Adriano Espínola
Entre o Circunstancial e o Mítico
Felipe
Fortuna é entrevistado por Adriano Espínola
Aos 34 anos, o poeta e diplomata
Felipe Fortuna prepara-se para lançar seu quinto livro, Estante, que
reúne os poemas escritos a partir de 1993. Poesia é sua matéria.
Publicou recentemente a obra completa da poeta francesa Louise Labé
e globalizou seus três primeiros livros numa "homepage" (http://www.geocities.com/Athens/6526)
que ganhará, em breve, uma antologia da poesia brasileira. Diplomata
atualmente servindo em Londres, Felipe Fortuna é professor-visitante
do King's College, onde ensina poesia. Durante três anos, manteve
colaboração na imprensa como crítico de poesia, polêmico e, para
muitos, agressivo. Adélia Prado, cujos poemas foram analisados em
dois ensaios, decidiu retirar 12 poemas de sua obra completa em
razão das observações que foram feitas pelo crítico. Em Estante,
Fortuna expõe sua outra face, conseguindo aproximar diversas
tendências de sua poesia, a do circunstancial, a do lirismo amoroso
e erótico e a dimensão mítica que caracteriza a terceira parte de
seu livro, "Seres".
O QUE REPRESENTA ESTANTE, SEU TERCEIRO LIVRO
DE POEMAS, EM RELAÇÃO À SUA OBRA ANTERIOR?
Creio que Estante é um livro que dá continuidade ao meu projeto de
poesia. Tudo o que escrevi, até agora, é poesia ou está relacionado
à poesia: meu livro de ensaios, A Escola da Sedução, é sobre poesia
brasileira. E traduzi a obra poética da Louise Labé. Com Estante,
reuni três "instantes" de minha poesia atual: memórias das cidades
por onde passei e vivi, a lírica erótica e amorosa, e um longo poema
em que reflito sobre essa estranha sensação de possuir braços,
pernas, pensar, andar. Este poema compõe a terceira parte do livro,
e se intitula "Seres".
QUAIS SERIAM AS PRINCIPAIS INFLUÊNCIAS EM
ESTANTE?
É difícil falar sobre influências, porque muitas delas não são
inteiramente
conhecidas pelos escritores influenciados. As influências
representam muitas vezes tendências, gostos pessoais, impressões até
mesmo de outras artes. Tenho lido muito, ultimamente, os poetas
ingleses contemporâneos - em especial Philip Larkin e Ted Hughes.
Eles possuem um enorme sentido de rigor, objetividade e apuro
técnico aos quais tenho prestado atenção. Nos últimos livros de João
Cabral tenho encontrado a presença do humor, o que até então não
havia se manifestado em sua poesia. Tenho dificuldades, contudo,
para avaliar exatamente quais influências vieram de outras
linguagens que não a poética: já escrevi pelo menos um poema sobre
Paul Klee e sou freqüentador assíduo de cinemas, o que certamente
influencia de algum modo no que escrevo.
VOCÊ FOI CRÍTICO MILITANTE DE POESIA EM JORNAL
E TAMBÉM É POETA. COMO CONCILIOU ESSAS DUAS FACES LITERÁRIAS?
Sempre estranhei a suposta contradição que as pessoas pensam existir
entre o poeta e o crítico. Pelo menos no que diz respeito à
depuração do gosto, à seleção crítica, às escolas espirituais a que
pertencemos, tanto a poesia quanto a crítica me parecem muito
semelhantes. Ninguém faz crítica de poesia, creio, com a intenção de
propor de que modo a poesia deveria estar sendo escrita. A minha
poesia, por sua vez, é resultado das reflexões constantes que faço
sobre outras obras. Tanto na poesia quanto na crítica há intensa
criação.
ESTANTE É COMPOSTO DE TRÊS DIFERENTES PARTES,
QUASE AUTÔNOMAS. VOCÊ PODERIA FALAR RAPIDAMENTE SOBRE CADA UMA
DELAS?
Coloquei entre parênteses o título da primeira parte, (Não É).
Percebi uma
grande dificuldade em escrever os poemas dessa parte, porque são
registros de experiências que de alguma forma me sensibilizaram.
Havia a dificuldade de conciliar os poemas que escrevo e os livros
que leio com as viagens, a vida diplomática, as responsabilidades
profissionais, e estar cercado de tudo aquilo a que se referem os
poemas: as cidades, os objetos, até mesmo o futebol. "Poemas da
Pele" representa o conjunto da poesia amorosa e erótica, a parte
mais propriamente lírica do livro. E "Seres" traz a dicção mítica,
em que o poema se apresenta com o menor número possível de
referências objetivas,
E COMO SE CONCILIA, EM SEU LIVRO, O
CIRCUNSTANCIAL E O MÍTICO?
Não sei se há mesmo conciliação. O que posso dizer é que tive a
mesma
intensidade ao escrever os poemas que compõem as três partes do
livro. Todos resultam de uma reflexão sensível sobre alguma matéria
poética, em geral um problema poético: o silêncio, o corpo, até
mesmo uma estação de metrô. Percebo, porém, que em Estante não
existe praticamente a presença da morte. Tanto em Ou Vice-Versa
quanto em Atrito, meus outros livros de poesia, vários resenhistas e
críticos encontraram enorme quantidade de referência à "indesejada
das gentes". Não houve, garanto, nenhuma tentativa deliberada de
eliminar o assunto.
E O QUE VOCÊ TEM A DIZER SOBRE A LÍRICA
ERÓTICA E AMOROSA, QUE FORMA OS "POEMAS DA PELE", A SEGUNDA PARTE DE
SEU LIVRO?
A lírica amorosa e erótica é nossa velha conhecida: todos os poetas
pagam o seu tributo a ela. Acontece que sempre considerei
extremamente difícil escrever sobre o assunto, primeiramente pelo
alto grau de subjetividade que pode surgir, o que acaba tornando o
poema pessoal demais e interessante apenas como material biográfico.
Depois, as metáforas utilizadas para fazer referência ao corpo
sempre me pareceram muito limitadas, o vocabulário muito reduzido.
Espero ter conseguido me livrar desses dois fantasmas que rondavam
os poemas amorosos e eróticos.
VOCÊ ESCREVEU QUE "O TEXTO É JAMAIS TECÊ-LO,
MAS DESFIÁ-LO EM DESAFIO". PODE-SE CONSIDERAR A FRASE COMO UM LEMA
DO POETA?
Bem, creio que a frase me traz sobretudo uma lembrança dos anos
universitários em que estudei Letras. Tudo, na faculdade, era texto
e tecer, texto e textura, tessitura, e por aí vai... O escritor,
aparentemente, era
comparado praticamente a uma costureira - com enormes vantagens para
a costureira! Ironizando a noção acadêmica, tentei dizer que desfiar
o texto - no sentido de desfazer o que se escreve - é um desafio
muito maior, maior até do que o trocadilho...
BORGES ESCREVEU QUE ARRUMAR BIBLIOTECAS É UMA
FORMA DE FAZER CRÍTICA LITERÁRIA. VOCÊ ACHA QUE ESTANTE FICARÁ DE
FATO NA ESTANTE?
Borges é uma feliz referência, e eu gosto em especial da frase que
você
citou. Ele mesmo, Borges, não acreditava muito no que se chama de
posteridade. Mas os poetas têm a obrigação de considerar que o que
escrevem já é póstero, pois se baseou de alguma forma em leituras
passadas, experiências comunicadas, trabalho da memória... Há uma
brincadeira implícita em Estante, que é o fato de que os poemas não
ficaram na gaveta... Por esse aspecto, o livro já está mesmo na
estante, de onde espero seja sempre retirado para ser lido. E isso é
tudo o que um escritor pode desejar, já que em geral ele está
envolvido em sua vasta solidão. Como você sabe, literatura não tem
aplauso.
NUM DOS SEUS POEMAS, "A TELA DO TEXTO", VOCÊ
FAZ REFERÊNCIA A ESCREVER NA ERA DOS COMPUTADORES, E AFIRMA: "TUDO É
LIMPO, SEM GARRANCHOS E SEM CORREÇÃO DE TIPOS". ATÉ QUE PONTO ISSO O
PREOCUPA COMO POETA? VOCÊ ACHA QUE O POEMA DE FATO PRECISA MANTER AS
MARCAS DO TRABALHO DE CORREÇÃO, COMO UM PALIMPSESTO?
O que pretendi foi comentar que há de fato uma mudança técnica na
forma com que muitos estão escrevendo atualmente que terá enorme
influência na poesia, por exemplo. Lembro-me de Hugh Kenner, em The
Mechanic Muse, quando estudou Eliot ao bater máquina. Hoje é
possível escrever sem separar as sílabas, e esquecer os acentos
ortográficos e maiúsculas e minúsculas, já que muitos programas são
autocorretivos. Assim, posso escrever todo o meu livro de poemas sem
precisar nem mesmo de papel, fixando as letras na tela do monitor.
Há de fato uma evolução notável - e o poema fala sobre isso: o fim,
de certa forma, do palimpsesto visível.
COMO O CRÍTICO FELIPE FORTUNA AVALIA O POETA
FELIPE FORTUNA EM ESTANTE?
Tentei evitar, não sei se com sucesso, um dos maiores estigmas da
poesia brasileira atual: a repetição da intertextualidade. Vários
poetas estão escrevendo metapoemas ou parafraseando pinturas e
arquitetura, se for possível. Também tentei evitar a discussão que
ainda persiste em nosso meio literário sobre a importância estética
do concretismo, a necessidade do poema marginal e do poema piada, a
poesia do rigor contra a da espontaneidade, o poema engajado e o
poema de catarse. Nesse ponto, Estante traz uma novidade. Mas acho
que acabei respondendo o que tentei evitar, e não o que fiz...
Fracasso do crítico sobre o texto do poeta.
COMO É VISTA A LITERATURA BRASILEIRA NA
GRÃ-BRETANHA? CONSEGUE CIRCULAR FORA DOS DEPARTAMENTOS DE LETRAS?
Infelizmente, a literatura brasileira ainda é marginal na
Grã-Bretanha.
Predominam os autores hispânicos. Mesmo a MPB não é assim tão
conhecida, sendo muito consumida pelos nossos brasileiros que vivem
lá. Se você fala de Drummond e de Guimarães Rosa, em alguns
círculos, talvez seja possível encontrar alguma repercussão. Nada
mais. Está tudo por fazer. Há iniciativas na área cultural, contudo,
como a de David Treece, que tem traduzido e estudado poetas
brasileiros contemporâneos, e a de Leslie Bethel, que está à frente
do Centro de Estudos Brasileiros, em Oxford, apoiado pela Embaixada
em Londres.
VOCÊ TEM ACOMPANHADO A POESIA BRASILEIRA QUE
SE ESCREVE ATUALMENTE? QUE AUTORES PODERIA SALIENTAR?
Tenho acompanhado com atenção o que escrevem os poetas que se
encontram na faixa dos 50-60 anos, que considero muito
contemporâneos: Armando Freitas Filho, Roberto Piva, Adélia Prado,
Bruno Tolentino. Obviamente estou lendo os poetas de minha geração,
mas não tenho ainda os eleitos. É interessante, por exemplo,
perceber de que modo Carlito Azevedo vem conseguindo atrair poetas
de tendências tão diversas, concretistas e não-concretistas, ainda
que escreva poemas bastante tradicionais. Alexei Bueno me surpreende
com suas preocupações arcaicas, a um só tempo influenciado pelo
utltra-romantismo e pelo simbolismo decadente. Quando o leio,
costumo perguntar: "Que Grécia é essa?"
QUE CRÍTICOS VOCÊ PODERIA INDICAR PARA QUEM
DESEJA CONHECER OS MELHORES ESTUDOS SOBRE POESIA BRASILEIRA?
Se me coubesse fazer essa indicação, não hesitaria em citar Augusto
Meyer, Othon M. Garcia e o José Guilherme Merquior de A Razão do
Poema e Astúcia da Mimese. Admiro a pertinência de muitos estudos de
José Paulo Paes, além das traduções que vem publicando. Antonio
Carlos Secchin também vem fazendo um importante registro da poesia
contemporânea do Brasil. São essenciais os comentários e as
traduções que os concretistas fizeram de poetas como Mallarmé,
Cummings, os trovadores medievais. Toda leitura didática, quando
feita com largo espectro cultural, deixa marcas.
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