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Foed Castro Chamma

 

Fortuna Crítica: César Leal

 

Pedra da Transmutação
(em Entre o Leão e o Tigre. Recife: Fundação
Joaquim Nabuco/ Editora Massangana, 1988)


 

A literatura moderna está cheia de teorias e a cada dia uma nova tem de ser criada, pois, como é sabido, não existe um a priori forma aplicável a todas as espécies literárias, especialmente ao poema. Daí porque não resta ao crítico-teorizante senão buscar na ciência da linguagem a explicação para novas formas de poesia que vão surgindo. Na modernidade essa é uma exigência que se torna visível à investigação, à pesquisa, basta lançar os olhos sobre alguns dos livros de poesia lançados a partir da segunda metade do século para que se chegue à conclusão de que teorias poéticas têm de ser continuamente reajustadas a novas escalas de valores. Daí a superioridade das poéticas apoiadas na praxis dos artistas criadores sobre as poéticas racionalistas. Contudo, o problema não se restringe apenas a esses aspectos. Uma teoria dos gêneros, como a de Aristóteles, se impôs - com ligeiras variações - durante séculos. Ainda hoje sua influência é forte, por ser Aristóteles reconhecido como "o pai da reflexão estrutural". Mas como os melhores teoristas do fim do século XVIII reconheceram que o verdadeiro artista traz dentro de si as leis de sua arte, disso resultou a enorme proliferação de teorias poéticas, mesmo porque cada autor tornou-se simultaneamente um teorizador.

Caracterizações, por exemplo, como as de Emil Staiger, sobre o lírico, o épico e o dramático já não podem ser aplicadas generalizadamente a toda a poesia que se escreve no Brasil e no mundo nos anos 70-80. Suas noções, expressas no livro Conceitos fundamentais de Poética, sobre os gêneros basilares: lírica, épica e drama estão claramente obsoletas. É claro que as noções de Staiger sobre sílaba, palavra e diálogo para caracterizar gêneros como o lírico, o épico e o dramático são produtos de uma hermenêutica em crise. Seu livro, sob muitos aspectos, envelheceu demasiadamente cedo, apesar de ser uma obra estimulante para estudantes de letras que se preocupam com a teoria do poema. Mas ele não poderia mais - sem incorrer em erro - pretender que o lírico é a composição curta baseada na musicalidade (daí a valorização da sílaba) e o épico o poema longo apoiado no epos (palavra), tal como ensinavam os teoristas antigos e tão explorado por Hegel em sua Lições de Estética. Hoje, na modernidade, um poeta pode escrever um poema lírico com cem mil períodos rítmicos.

Essas observações me foram sugeridas pela leitura de um livro construído com particular engenho. Refiro-me à Pedra da transmutação, de Foed Castro Chamma editada pela "Melhoramentos". O livro foi o vencedor do "Prêmio Bienal Nestlé de Literatura" e é uma das obras máximas da literatura mundial nesta segunda metade do século. Não é um livro de leitura fácil. Como os seus múltiplos sentidos só se revelam pouco a pouco, não será de admirar que o mau leitor de poesia o abandone logo nas primeiras páginas. A originalidade da estrutura pode não ser notada mas quando se esquece a estrofe que a sustenta - o quarteto - e verifica-se o conteúdo fantástico da visão utilizada do mundo objetivo agora expresso, subjetivamente, através de uma linguagem que tem como objeto o próprio mistério da vida, sua origem, a Natureza, a sombra, a luz, o próprio homem e seu mundo abissal interior, seria "um fatal erro" - como diria Shelley - não reconhecer que este é um poema em que a lucidez poética se sobrepõe à lucidez intelectual.

Pedra da transmutação é um poema gigantesco. Diante dele não tem sentido indagar-se sobre a biografia do autor. Para descrevê-lo usarei números em lugar de palavras para dar ao leitor uma noção mais vincada de sua complexa estrutura. Estrofes: 2.500; versos: 10.000; períodos rítmicos: 100.000. A estrofe utilizada é o quarteto, em versos decassílabos, ora brancos, ora rimados, ora assonantados, sem que se observe, em nenhuma passagem, um único verso que não seja realmente forte. Para dar ao leitor uma idéia da extensão do poema, diria que se trata de algo semelhante a uma Divina Comédia com os seus 100 cantos, cada canto contendo exatamente 100 versos. Suporta essa enorme estrutura lingüística o quarteto. Como o poema não apresenta divisões em partes ou cantos, sua leitura poderá ser acusada de monótona.

Isso é verdade. Mas o poeta ao usar estrofes assonantadas, brancas, rimadas e outros recursos polifônicos, reina sobre o seu poema, com sensibilidade nova e instintiva, do primeiro ao último verso. Convém lembrar que as grandes epopéias, os grandes poemas da Antigüidade - a Ilíada e a Odisséia, por exemplo - não foram divididos em cantos por Homero. Essa divisão foi feita posteriormente pelos grandes filólogos alexandrinos.

Foed Castro Chamma terá de lutar muito para impor-se em nosso país como um poeta de primeira linha. Como disse T.S. Eliot a propósito de Baudelaire, "há razões especiais que tornam difícil a justa estimação" do valor de um poeta. Uma delas é não haver chamado a atenção dos críticos mais importantes - não digo os mais competentes - quando publicou seus primeiros livros na década de 50. Contudo, como pode escrever um poema como Pedra da transmutação um autor que não tenha meditado com rigor sobre a natureza, a forma e essência da poesia? O livro se assemelha à Natureza das Coisas, de Lucrécio, embora ele não procure divulgar nenhuma teoria como fez o famoso poeta latino. Apesar disso, uma filosofia implícita está presente em todo corpo dessa pedra que nos faz lembrar os rochedos cantados por Dante em suas rimas pétreas. Sua visão cósmica é suficientemente ampla para afastar-nos de uma geometria do "próximo" para a geometria das grandes e infinitas distâncias. O áspero e acinzentado mundo que nos revela não se enquadra em grades de uma geometria euclidiana. Seu universo não é plano, mas curvo, geodésico, einsteineano. Seu presente é indeterminado e incerto como na física quântica de Heisenberg. Não há dúvida que estamos diante de uma nova sensibilidade em poesia. "A manipulação da linguagem, a força metafórica, a qualidade das imagens, a preocupação com o uso de palavras chaves como Natureza, Fogo, Água, Terra, Ar, Rio, Oceanos, Pedra, Sombra, Luz, Forma, Espaço, Círculo, Estrela, Movimento revelam como a experiência desenraizada de clichês funciona com eficácia na poesia de Foed Castro Chamma. Um exemplo aleatoriamente observado à altura da página 96

O segredo da pedra está no ritmo
interior que a anima. Concentrada
em clausura alimenta-se do espaço

em que repousa presa à dura forma.
Sua luz atravessa o grande oceano
do espaço, clarifica-se na terra
Assim o fogo se condensa e o espectro

corporifica-se na própria pedra.
Sua luz é a pedra. Os negros raios
iluminam-se, aquecem pelo atrito
das vibrações entre os tecidos ávidos

que acendem o clamor do vivo círculo,
doando a claridade. Sua matéria
compõe-se do clarão que anima os corpos
desde invisíveis seres aos visíveis

cuja origem projeta-se na sombra.

 

A seguir Castro Chamma mostra que o "fogo é a semente universal" que modificando a Natureza funde os elementos que constroem "a química da vida":

Ele é o ser vivo, um animal sem patas
que rasteja ligeiro. Sem ter asas,
eleva-se até as nuvens. Sem ter braços

aquece e queima, vivifica e mata.
A presença do fogo modifica
a natureza com o movimento
das coisas integradas ao princípio

que as animou. As forças são o tempo.

 

Essas afirmações de Foed Castro Chamma são do tipo daquelas expressadas por Goethe, Dante e Lucrécio e que levaram Santayana a definir esses autores como poetas-filósofos. O que vemos aqui é aquele horizonte interior ao objeto já estudados pelos fenomenologistas filiados a Husserl, horizonte que não impede a contemplação de outro horizonte exterior ao objeto citado. Por isso, dois discípulos de Husserl - Mikel Dufrenne e Roman Ingarden - reconhecem a existência desses horizontes. Apenas esses horizontes não estão dissociados porquanto horizonte exterior é também horizonte interior "na medida em que desígna não apenas o oculto que se acrescenta, mas também a profundeza que se desdobra à medida que o mundo é um fundo exigido pelo objeto para que seu sentido nele ressoe em ecos cada vez mais distanciados". Dai afirmar Dufrenne "ser necessário um sujeito para abrir o caminho ao sentido, mas é preciso um objeto para propor o sentido". Castro Chamma é um poeta competente e, à semelhança de Dante, não revela suas fontes. Em casos bem conhecidos essas fontes podem ser descobertas pela crítica, como nas estrofes que se seguem:

Cada semente guarda a mesma forma
do círculo infinito. Outrora o homem
e a mulher coexistiram num só corpo,

ambos formando assim a humana roda.
Supriam-se do amor nos mesmos gestos
integrados num corpo só. A ausência
não os nutria do vazio e a vida

transcorria na paz das almas gêmeas.
O pássaro do medo não tecia
as cores do desejo nem o vôo
transportava nas asas o amor

ansioso de encontrar o seu repouso.
Outrora a noite agasalhava o sono
em suas penas e no grande círculo
mergulhavam os círculos menores.

tragados pela pulsação do ritmo.
A claridade renovava o rito
da vida derramada sobre os campos
ondulados. O vento nos trigais

desenrolava seus cabelos brancos.

 

As sementes a que se refere Foed Castro Chamma relacionam-se aos mitos da fertilidade nas religiões pagãs, especialmente a grega. O tema, portanto, é o amor tal como descrito em O Banquete, de Platão. Esse diálogo se desenvolve em torno de uma fábula contada apelo ateniense Apolodoro a um grupo de pessoas cujos nomes não são citados, a história de um banquete oferecido por Agatão a Sócrates, Fedro, ao médico Eriximaco e ao famoso comediógrafo Aristófanes em homenagem ao prêmio que recebera, pela primeira vez, por uma de suas peças dramáticas. Apolodoro não compareceu ao banquete mas Aristodemo, um dos convidados, contara-lhe tudo, o que foi comprovado como verdade pelo próprio Sócrates. É claro que se tratando de um dos diálogos mais famosos de Platão não irei repetir aqui o que todos conhecem. Apenas quero mostrar onde Castro Chamma apoiou-se nas noções de "semente", "círculo infinito" e a alusão da coexistência do homem e da mulher em um mesmo corpo. Faço-o apenas para demonstrar que o autor da Pedra da transmutação é um poeta consciente e essa fonte é apenas uma entre as milhares de outras que irão exigir dos críticos muita proficiência profissional e uma crescente soma de fadigas, tal como a Divina Comédia ainda hoje continua oferecendo aos seus analistas e intérpretes.

Durante o Banquete, vários dos convivas, após despedirem os músicos para não atrapalhar a conversação, falam sobre Eros, o amor, cada qual de um ponto de vista pessoal. O médico falou sobre o amor e a enfermidade e a saúde, mostrando que pessoas enfermas amam de forma diferente das pessoas sadias. Aristófones ouviu tudo em silêncio. Ao chegar sua vez disse: "Seja o que queira, Eriximaco, me proponho a tratar o assunto de uma maneira diferente da que foi feita por Pausanias e tu," E começou a mostrar que os homens ignoravam ainda o poder de Eros. Porque se conhecessem lhe ergueriam templos e altares magníficos. Mostrou que em outros tempos a natureza humana era bem diferente do que é hoje. Primeiro havia três classes de homens: os dois sexos que hoje existem e um terceiro, composto destes dois, do qual só resta o nome. Andrógino era o nome desse animal que reunia o sexo feminino e o masculino. Em segundo lugar todos os homens tinham formas redondas, os ombros e as costas colocados em círculo, quatro braços e quatro pernas, um colo circular e uma só cabeça. Caminhavam retos como nós, mas quando queriam andar ligeiro se apoiavam sucessivamente sobre os oito membros e avançavam com rapidez através de um movimento circular. A seguir Aristófanes explica a causa da diferença entre esses três tipos de homens: o Sol produzia o sexo masculino, a Terra o feminino e a Lua, por ser feita da Terra e do Sol, formava o andrógino. Em razão dessa origem, explicava-se a esfericidade de seus corpos. Esses corpos eram robustos e conceberam a idéia de escalar o céu. e combater os deuses. Zeus convocou uma assembléia e grandes dificuldades surgiram durante as discussões. Zeus poderia acabá-los, disparando os seus raios, como fizera contra os gigantes. Mas se destruíssem os homens - os andróginos - de quem iriam receber homenagens? Comunicou aos demais haver encontrado uma idéia. Separaria essa espécie de homens em dois "como se corta ovos para colocar o sal ou como com um cabelo se divide o ovo em duas partes. Isso foi feito. Apolo curou as feridas, reunindo os cortes da pele sobre o ventre, costurou-os ao modo de uma bolsa que se fecha, deixando apenas uma pequena abertura ao centro, que se chama umbigo. Ocorre que depois de separados os dois lados lutavam para unirem-se de novo. E quando se encontravam agarravam-se um ao outro até morrerem de inanição.Zeus compadecido imaginou outro expediente. Lembrou-se de que o andrógino não lançava o esperma um no outro mas no chão, como as cigarras. Mandou, então, colocar os órgãos da reprodução na frente e assim a união sexual se fazia pela penetração do órgão masculino no feminino. Verifica-se que dessa união, o amor produzia filhos. Além disso, a garantia de que a raça humana não seria extinta ficava assegurada e, uma vez completada a união do ato amoroso, o homem e a mulher voltariam a executar suas tarefas habituais mas sem a força anterior que ameaçava subir aos céus e combater os deuses. Além disso, Zeus tomou outras decisões: se o homem com as suas duas pernas e os seus dois braços pretendesse escalar os céus algum dia, ele ainda disporia de outro recurso. Partiria cada homem em dois, obrigando a andar com uma só perna. Parece-me que aqui a lenda grega representa uma advertência ao homem moderno, aos astronautas. E nada disso escapou à vigilância crítica desse grande poeta que é Foed Castro Chamma:

Até que separados os dois corpos
a poesia lavrou a sua fome.
Uma aprofunda nostalgia abriu

sulcos profundos, solidões enormes:
o homem ansiou no escuro a sua face,
tentou tocar-se lhe fugia a mão
e assim perdido percorreu caminhos

que o levariam sempre à solidão.
O fogo estava no interior, a fuga
o levava a imagens solitárias
da própria face que se desdobra

ao contemplar-se múltipla e invariável.
E descobriu-se enfim. Clareou-lhe o rosto
a visão da beleza. Todo o ciclo
da existência cumpria o mesmo curso
com que inicia e integra-se em seu ritmo.

A luz acende-se em seus olhos. A água
gera no corpo uma eletricidade
que lhe fabrica a sombra. E ele tece
a imagem, aprisiona a soledade.

 

Não há espaço suficiente para expressar a riqueza desse poema. Nem críticos suficiente para abarcar toda a sua trama e suas fontes ocultas, senão com o correr de muitas gerações, de séculos, diria melhor.
 


 

César Leal

Leia César Leal

 

 

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