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Vidaslusofonas
Poemas:
  1. Um copo de vinho fresco
  2. Morrer de sede
  3. Leão, que tenho dentro
  4. Homem-lobo
  5. A Primavera no poço
  6. Enganos
  7. Ali, além, acolá...
  8. Foice e martelo
  9. Saudade
  10. Adunar

Notícias sobre o autor e obra:
  1. Biografia
  2. António José Saraiva
  3. Nelly Novaes Coelho
  4. Helena Barroso
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Um copo de vinho fresco

Um copo de vinho fresco
como um fresco pensamento.
Vinho fresco
teve o sol por fermento.

Um copo de vinho fresco
em Lisboa, Campolide.
Um amigo que foi morto
pela Pide.

Um copo de vinho fresco, 
consciência revoltada,
mecanismo tic-tac
de granada.
 

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Morrer de sede

Estrangeiro que fui no meu país,
saltei fronteiras a tentar a sorte.
Estrangeiro que sou, perdi o norte,
corri o mundo, não deitei raiz.
É meu rasgado e velho passaporte
a sede antiga, esta cicatriz
queimadura que diz e contradiz
a pátria calcinada até à morte.
Mas torno sempre ao lar: fornalha, frágua,
cinzas e pedras sob cada ponte.
Orvalho, quando o há, é só de mágoa.
E quando exijo ao verde que desponte
e vem Abril abrir-se em olhos d'água,
vou eu morrer de sede ao pé da fonte.

 

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Leão, que tenho dentro

Retirantes da zona temperada,
procurámos um sol mais africano
que desse, em cada tarde, perfumada, 
a safra que é normal em cada ano.
Preciso viajar o corpo teu,
dobrar-te em curvaturas de felino,
alumiar o anjo que mordeu
o nosso corpo a corpo em desatino.
Leão, que tenho dentro, sai da jaula,
e a pata vai pousar em teu regaço.
Selvagem o amor em que te faço
aluna a revidar a minha aula.
Desnudas as lições que assim consomem
corpos opostos de mulher e homem.

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Homem-lobo

"O homem é lobo-fera,
nem sequer merece a vida..."
Quem o disse, lobo era,
ou carneiro suicida.
Quem não mete o dente em roubo
e não quer roubar-se à vida,
se não mata o homem-lobo
a si mesmo se liquida
porque dentro da razão
da humana condição
o tributo a dar à vida
é morte que lhe é devida.

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A Primavera no poço

A Primavera no poço,
minha filha, solidão.
Vampiro de estimação
traz cravado no pescoço.
Onde o céu, onde o balouço,
embalado na subida?
A meio curso foi colhida.
Onde o riso que não ouço?
Onde a chama que não brilha?
Alçapão em armadilha
a esvair-lhe o sangue moço. 
Caída no meio de estrume,
lanterna de vagalume,
minha filha pele e osso.

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Enganos

Anos e anos
de enganos
e assina
a sina
assassina:
coração à guilhotina!

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Ali, além, acolá...

Ali, além, acolá,
só dinheiro é que não há.
Será tamanha a fartura
que ninguém jamais procura
ser dono de coisa alguma.
Por isso não se costuma
usar tranca ou cadeado,
apelar a magistrado,
condenar sem compaixão,
meter homem na prisão,
empurrá-lo para a guerra.
Onde fica essa terra?
Onde fica ou ficará?
Ali, além, acolá...

É povo, por natureza,
inclinado à gentileza.
Todos são donos de tudo
porque todos fazem tudo
para todos. Mais distingo
ser ali sempre domingo.
É festa continuada,
irmandade partilhada
entre homens e mulheres,
bem-te-quero, bem-me-queres,
sejam quais as gerações.
Desigual doutras nações
onde fica ou ficará?
Ali, além, acolá...

Arribado me quisera
ao país da Primavera.
Com a minha confraria
hei-de ali surdir um dia
sem daqui arredar pé.
Trocar eu quero o que é.
Porém ânsia desmedida
troca-me as voltas da vida
e comigo me deparo
solitário ao desamparo
a pregar neste deserto.
O azul é tão incerto...
Onde fica ou ficará?
Ali, além, acolá...

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Foice e martelo

Foice e martelo,
coice!
Foi-se a foice,
foi-se o martelo,
foi-se Marte,
foi-se o elo,
foi-se a arte,
foi-se o mar,
foi-se o ar.
Fosso...

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Saudade

Ao longe, entre portas do desejo, 
a aranha da saudade agora tece 
a teia que te envolve e te adormece. 
Partiste. Repartido me revejo 
ave nocturna a debicar o nexo
contido nessa concha do teu sexo.

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Adunar
 

Adunar na vertical é transformar o instinto em razão e esta naquele. 
É conseguirmos ver o Invisível.
É usarmos de infravermelhos para localizar o Monstro agora diluído em estruturas canibais, omnipotência, omnipresença. 
É sabermos detectar a tempo as suas teias e evitar nelas pousar. 
É rasgarmos as suas máscaras, sejam elas lotes de acções ou abertura de caça ao preto e ao cigano. 
É darmos valor à vida humana, em vez do preço que ele pretende atribuir-lhe. 
É sermos indiferentes à diferença entre irmãos, homens que todos somos. 
É não deixarmos que ele converta as nossas vidas num andar solitário por entre a gente. 
É não deixarmos que ele transforme os homens em colónias de formigas. 
É conseguirmos pôr no Soweto um pianista japonês a emocionar a assistência com um nocturno de Chopin.
É não deixarmos que tantos morram à fome enquanto permanecem terras férteis em pousio e há trigo acumulado nos celeiros. 
É não consentirmos que as máquinas tomadas pelo Monstro nos deixem com a alma em desarrimo. 
É não deixarmos que ele transforme o planeta em esgoto a céu aberto. 
É não aceitarmos as gorjetas que ele oferece para olharmos para o outro lado. 
É não deixarmos que nos atire para a lixeira. 
É não consentirmos que o Direito Comercial lace, aperte, esmague e devore os Direitos do Homem. 
É arrimar-nos a um tronco largo quando a jibóia ataca, comprimento ela não tem para laçar-nos juntamente com a árvore. 
É puxarmos da catana e retalhá-la se ela insistir no ataque. 
É dinamitarmos a digestão antropofágica do Labirinto. 
É espantarmos os disciplinados cumpridores de ordens, os bandos de corvos sempre à espera da sua quota-parte de carniça. 
É ensinarmos as gaivotas a cagar na cabeça de arrogantes e presunçosos. 
É darmos um banho de lixívia aos engravatados distribuidores de paninhos e água quente. 
É cravarmos malaguetas no umbigo do Dr. Prepotência, e outras, como flechas, no cu que o Dr. Banqueiro tem como cofre. 
É nunca ficarmos de costas para os traidores que há na vida. 
É estarmos sempre atentos às manobras do Piloto que elegemos. 
É sabermos transformar as espadas em arados e as metralhadoras em berbequins. 
É levarmos os mansos a possuir a terra.
É consolarmos os que choram. 
É saciarmos os que têm fome e sede de justiça. 
É acreditarmos que, embora Invisível, será ainda possível empurrar o génio do Santo Lucro para dentro da garrafa, como outrora acreditámos que era possível vencer o Hitler, mesmo quando todos, até os nossos filhos, garantiam que ele já era o rei do mundo.

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