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             Balançando
            devagarinho 
             
             Mestre
            Antônio, por seu favor,  
            preciso urgente de um rapé de imburana,  
            a cera-de-abelha,  
            parece que de jandaíra,  
            de abelha-limão não é,  
            meio falsificada a cera,  
            os cabras são safados, botaram saburá,  
            talvez serragem,  
            mesmo assim cheirou.  
               
            Agora
            o barbante,   
            o barbante encerado,  
            para costurar o livro  
            pois o livro é puro sertão,  
            é puro lá-em-casa,  
                   
            quando...  
              
             Minha
            mãe abria,  
            com muito cuidado,   
            e me mostrava a rainha,  
            o cortiço que eram oito,  
            a jandaíra da casinha alpendrada,  
            adredemente abelha,   
            adredemente alpendre,  
            adredemente sombra,  
            elas zumbiam  
            e ninguém tinha medo, 
                   
            quando...  
              
             A
            garrafinha de mel,  
            uma xícara e o limão  
            (se  não tinha limão, uma casca de laranja),  
            a colher esquentada, esfregada-na-mão,  
            mel e mel, que eram dois,  
            um da garrafa, do frio da serra, mel,  
            o outro, das mãos, era mais quente  
            e cheiros de mel & mel,  
                    
            quando...  
             
             Uma
            garganta,  
            de traquinagem,   
            de muita poeira e gritaria na tarde rubra,  
            “ah, menino danado”, ela dizia.  
              
             Danada
            era ela, que pegava menino,  
            que ensinava menino,  
            que amansava mulher  
            parideira  
            (basta ouvir sua voz, comadre, elas diziam),  
            que os meninos nasciam.  
            Chovia menino em cima da serra,  
            dona Anísia aparando...  
              
             Danada
            era ela que costurava as facadas dos valentões,  
            remendava, com agulha grossa, o couro da cabeça  
            dos mais frouxos, cacetadas,  
            quando Vicente, dito Cabeção, de fama valente,  
            que uma agonia paralisou — eu vi —   
            arrebatei-lhe a lamparina, e disse:  
            — Madrin’Ana, traga um capucho de álcool  
            para mestre Vicente cheirar. 
             Naquela 
            noite,   
            o serviço de costurar quengos foi concluído  
            por uma mulher-feme muito macha  
            e um menino gritador e corredor na tarde rubra,  
            danado,  
            tossidor e lambedor de mel na noite fria,  
            que Vicente,   
            dito brabo, agoniou. 
                   
            Segurei até o fim.  
              
             Danada
            era ela que um dia esbarrou   
            uma cobra coral só com o olhar  
            e sabia balançar  
            devagarinho,   
            para não bater na parede, a rede,  
            nem nas costelas da cama, a rede,  
            para não fazer, com o balanço,  
            muito vento e de balanço vasto  
            trazer  
            mais tosse ao pé-de-vento-menino  
            danado.  
              
             Aquela
            garganta gritadeira se imolara à tarde  quente,  
            para quando de noite  
            um pano tépido,  
            um pouco de mel:   
            uma carícia leve,  
            levíssima,  
            de pluma,  
            um pano de quase-fralda, morno  
            que eram apenas  
            as mãos:  
            .................................................  
            ................................................. 
             durma,
            meu filho. 
                     
            Eram.  
              
             
             Vá,
            mestre (vaqueiro) Antônio,  
            e vá ligeiro,   
            o burro vermelho tá selado, ali na garagem,  
            abasteça-lhe a mochila,   
            a gasolina, veja o azeite, as ferraduras,  
            complete,  
            mande calibrar, e traga  
            a imburana,  
            quero botar este livro  
            para cheirar:  
            pr'àqueles tempos.  
              
             Pois
            enquanto mestre Antônio me corria as Sete Portas,  
            varejava o Pelourinho,  
            a feira dos Barris,  
            Calçada,   
            Sapateiro e outros baixios,  
            fui ao léxico saber das imburanas,  
            daquele cheiro, e flor,  
            madeira mole,   
            madeira de lei,   
            por certo uma lei amena,  
            que madeira não tão dura,   
            não tão pedra,  
            não tão cabrália,  
            educada no leve e no rangir,   
            nunca na pedra,  
            boa de fazer uns carrinhos e rodas,  
            umas porteiras do meu curral de gado-de-osso fazer;  
            [...]  
            e um canivete,   
            um pequeno serrote,  
            ah, meu Deus,  
            estas,  
            com estas,  
            nestas mesmas mãos aqui.  
             
             
              
             Vejam
            o que disseram os “sabidos”  
            da minha imburana,  
            pois o que dizem de mim: 
             
            Nunca
            dizem coisa boa com a gente.  
              
             Sim,   
            esgalhados somos,  
            que de muitos filhos, vasta parentela,  
            que raízes de céu,   
            se for de chifres é  
            neles!  
            Lá neles!  
            
             Penadas
            devem ser as almas nossas:  
            unha  
            coice  
            longe. 
             Aqui,  
            que é perto,  
            também,  
            se  
            não chove  
            até  
            o  
            19  
            de março. 
             Amém. 
             Aqui  
            a mãe.  
              
             Que
            também falta  
            o pai. 
                
            Faltou
             Desde. 
            Faltam. 
              
            Fiz vinte,  
            vinte  livros,  
            na mão;  
            encerei, eu mesmo, o barbante olímpico,  
            olimpicamente algodão,  
            quando se fiava algodão;  
            o fuso,  
            algodão branco de nuvem-verão,  
            algodão leve de nuvem-qualquer,  
            mesmo que de encharcada nuvem,   
            que chove rápido   
            de ficar leve outra vez  
            (nuvens que as daqui são sempre leves, levíssimas),  
            algodão macio de nuvem-dela,   
            ela...   
            a mãe também,  
            ambas.  
            
              
                
                  
                    Sejam. 
                     Foram. 
                     Dorme,
                    menino!
                       
                   
                 
               
             
            E
            amanhã,  menino danado,  
            vê se não me vai correr  
            na tarde quente  
            para não tossir de noite. 
             
               
              
             Com
            a agulha de costurar saco,  
            quase daquela mesma  
            com que minha mãe costurava cabeças  
            que mestre Cabeção, Vicente,  
            que de fama valente, recusara olhar,  
            e o barbante,  
            quase aquele mesmo barbante de pião.  
              
             
             
            Existe
            barbante,  
            existe braço,  
            existe mão  
            e movimento.  
             
             
              
                Existe  
                um atré...  
                atrevimento  
                no jeito de pegar,  
                no jeito de lançar:  
                um polegar na barriga do bólide  
                um indicador em cima do pino   
                onde se instala a laçada do cordão  
                a outra ponta do cordão dobrada,  
                depois de enrodilhar o bicho todo,  
                do prego até acima do meio, bem forte  
                engancha-se-lhe a ponta do cordão no fura-bolo  
                para o arremesso  
                e um puxão ao vento  
                (quem gira é o ar)  
                e unha e calma  
                (tenho a marca-de-unha, até hoje)  
                a calma de pegar   
                o bicho no ar:  
                 
                 
               
             
              
             A
            areia passa pelo fino furo,  
            o movimento também passa:  
            cessa-pião.  
             
             
              
             Que
            também pode ser  
            o movimento  
            de uma carrapeta  
            de eucalipto:   
            aí basta um quase-estalar,  
            é bem mais fácil,   
            de dedos  
            [polegar e fura-bolo]  
            a carrapetinha loucamente arremessada  
            girando entre os besouros  
            de cima da mesa da sala-de-janta  
            que se faziam de mortos cascudinhos  
            e a gente os “acordava”  
            ao giro da lamparina (amarelando)  
            de carrapeta. 
             E
            ampulheta:   
              
             
             
              
              
             E
            não se esqueça, mestre Antônio,  
            jogar o pião não é só rebolar para frente  
            tem que ter um empurrar-puxar,  
            vai-que-vem  
            e unha,  
            bote de serpente   
            de vasta calmaria,  
            mergulho-e-tona,   
            algum engenho  
            e  
            menino  
            danado,  
            de preferência  
              
              
             
             
              
                
                  Costurei
                  um a um. 
                   Fiz. 
                   Vinte.   
                    
                   Vinte,  
                  às imburanas,  
                  às abelhas jandaíras lá de casa,  
                  ao mel-mel  
                  de um pano morno,  
                  dorme, menino.
                  
               
             
              
             Também
            a uma menina  
            que fiava barbantes  
            à lamparina;  
            incendiavam-se   
            olho e coração;  
            amanhã, você me veja,   
            menino danado,  
            se não vai correr...   
            na poeira quente.  
              
             
             
              
             De
            não parar,  
            todas as tardes,  
            de noite também corria,   
            em especial  
            de lua crescente.  
             
             
              
              
             Barbante
            que se dissolve ao movimento  
            bote de cobra-rodilha  
            à vista  
            aos ouvidos  
            aos outros três e aos demais  
            indagadores  
            de mais coisas   
            sentidos  
            sei que tem mais coisa   
            muito mais  
            para além de um simples giro-de-pião   
            quando se espatifa o giro  
            no estertor e pára  
            de borco  
            para além de um simples lembrar   
            muito além da tarde rubra.  
              
              
              
             
             
              
                
                  
                    Não
                    existe pião.  
                      
                      
                     Só
                    giro. 
                     E
                    sopro.  
                      
                     Existem.
                    
                 
               
             
              
               
             
              Salvador,
              madrugada, 06.05.1995
              
             
            Notas: 
             1.
            Saburá: restos de pólen, uma quase lixo das colméia, que os
            vendedores de cera menos honestos misturam com a cera para
            "render" mais. 
             2.
            Danada era ela: a mãe do poeta, Anísia, professora, parteira,
            farmacêutica, curandeira, das rezas e dos encantamentos. 
             3.
            O pai faltou: a marcha fúnebre é oriunda de Compadre-Primo. 
             4.
            Cabrália, educado na pedra: João Cabral de Melo Neto, in Educação
            pela Pedra. 
             5.
            Sopro, de penúltimo verso: "Um vento de Deus pairava
            sobre as águas"- Gen. 01,02. 
             6.
            Fiz 20: confecção artesanal dos primeiros volumes do livro Réqueim
            em Sol da Tarde, de um total de 257 exemplares, todos feitos à mão,
            pelo próprio autor. O fazer físico dos primeiros volumes detonou
            este poema quando imaginei que seria mais proveitoso encerar o
            barbante — com que costurava o primeiro exemplar — com cera de
            abelha, como fazemos lá no interior para que fique mais forte.
            Assim foi feito. Porém, com a chegada da cera, diligentemente
            comprada por mestre Antônio, detonou-se
            outra memória: a imburana, da Serra das Matas — daí o envelope.
            Cada exemplar do livro Psi, a Penúltima (tipograficamente impresso)
            trouxe um envelope com a imburana de cheiro. Pena que a Internet
            ainda não lhe transmita o olor.  
               
             
            Veja
            o Envelope e os comentários   
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