Soares Feitosa  
 
Viagem a Mirian
 

Este poema quase ópera, ou, nordestinamente, quase Cantoria, iniciou-se, 31.02.1994, com a leitura de Susana, de Gerardo Mello Mourão, quando escrevi a primeira  parte, o encontro adolescente com Mirian, uma noviça, também adolescente, a caminho do mosteiro. 

Um ano após, um amante enlouquecido publica um anúncio no jornal, procurando uma jovem  a quem meramente vira no Teatro, no Recife.  Foi inspiração suficiente para  detonar a busca de Mirian, recuperando uma "viagem" de trinta e tantos anos. É o segundo poema, Poltrona F-6. 

Finalmente, ante a certeza de que Mirian  retornara do monastério, a viagem propriamente dita. E que viagem! Confira, é a parte 3ª, e final. 

Todos os fatos e nomes não são mera coincidência; são reais. 

                                                                 SF 
 

Mirian, aliás, Susana 
   
  
Mote geral 

Mas, tendo ambos retrocedido, encontraram-se no mesmo lugar e, perguntando um ao outro o motivo, confessaram a própria paixão. 
(Daniel,  13:14)

 
 
 
 
   

Navio Fantasma?  
Claro que existe!  
   

Eu mesmo conheço um jeep...  
        fantasma...  
   
   

 4
wheel
drive 
Willys Overland
 made in USA
model 1951
   

‘Tá’í  a ficha do bicho,  
que ainda corre e faz estrada  
entre Teresina e Bacabal,  
entre mim e Bacabal,  
entre mim e Mirian, aliás, Susana...  
  
   

Às vezes, eu mesmo o dirijo,  
outras, ele me parte sozinho,  
célere, louco, passa por mim,  
comigo à direção, ao gesto do susto: 

      aquele ali será  o meu velho jipe,   
      e o jovem que o dirige será  eu mesmo?  
  
   

E me parto e nunca chego  
ou chego e não me parto  
e a mesma viagem recomeça  
entre mim e Bacabal:  
   

A quem vai o velho jeep?  
   
À Mirian, aliás, Susana  
aliás Mirian,  
a noviça!  
  
Neste instante exato, madrugada,  
escuto-lhe o ronco:  
 

      Vruuummmm !!!   
É ele:   
chegando ou saindo, tanto faz,  
a viagem recomeça.   
Sempre.  
   

Pois era uma vez:  

      Dezoito, na força do forte:  18!  
      Em viagem,  ônibus, Teresina, Piauí,  
      quando ela chegou,  
      um “hábito” ligeiro,   
      (sem aquele chapelão)  
      um crucifixo (discreto),  
      dezessete...  
      talvez!  
      Apenas. E era 
      o encanto  
      da manhã. 
      Ela!
  

E, despedindo do pai, sozinha...  
subiu  ao ônibus,  
também subi,  todos os demônios, todos os anjos, 
desde ali, todos, em companhia.  
         Ali.  
       Até.   
 

Piripiri,  
no Piauí,  
o velho ônibus quebrou:  

——  Como é seu nome ?  

——  Mirian  

——  Susana?  

——  Não, Mirian...  e você?  

——  [um dos juizes..., pensei, o mais cruel] — Francisco...  
  
   

Pouco falamos,  
o que tinha-se a dizer,  
dizia-se  
sutilmente,   
no “gesto”,  
expressão  
do belo,  
belo,   
chuva e flor:   
talvez dezessete, ela  
eu, dezoito, já disse!  
  
   

O velho ônibus quebrado,   
dormimos todos no mesmo ônibus,  
eu espreitava...   
um descuido:   

os Juízes também olhavam e espreitavam  
e se abalroaram um no outro:  
   

——  É  Ela.  E você?  

——  Também,  por causa dela!  

——  Estamos perdidos!  
  

Estavam.  
Perderam-se.   
   

Pois eu também espreitei e nada vi,  
nem inventei.  
   

Somente a aurora,  
a matriz de Piripiri,  
repicavam os sinos e era mais bela,  
ela,   
que acordava...  
   

—— Bom dia, lindeza!   
   

E a rosa vermelha da manhã  
desabrochou ao espanto  
de sua face:   
romã!  
  

Ninguém disse mais nada.  
   

Depois,   
à viagem   
os olhos é que falavam;   
a voz,   
vagamente,  
obedecida:  
   
   
——  Onde é que você vai ficar?  
   
——  No hotel, ainda não sei qual.  

——  É no meu, de dona Filó!  
  
——  Vamos,  é ali, vamos, disse-lhe.  
  
   
Respeito de antigamente,  
cavalheirismo de antigamente:  
   

——  Dona Filó,  por favor,  
esta jovem vai para Bacabal...  
vai ficar aqui, com as suas filhas,   
até viajar!  
  
  
Eu mesmo lhe comprei a passagem  
para três dias depois.  
Hoje não lembro se a demora dos três dias  
foi  pura malandragem,  
ou se o ônibus não era diário,  
naquele tempo.  
   

Ficamos.  
   
Três dias!  
   
Três  eram suficientes para reconstruir o Templo...  
   
Deram, de sobra, para destruir.  
  
Eu mesmo fui levá-la, madrugada,  
ao ônibus,  
sua mala — atlético, forte: 18!   
mala de algodão, parecia,  
à despedida,   
e as palavras que eu lhe dizia,  
lisonja, disse-me ela,  
nem sabia eu o que era essa tal lisonja,  
mas pelo tom,   
sei que era coisa boa que ela dizia,  
estava satisfeita com o que ouvira:  
apertavam-se as mãos, os braços, 
trêmulos.  

Depois fui aos léxicos e comprei o tal jeep.  
   
Li que a lisonja poderia não ser coisa boa,  
duplo sentido,  
adulação ou mimo, —  
pois foi de mimo, Mirian,  
quando teríamos viajado.  
   

No jeep.  
Pois de jeep,  
todos os dias fazia-e-refazia uma viagem a Bacabal, 
como se a espreitá-la,  
à missa,  
no noviciado,   
no claustro,  
no convento,   
também no  banho...  
   
Claro, claro, por certo, também no banho!   
Parece que era a melhor parte: 
banhávamo-nos. 
  

E ao sabor da fantasia,   
chegava um jovem  a Bacabal:  
 
   
——   A noviça Mirian está?  
   
——   Quem quer falar com ela?  
   
E aí refaziam-se os mesmos projetos,   
no tempo,  
reconstituía-se, passo a passo,  
aquela viagem  
do velho ônibus:  
  

——   Como é que você vai para Bacabal?   

——   De ônibus.  
   
——   Não e não: eu tenho um jeep,  
           vou levá-la, no meu jeep,  
           e um dicionário,  
           lisonja pode ser coisa boa, veja, Mirian!  
           Vamos!  
  
   
[Teria sido quando  
os riachinhos da beira da estrada 
cheios de audácia e os pássaros bêbados  
teriam de se calar,— zombaríamos deles!]  
   

Outras vezes,   
o  jeep  viajava: sozinho!  
Eu mesmo ia voando:  
   

——  Mirian, é você, Mirian, Susana  
          aliás, Mirian, aliás, Susana?  
   

O pior é o que velho jeep não me larga,  
em todas as estradas eu o revejo,  
célere, louco, consulto a bússola,   
tomo-lhe o mapa,  
a carta de navegação:  

      destino:  Bacabal  
      a quem:  Mirian!  
      de quem:  de mim! 
Como é possível aquele jeep ali estar viajando  
comigo à direção,  
se eu estou neste outro, em outra direção?  

Para ir a Bacabal  
não preciso mais de jeep  
(mas, o bicho não me larga)   
sequer preciso de mim, para ir:  
sempre estive lá,  
à espreita,  
ao banho  
(devasso)   
Dela!   

——   Escutem, escutem, silêncio:  
  
Vruuummmm!!!!   
  
——   É ele, o jeep:  

——   Será que desta vez ela está vindo?   
 
 

Salvador, BA, madrugada,  31.03.94 
 

Continua em Poltrona F
Notas para Mirian:  

Os Juízes, in Livro de Daniel, profeta, capítulo 13:  

1 - Havia um homem que morava em Babilônia, chamado Joaquim.  
2 - Ele tinha desposado uma mulher chamada Susana, filha de Helcias, muito bela e temente ao Senhor.  
3 - Seus pais também eram justos e haviam educado a filha na lei de Moisés.  
4 - Joaquim era muito rico e possuía um jardim contíguo à sua casa. A ele acorriam os judeus, porque era o mais ilustre de todos.  
5 - Naquele ano haviam sido designados como juízes dois anciãos do povo, a respeito dos quais falou o Senhor:  “A iniqüidade saiu de Babilônia, dos anciãos, que só aparentemente guiavam o povo”.  
6 - Estes dois freqüentavam a casa de Joaquim, e todos os que tinham uma questão a julgar vinham a eles.  
7 - E acontecia que, ao retirar-se o povo pelo meio-dia, Susana costumava entrar para um passeio no jardim do seu esposo.  
8 - Os dois anciãos, que a observavam diariamente enquanto ela entrava e passeava, puseram-se a desejá-la.  
9 - Perverteram assim a sua mente e desviaram seus próprios olhos, de modo a não olharem para o Céu e não se lembrarem dos justos julgamentos.  
10 - Ambos ardiam de paixão por causa dela, mas não comunicavam um ao outro o seu tormento.  
11 - Eles sentiam vergonha de revelar a própria paixão, isto é, o fato de quererem juntar-se com ela.  
12 - Mas diariamente se escondiam, com avidez, procurando vê-la.  
13 - Certa feita, disseram um ao outro:  “vamos para casa, pois é hora do almoço”. De fato, saindo, separaram-se.  
14 - Mas, tendo ambos retrocedido, encontraram-se no mesmo lugar e, perguntando um ao outro o motivo, confessaram a própria paixão.  Então, de comum acordo, combinaram o momento em que poderiam encontrá-la sozinha.  
15 - Sucedeu que, enquanto procuravam um dia favorável, ela entrou certa vez, como fizera nos dias anteriores, acompanhada apenas de duas meninas.  E pensou em tomar banho no jardim, porque fazia calor.  
16 - Não havia ninguém ali, exceto os dois anciãos que, escondidos, a espreitavam.  
17 - Ela disse então às meninas:  “Trazei-me óleo e bálsamo, e fechai a porta do jardim, porque vou banhar-me”.   
18 - Elas fizeram como lhes fora dito:  fecharam cuidadosamente as portas do jardim e saíram por uma porta lateral  a fim de buscar o que lhes fora ordenado.  E não perceberam a presença dos anciãos, que se achavam escondidos.  
19 - Apenas saíram as meninas, levantaram-se os dois anciãos e correram para ela,  
20 - dizendo:  “As portas do jardim estão fechadas.  Ninguém nos vê e nós te desejamos. Por isso, consente conosco e junta-te a nós.   
21 - Se recusares, testemunharemos contra ti que um moço esteve contigo, e que foi por isso que afastaste de ti as meninas.”  

Obs. - Nas bíblias evangélicas - protestantes - é suprimida  esta passagem do Livro de Daniel.  Este trecho, entre outros e mais alguns livros, são  conhecidos como deuterocanônicos, isto é, partes e livros escritos originariamente em grego e que não foram aceitos como oriundos da revelação divina pela Reforma. Vide Bíblia de Jerusalém ou qualquer outra edição com Imprimatur. 
 

Continua em Poltrona F

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