos
lábios´; e ´Côdeas´
(poesia); e de ´Drummond: a
insone arquitetura´
(ensaio).
OPINIÃO
“Familiaridade com a poesia”
José
Alcides Pinto
Grande poeta no verso livro,
é insuperável na forma fixa.
Há um poema seu, ´Soneto com
mel e porcelana´, que é um
dos mais belos em nossa
língua. É um desses que eu
gostaria de ter escrito.
Teoberto
Landim
Desde seu livro de estréia,
´Primavera empalhada´, já
demonstrava familiaridade
com a poesia, não só pela
arte de cultivá-la, mas
também pelo nível de leitura
dos grandes mestres.
Francisco Carvalho
Revela extrema sabedoria no
desenvolvimento de suas
predileções temáticas, com
suficiente qualificação para
promover e sustentar o
diálogo da modernidade nos
domínios da prosa e do
poema.
Jorge Tufic
Sua poesia é uma partitura.
Tudo nele é música. É a
leitura posta na posição
vertical, fluindo e se
encachoeirando, aqui e
acolá, imitando espirais ou
curso de rios.