Francisco Brennand
Fragmentos do Diário de Brennand
Fragmento (VIII)
"Oh príncipe, que idéia doce, inocente, pastoral, digo até mesmo
cândida, que o senhor tem da vida!"
Dostoievski
19 de maio de 1997
Vejamos os meus
últimos registros: Sábado pintei um retrato de mulher, cuja boca
escancarada poderia lembrar um grito. Não o famoso grito do pintor
nórdico Edward Munch, mas de alguém abrindo a boca, deixando escapar
uma enorme língua serpentina que ninguém adivinha se está saindo ou
retornando goela a dentro. Na noite de ontem, fui colecionando
palavras num estado de semi-vigília e o resultado foi o seguinte: As
coisas já não são as mesmas/ Uma fratura na alma/ É melhor limpar
agora/ Um pálido cinzento da cinza/O rosado de uma rosa morta/ Ser
um punhal/ Bem como a ferida/ Eu queria a escuridão/Aqui ela está.
21 de maio
Recordo que o
meu amigo Tomás Seixas lembrava que existiram escravos na longa e
estável civilização egípcia. A Bíblia também não pára de falar neles
e, mesmo em Atenas, centro do mundo filosófico, a escravatura era
admitida. Sempre que podia, eu retrucava: não exatamente escravos,
uma vez que escravos somos todos nós sob qualquer regime, por conta
da servidão humana. O homem não nasceu, necessariamente, para ser
feliz. "O prazer, diz o antigo catecismo pitagórico, é mau em
quaisquer circunstâncias, porque nós viemos aqui para sermos punidos
e devemos ser punidos". O estado de felicidade são momentos fugazes,
relâmpagos que nos lembram o que poderia Ter sido o paraíso; daí a
nossa incrível melancolia saturnina.
25 de maio
Acho que a
solidão é uma constante na vida não só do artista, como na de
qualquer homem. Sentir-se só implica na necessidade urgente de uma
reflexão, o que a maior parte das pessoas se recusa a fazer. Há uma
observação do escritor Césare Pavese, homem que não blefava
inclusive cometeu suicídio, e eu respeito muito os suicidas - que
diz: "Ninguém nos deve nada". Então, se ninguém nos deve nada, nós
não devemos nada a ninguém. Um corolário lógico, mas que redunda num
agravamento da questão, porque uma vez que ninguém nos deve nada e
nós não devemos nada a ninguém, a solidão é absoluta. E se todos
estamos verdadeiramente sozinhos, estaremos, pelo menos, irmanados
nesta solidão não compactuada. Todos somos companheiros de
infortúnio, degredados filhos de Eva. Daí porque persiste uma
longínqua e velada solidariedade humana, quase imperceptível, mas
real, independente de raças, ideologias e religiões.
26 de maio
Suponho que a
advertência de Emile Cioran sobre as pessoas que aspiram a glória,
contribua para desfazer uma série de equívocos que cerca o assunto:
"De que serve ser conhecido, se outrora não nos conheceu tal sábio
ou tal louco, um Marco Aurélio ou um Nero? Não teremos existido
nunca para tantos de nossos ídolos... Nosso nome não Terá perturbado
nenhum dos séculos anteriores... Que importa os que vêm depois? Que
importa o futuro, essa metade do tempo, para quem adora a
eternidade?"
Parece-me muito
pouco falar em cem anos. El Greco, um dos grandes, senão um dos
maiores pintores de todos os tempos, passou pelo menos trezentos
anos ignorado pela crítica; mesmo nas antologias da pintura
espanhola, não era citado. Precisou alguns artistas do século XIX o
reencontrarem, para colocá-lo, enfim, no pedestal que merecia. Mas,
o que não quer dizer, também, que não volte a ser esquecido.
Depois de
fracassar como pintor na corte de Felipe II e ignorado por Felipe
III, El Greco refugiou-se na cidade de Toledo, cidade mística por
excelência, cheia de igrejas e mosteiros. Cidade de Santa Tereza
d'Ávila. Gregório MaraÀon fala que El Greco certamente pintou em
igrejas onde Santa Tereza estaria orando. E pintou em momentos em
que a freira se encontrava solitária e perdida nos seus devaneios
místicos. Santa Tereza, que dizem haver levitado, certamente ficava
cega aos apelos daquelas pinturas, cujas personagens, sagradas e
profanas, de há muito haviam se desgarrado da força da gravidade. E,
no entanto, nunca houve referências de nenhum dos dois, um em
relação ao outro. Os santos jamais fazem alusões às obras de arte.
Para eles, tanto faz estar diante de um artista genial como de um
artista comum. Em tudo eles saberiam ver a beleza, porque veriam "o
tudo em cada coisa". Isso foi uma observação de Aldous Huxley a
respeito do gosto artístico dos santos. Muitos artistas pintaram
Francisco de Assis, mas este santo jamais fez referência a nenhum
pintor nem a qualquer forma de arte. Os santos não se interessam por
arte. Como observa Umberto Eco, "deveria ser, de uma certa maneira,
gente muito desagradável".
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