Elaine Pauvolid
Diálogo fértil e duradouro entre dois
mundos
especial para O Globo,
27.05.2000
Em 1924, André Breton lançava, em Paris, o "Manifesto
do surrealismo", que clamava por liberdade, imaginação e exortava o
mundo a "praticar a poesia". Nesse momento, dadaísmo e o surrealismo
se unem num mesmo movimento, num mesmo modo de pensar e entender a
arte e a vida naqueles e nos anos seguintes. Nunca podendo ser
apontado como escola ou um estilo - conceitos que trairiam a
proposta principal surrealista, seu dinamismo e espontaneidade - o
surrealismo possui no automatismo mental seu método criativo. A arte
se sobrepõe ao indivíduo. O inconsciente é o norteador. Freud,
pessoalmente, negou que tratassem do mesmo objeto. O psicanalista
preocupar-se-ia mais com o sonho latente. Os surrealistas, com o
sonho manifesto, com os significantes mais do que com os
significados.
Infelizmente, no Brasil, pouca bibliografia há sobre o movimento de
raízes tão bem plantadas. Existem muitas teses e monografias, mas
livros são raridade. Por isso, o magistral "Surrealismo e Novo
Mundo", se não vem preencher totalmente esta lacuna, surge como
referência para todo e qualquer estudo que se fizer nesta área. Já
pode ser visto como um marco pois, nele, várias questões não
elucidadas devidamente, senão em artigos esparsos, são retomadas
para se fazer justiça ao movimento artístico mais importante deste
século. Numa edição rica em iconografia - há belíssimas reproduções
de obras dos principais nomes do surrealismo nas artes plásticas,
além de fotos e documentos - e embasamento histórico e técnico, a
Universidade do Rio Grande do Sul, com o apoio da Embaixada da
França no Brasil, brinda-nos com 23 artigos dos mais célebres nomes
da formação do espírito surrealista e de outros estudiosos
contemporâneos do tema. Estão entre eles André Breton, Benjamin
Pèret, Aldo Pellegrini, Octavio Paz, Sérgio Lima e Floriano Martins.
Através deles, a edição mostra, como aponta o organizador Robert
Ponge em sua apresentação, o "papel proeminente" que o surrealismo
vem exercendo na cultura das Américas. Durante a Segunda Guerra, os
surrealistas foram obrigados a se exilarem em países como o México,
por exemplo, num encontro que acabou rendendo valorosos frutos: os
artistas daquele movimento viram, na cultura ameríndia, uma fonte
vasta e totalmente condizente com sua proposta. O Novo Mundo não foi
simplesmente influenciado pelo surrealismo, mas o surrealismo
descobriu em seu "pensamento mágico" um irmão gêmeo, uma riqueza sem
precedentes, importantíssima para a energização e desenvolvimento
natural do movimento. Por isso, quem pensa encontrar nas 320 páginas
um apanhado das influências surrealistas nas Américas está
redondamente enganado. Em primeiro lugar, todos os articulistas do
livro se unem para comprovar que não se tratou de influência e sim
de confluência das duas artes, de dois modos de ver a vida, a do
Velho e do Novo Mundo, ambas utilizando-se do mesmo objeto. Havia
uma total sintonia entre o surreal e o "pensamento mágico" do
Brasil, do México, Colômbia e Peru.
Nada mais natural se pensarmos o Surrealismo, de um
lado, como uma busca do inconsciente, e estas expressões ameríndias,
do outro, totalmente baseadas nos arquétipos inconscientes,
evidenciados pelos seus totens e imagens meio humanas, meio animais.
O movimento modernista brasileiro, em 1922, não teve ligações com o
dadaísmo nem com o surrealismo. O movimento encabeçado por Breton
foi percebido por um grupo carioca que publicou a revista "Estética"
em 1924 (ela durou apenas um ano), que tinha como editores Sérgio
Buarque de Holanda e Prudente de Moraes, neto. Já o movimento
antropofágico de 1928 condiz com a proposta surrealista. "O ovo" e o
"Abaporu", de Tarsila de Amaral, nada devem ao monumental Dalí. A
antropofagia era a deglutição de todos os valores ocidentais
cristãos com sua reconstrução de um novo homem "primitivo tecnizado".
Também Carlos Drummond de Andrade, mais tarde, mostrar-se-ia
favorável ao movimento surrealista, o que não poderia ser diferente.
O cearense Floriano Martins, poeta, crítico e artista plástico,
autor de um dos ensaios do livro, de fato considera a obra um marco.
Durante uma breve conversa, Martins lembrou que, ao invés de se
falar dos efeitos do surrealismo sobre o Novo Mundo, deve-se falar
dos "efeitos do Novo Mundo no Surrealismo. Mais do que influência,
pode-se falar é de um diálogo". Sobre a situação específica do
Brasil, Martins observou que "muitos artistas que trazem entranhados
em sua obra o espírito surrealista ainda estão carentes de uma
leitura crítica não tendenciosa, que situe e considere essa
presença". E, principalmente por isso, lamenta a existência de
estudos comparativos entre os nossos surrealistas, que poderiam
revelar as sementes deste movimento no Brasil. Para ele, não há
dúvidas quanto à presença do surrealismo na arte brasileira, sendo
bastante pensar, na poesia, em nomes como José Santiago Naud,
Roberto Piva, Leonardo Fróes, José Alcides Pinto e Francisco de
Carvalho.
Para organizar a leitura, os ensaios de "Surrealismo
e Novo Mundo" foram agrupados em seis conjuntos. O primeiro, por
exemplo, reúne quatro textos de consagrados surrealistas
latino-americanos (Enrique Molina, Aldo Pellegrini, Enrique
Gómez-Correa e Octavio Paz) sobre aspectos gerais do movimento. Já o
quinto procura refletir especificamente sobre o surrealismo nas
Américas. Além de surgir como referência fundamental para o estudo
do movimento, mais vivo do que nunca, o livro abre campo para novas
publicações a este respeito que terão, certamente, um público ávido
por devorá-las.
Surrealismo e Novo Mundo (organização: Robert
Ponge).
Textos de Aldo Pellegrini, André Breton, Benjamin Pérret, Claude
Courrtot, Daniel Lafort, Édouard Jaguer, Enrique Gómez-Correa,
Enrique Molina, Eugenio Granell, Floriano Martins, Gérard Roche,
Jean Puyade, Jean Schuster, José Pierre, Leonor de Abreu, Lourdes
Andrade, Octavio Paz, Raúl Henao, Sérgio Lima e Valentin Facioli.
Editora Universidade do Rio Grande do Sul.
Apoio financeiro: Aliança Francesa e Embaixada da França no Brasil.
Porto Alegre, 2000. 340 pgs. com extenso acervo iconográfico a
cores.
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